encher o escuro com o lume do teu corpo
e deixá-lo arder, devagar, na minha boca
afogar-me inteiro no mar dos teus desejos
e acordar na areia fina da tua pele enquanto dormes
dançar contigo sobre todos os abismos
e deixar que as feridas sejam pó no vento que passa
ensinar aos teus olhos que o infinito se abre no meu peito
e descobrir amor em todas as sombras do teu nome
agarrar-te enquanto sei que sorris com a pele tremendo
e desejar que todas as horas se levantem deste chão
enlaçar os dedos na promessa que o meu sangue te deixou
e começar de novo a escrever teu nome no silêncio
RM
volto, sorrindo, à rua da tua pele
e todas as janelas me parecem abertas na manhã
há flores no ferro morno das varandas
e os pássaros voam livres nos braços de um céu deserto
volto, sorrindo, às esquinas do teu olhar
e todos os recantos me parecem, de súbito, clandestinos
há um rumor de corpos dançando dentro da sombra
e ouve-se dos lábios um fogo que estala sem igual
volto, sorrindo, ao labirinto bordado do teu ventre
e todas as praias me parecem trazer na areia o teu nome
há esperança nas rochas erguidas no fio do horizonte
e o vento traz de ti saudade correndo enorme na luz
volto, sorrindo, ao tempo inteiro em que fui teu
e em que todas as palavras eram as linhas onde dormia o teu nome
há beijos esperando tua boca no abismo
para que da noite se erga um abrigo devagar
RM
sei que te importas
e sei-o no instante em que os teus olhos demoram nos meus
fico a segurar na memória a infinita doçura do cheiro que a tua boca deixa na minha
e sei que te importas
sei que te importas quando esperas por mim no sofá a olhar a porta
e sei-o porque o sorriso da tua boca é como uma janela aberta sobre o mar
agarras-me com o teu corpo todo como se fosses toda tu umas mãos com saudade
e sei que te importas
sei que te importas quando entras comigo na chuva
e sei-o porque entrarias comigo no escuro de um abismo qualquer
e juntos veríamos esperança na desolação triste do mundo
e sei que te importas
sei que te importas quando a tua boca de súbito desaprende a fala
e sei-o porque o teu corpo é uma valsa desgovernada no salão do meu peito
mergulhas toda dentro de mim com a pele ardendo em súplica
e sei que te importas
sei que te importas quando não me deixas esperar sozinho a noite
e sei-o porque me ouves como se te deitasses comigo em frente a mil comboios
e toda a dor do mundo nos tivesse que levar aos dois de mão dada
e sei que te importas
sei que te importas porque nunca é tarde para morarmos os dois a mesma hora
e sei-o porque me esperas do lado de cá do cansaço, ali, sempre tão perto
como se toda a luz do mundo viesse do firmamento que a tua presença compõe
e sei que te importas
sei que te importas quando a tua pele me deixa escrever nela
e sei-o porque as palavras que te deixo nem sempre trazem flores ou beijos
e, no entanto, são também essas formas inteiras de te querer
e sei que te importas
sei que te importas quando procuras o meu rosto no reflexo do vidro
e sei que nos encontramos aí onde tanta coisa já existiu
sei também que podemos ser tão grandes quanto a memória de um vidro que a tivesse
só para sabermos, no fim de tudo, que eu sei que tu te importas
(e eu também)
RM
És tu quem move o silêncio
E é tua a voz que minha pele ouve quando desperta
Há um rumor de que tudo está certo
E só por isso tens que ser tu ainda aí
És tu quem ilumina o acaso
E são ainda tuas as mãos na terra das primaveras que vieram
Há no granito do chão uma semente de verdade
E só por isso tens que ser tu ainda aí
És tu quem acende em todas as noites o regresso
E é nas tuas lembranças que o céu se abre maior
Há em todas as esquinas da estrada uma promessa cumprida
E só por isso tens que ser tu ainda aí
És tu quem me abraça por cima do que a vida interrompeu
E continuas no cimo da escada esperando que chegue
Há em todos os dias uma véspera de sonho
E só por isso sei que és tu ainda aí
(e sempre), Avô.
RM
E o céu pode erguer-se um pouco mais alto
(estamos juntos)
a mesa é grande e as palavras são janelas na noite
(estamos juntos)
contigo vejo no escuro
todo o tempo é o tempo do regresso
e és tu que trazes de mim o chão de todos os sonhos
E a noite pode durar mais um pouco
(estamos juntos)
o ar é sereno e o mundo adormece no colo das horas
(estamos juntos)
contigo todos os lugares são possíveis
toda a dor é breve paragem na estrada
e no pó que se levanta brilha paz
E o longe pode ser mais longe
(estamos juntos)
será sempre tempo de retomar a palavra
(estamos juntos)
e contigo habitar a espessa matéria do amor
ao fundo o dia ergue-se devagar
a luz flutua no sono calmo do início
(estou em casa)
RM