ao fundo, o trânsito carregando as veias escuras da cidade
saber que me esperas - as tuas costas pequenas numa cadeira de uma mesa no canto
eu, vindo de um sítio qualquer, entretido pelo caminho a pensar na métrica irregular de tantas coisas
e, ao fundo de um lugar qualquer, sem nome, mas com uma mesa num canto
tu, eu, nós e um café curto e um cigarro
de repente, já pode haver silêncio como se me lançasses um cobertor
olhas-me com o teu sorriso paciente de quem conhece todos os meus truques -
em que bolso do casaco escondo a angústia,
que camisa uso para poder ter menos saudades de alguma coisa,
ou em que bolso das calças amasso com os dedos o que me dói
e, então, o teu cigarro acende-se como uma luz dentro da noite,
o café fumega quente e vagaroso
e os teus dedos procuram os meus, como uma palavra cruzando outra, na folha de um jornal esquecido.
o amor pode ser tantas vezes feito disto -
as mães acendendo a luz de um cigarro no escuro do caminho dos filhos
em silêncio, lançando cobertores que são como braços onde se vai buscar o ar de que se precisa
e, enquanto o café fumega e se espreguiça a tarde sobre as ruas, os filhos sabem que alguém os ama -
só porque há silêncio,
só porque as palavras estão prescritas nos diálogos mais sinceros do amor,
só porque o café é curto, a mesa é no canto e o cigarro e tu têm paciência para mim
querida mãe, que ridículo medir-te o amor pelos cafés e cigarros dos nossos encontros,
eu sei.
mas, sabes, preciso de ti
e de acreditar que, em todos os lugares do mundo, pode haver uma mesa no canto
só para que acendas um cigarro,
peças um café curto
e me estendas a mão como uma palavra que cruza outra na folha de um jornal esquecido.
29. Inclinação da alma e do coração. [subs.]
ambos adivinhamos que palavra é - amor.
mas só tu, num café sem nome, em qualquer lugar, sabes com quantas letras caladas ele se escreve.
Amo-te.
RM|XXVII-I-MMXVII