a sério,
entrar no meu quarto e abrir uma gaveta por cada coisa que não te digo
[e que devia.]
senta-te na minha cama e enquanto, da janela, o dia te fita sereno
abre a gaveta que achares mais próxima do meu coração e espreita
anda lá, eu deixo,
algures, pelo meio dos discos, dos livros - quase todos teus e com o teu cheiro -
algures, pelo meio das t-shirts, dos bilhetes de cinema e das meias - há de estar o amor
sim, o amor:
ou o número de vezes em que adormeci agarrado à promessa de ti no dia seguinte,
todas as cartas, os postais e as respostas que sempre tiveste para mim, mesmo antes que te soubesse perguntar coisa alguma,
ou os passeios todos e o cheiro a infinito e a pele morena nas fotografias, o abraço do mar e da praia onde pudemos sempre demorar-nos um no outro sem ter pressa
juro que, às vezes, imagino que o amor se possa guardar em gavetas
porque amar talvez seja guardar na gaveta mais perto do coração aquilo que nos fez, nos faz e nos fará lembrar e tentar ser sempre o melhor de nós mesmos.
e, sabes mãe, eu volto tantas vezes a essa gaveta - e repito os passeios, ouço do mar a voz rouca que me traz do teu nome a luz inteira ou, ouvindo o Zeca Afonso ou o Simon e o Garfunkel, volto a poder aninhar-me no teu colo, no chão de uma sala às escuras, a deixar-nos ser, na pele inteira, do tamanho da verdade que o conforto do silêncio nos deixa aos dois.
volto à gaveta para escrever um bilhete desajeitado e trapalhão,
desculpa, a sério, malandra,
desculpa.
ou somente para pensar em ti - e na luz de todo o perdão que me deste com os teus braços sempre doces, o teu sorriso como uma janela que se esqueceu aberta um verão inteiro e a tua saudade doce de quem espera, no banco de um jardim qualquer, que eu chegue - e isso chega-te.
eu chego-te, o A. chega-te.
mas, mãe, uma gaveta não chega para ti - eu sei.
mesmo assim, quando não estiver, entra, senta-te e espreita, que eu deixo.
sorri, de novo, como na fotografia na varanda atravessada pelo poente na praia,
recebe, de novo, as flores que te dei e secaste e deixaste dentro dos livros
[sabes, mãe, elas cheirarão, para sempre, à minha gratidão.]
entra no meu quarto, fica e demora-te no meu amor por ti, mãe
a sério.
uma gaveta perto do coração não chega, eu sei.
mas o resto, mãe, anda comigo todos os dias
acredita,
eu serei a gaveta mais cheia de luz onde viverás sempre
e onde se ouvirá repetida pelo mar a esperança eterna de um regresso.
Obrigado.
RM| XX-I-MMXVII
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