Se estivesses aqui quase posso adivinhar-te as palavras,
Menino, que é essa tristeza que traz?,
Eu provavelmente não te diria nada, os meus braços que se ancorariam na praia generosa dos teus ombros e assim ficariam até que o mundo doesse um pouco menos.
Demorei-te nas palavras, meu amor, não foi? Tu saberás que só não quero chegar às palavras que pronunciem ou insinuem, de forma alguma, a tua ausência, que te desdigam, que te ultrapassem, que te façam menos minha e menos perene.
A tua morte impôs-me ao coração uma quarentena, minha malandra, foi o que foi - os caminhos, outrora tão fáceis, tão planos e serenos são, nesta hora, uma geografia desabrigada, ventosa e sombria. Havia, sei bem, na palma da tua mão a bússola que sempre me apontou o caminho certo, havia no bolso da bata do teu uniforme as chaves de nossa casa. Por tua causa, nunca me perdi.
E, sabes, os corações em quarentena ocupam-se, muitas vezes, a recordar. E eu recordei-te - nos álbuns que, um depois do outro, não resisti em ver e rever, fui encontrar-te sorridente - a nossa felicidade iluminava-te o rosto inteiro e, tu, com esse teu coração capaz de um amor que dicionário algum jamais alcançará, agradecias ao teu Deus a bênção que os outros recebiam.
Só porque os outros éramos nós - os teus, os teus meninos.
Acho que nos cozinhaste a vida de uma forma incomparável - amor com fartura, açúcar em doses generosas, paciência infinita, compreensão e afecto que não encontro em nenhuma mercearia e um toque que era só teu e que levaste contigo.
Tu, sim, tinhas mão na receita da minha vida, sabes? Foste tu, em parte, obreira daquilo em que me tornei e, por ti, tinha sempre vontade de ser bom.
O teu menino, um herege não baptizado desde a primeira hora, testava-te, testava a solidez da tua fé,
Gó, detesto aquela parte em que esta brigada de papa-hóstias me quer beijar. Tens a certeza de que estas bélhas - assim mesmo, bélhas - puseram cola que chegue nas placas? Achas que elas fazem ideia do que significa "hosana nas alturas"? É que as caras delas dizem-me mesmo que não!,
Olha lá e que é isto de se pagarem missas? Estás tolinha, por acaso? O dinheiro não te custa a ganhar? Não sei se sabes mas o Vaticano tem um banco! Um banco, Gó!,
Achas que devo continuar a estudar para lá da quarta classe? É que a Nossa Senhora só dá em aparecer a pastores e assim não vou poder chegar a vê-la! E achas mesmo que a Irmã Lúcia sabia guardar segredos? Ela devia confiar pouco nos seus instintos, senão não se enclausurava num convento, não te parece?,
Sabes que a Lei do Protocolo de Estado foi revista e, finalmente, os teus amiguinhos de batina não terão mais lugar de destaque em cerimónias de Estado, não sabes?,
Eu fui essa pessoinha - sim, esse fedelho e jovem insuportável que, no fundo, tudo o que queria era que o mundo não te doesse e que, apesar de tudo, nenhum mal te pudesse levar para longe de mim.
Fui também a criança que, ao ver na televisão as velas acesas, em vários 13 de maio, se emocionava quando sabia que, algures naquela multidão, estarias tu e a tua vela "acesa por causa dos meninos."
Ainda agora, aqui, tu a dizeres-me,
Menino, é a porca da vida!,
E eu a rir-me e a achar que o Coppola se esqueceu de ti e do teu potencial para integrares um filme dele.
Tenho saudades tuas todos os dias. E precisava que tu, tão mais sabedora que eu nos mistérios insondáveis da fé, estivesses cá só para o caso de termos todos que voltar ao IPO onde, da última vez, a tua voz nos emprestou o ar que nos faltava para crermos que o meu Pai iria sair, daquela vez, de lá.
Tal como nos tempos da escola, preciso da tua mão-bússola para encontrar o caminho para casa. Tal como nos tempos da escola preciso de te contar que, desta vez, as lições são mais duras de aprender e que, sim, talvez precisasse de uma cunha tua com o vizinho do andar de cima.
Foi a primeira vez que não te dei os parabéns, foi a primeira vez em que, sentado na minha cama, olhei para o telefone e não pude ligar-te e ir a correr ter contigo.
82 anos, menina!, diria,
Aos poucos, Gózinha, tento furar a quarentena.
Aos poucos, tento relembrar-me da receita com que só tu nos compunhas as vidas.
Aos poucos, por ti, lembro-me de que ingredientes quiseste que o meu coração sempre tivesse.
Tu foste "a padroeira da minha vida!", como te dizia a rir-me.
Não entendo muito da tua religião, sabes?
Mas, no coração, sei o suficiente para reconhecer que a luz do milagre que tu és acenderá o escuro de todas as minhas noites.
Tu celebravas o 13 de maio.
Eu, em todos os 06 de março, acenderei uma vela.
Gó!,
Diga menino, diga!
e tudo ficará, finalmente, bem.
Parabéns!
Um beijo,
- R.
RM|XIX-III-MMXX