Rewind

quinta-feira, 19 de março de 2020

06.03| Gó,

Gó, 

Se estivesses aqui quase posso adivinhar-te as palavras, 

Menino, que é essa tristeza que traz?, 

Eu provavelmente não te diria nada, os meus braços que se ancorariam na praia generosa dos teus ombros e assim ficariam até que o mundo doesse um pouco menos. 

Demorei-te nas palavras, meu amor, não foi? Tu saberás que só não quero chegar às palavras que pronunciem ou insinuem, de forma alguma, a tua ausência, que te desdigam, que te ultrapassem, que te façam menos minha e menos perene. 

A tua morte impôs-me ao coração uma quarentena, minha malandra, foi o que foi - os caminhos, outrora tão fáceis, tão planos e serenos são, nesta hora, uma geografia desabrigada, ventosa e sombria. Havia, sei bem, na palma da tua mão a bússola que sempre me apontou o caminho certo, havia no bolso da bata do teu uniforme as chaves de nossa casa. Por tua causa, nunca me perdi. 

E, sabes, os corações em quarentena ocupam-se, muitas vezes, a recordar. E eu recordei-te - nos álbuns que, um depois do outro, não resisti em ver e rever, fui encontrar-te sorridente - a nossa felicidade iluminava-te o rosto inteiro e, tu, com esse teu coração capaz de um amor que dicionário algum jamais alcançará, agradecias ao teu Deus a bênção que os outros recebiam. 

Só porque os outros éramos nós - os teus, os teus meninos. 

Acho que nos cozinhaste a vida de uma forma incomparável - amor com fartura, açúcar em doses generosas, paciência infinita, compreensão e afecto que não encontro em nenhuma mercearia e um toque que era só teu e que levaste contigo. 

Tu, sim, tinhas mão na receita da minha vida, sabes? Foste tu, em parte, obreira daquilo em que me tornei e, por ti, tinha sempre vontade de ser bom. 

O teu menino, um herege não baptizado desde a primeira hora, testava-te, testava a solidez da tua fé, 

Gó, detesto aquela parte em que esta brigada de papa-hóstias me quer beijar. Tens a certeza de que estas bélhas - assim mesmo, bélhas -  puseram cola que chegue nas placas? Achas que elas fazem ideia do que significa "hosana nas alturas"? É que as caras delas dizem-me mesmo que não!

Olha lá e que é isto de se pagarem missas? Estás tolinha, por acaso? O dinheiro não te custa a ganhar? Não sei se sabes mas o Vaticano tem um banco! Um banco, Gó!, 

Achas que devo continuar a estudar para lá da quarta classe? É que a Nossa Senhora só  dá em aparecer a pastores e assim não vou poder chegar a vê-la! E achas mesmo que a Irmã Lúcia sabia guardar segredos? Ela devia confiar pouco nos seus instintos, senão não se enclausurava num convento, não te parece?,

Sabes que a Lei do Protocolo de Estado foi revista e, finalmente, os teus amiguinhos de batina não terão mais lugar de destaque em cerimónias de Estado, não sabes?,

Eu fui essa pessoinha - sim, esse fedelho e jovem insuportável que, no fundo, tudo o que queria era que o mundo não te doesse e que, apesar de tudo, nenhum mal te pudesse levar para longe de mim. 

Fui também a criança que, ao ver na televisão as velas acesas, em vários 13 de maio, se emocionava quando sabia que, algures naquela multidão, estarias tu e a tua vela "acesa por causa dos meninos." 

Ainda agora, aqui, tu a dizeres-me, 

Menino, é a porca da vida!, 

E eu a rir-me e a achar que o Coppola se esqueceu de ti e do teu potencial para integrares um filme dele. 

Tenho saudades tuas todos os dias. E precisava que tu, tão mais sabedora que eu nos mistérios insondáveis da fé, estivesses cá só para o caso de termos todos que voltar ao IPO onde, da última vez, a tua voz nos emprestou o ar que nos faltava para crermos que o meu Pai iria sair, daquela vez, de lá. 

Tal como nos tempos da escola, preciso da tua mão-bússola para encontrar o caminho para casa. Tal como nos tempos da escola preciso de te contar que, desta vez, as lições são mais duras de aprender e que, sim, talvez precisasse de uma cunha tua com o vizinho do andar de cima. 

Foi a primeira vez que não te dei os parabéns, foi a primeira vez em que, sentado na minha cama, olhei para o telefone e não pude ligar-te e ir a correr ter contigo. 

82 anos, menina!, diria, 

Aos poucos, Gózinha, tento furar a quarentena. 

Aos poucos, tento relembrar-me da receita com que só tu nos compunhas as vidas. 

Aos poucos, por ti, lembro-me de que ingredientes quiseste que o meu coração sempre tivesse. 

Tu foste "a padroeira da minha vida!", como te dizia a rir-me. 

Não entendo muito da tua religião, sabes? 

Mas, no coração, sei o suficiente para reconhecer que a luz do milagre que tu és acenderá o escuro de todas as minhas noites. 

Tu celebravas o 13 de maio.

Eu, em todos os 06 de março, acenderei uma vela.

Gó!, 

Diga menino, diga! 

e tudo ficará, finalmente, bem. 

Parabéns!

Um beijo, 

- R. 

RM|XIX-III-MMXX

domingo, 23 de fevereiro de 2020

13.02| Avô,

Meu querido, 

Este ano demorei, não foi? 

Sei que, mesmo assim, tu ouvirás que sempre te chamo. Trago, Vô, os bolsos atolados de coisas que só te queria dizer a ti e, os meus olhos, no deserto de certas horas, sonham uma porta por onde me venhas buscar, 

Pequeno, vem cá

E haver um banco de um jardim qualquer onde nos sentássemos os dois - acho que ia querer fumar um cigarro contigo - eu a pedir-te alguma esperança emprestada. 

Não irias emprestar-ma, meu velho, irias dar-ma, eu sei - o teu coração que foi sempre a mais completa, inteira e generosa das promessas que a minha vida teve. E tem, até hoje. 

Pergunto-me, muitas vezes, se me reconhecerias - o mesmo neto que se abriga, até agora, na certeza do teu amor. Gosto de acreditar que sim e que me reencontro contigo nos rituais que cumpro para lembrar o mundo do teu nome.

Cá de dentro, deste lugar onde a vista para ti é privilegiada, continua a ver-se tudo, continua a mesa posta, continua a conhecer-se o caminho para o verde da Aparecida, continua a colheita do que vem do chão que tu seguraste para e por nós - a estrada, eu sei, a apontar o futuro. 

E a tua mestria em derrotares o medo, 

Pequeno, ou matas o medo, ou o medo mata-te a ti!

Mas, Vô, o medo veio depois - nessa altura, não o conhecia, sabes? Nesses anos de luz acesa, de janelas escancaradas, de horas soalheiras, de terraços para correr, de partidas de dominó e gargalhadas fáceis, eu, ao teu lado, nada temia. 

Uso-te, ainda assim, orgulhosamente como um triunfo definitivo sobre o mal do mundo - nunca deixarás de ser meu e de serem minhas e por minha causa tantas das coisas que, até agora, me aquecem os ossos, me apontam o caminho e me amanhecem a tristeza mais funda.

Vales-me a vida toda - por ti, valeu a pena ter vivido - para te abraçar e poder demorar-me, para descobrir que língua falam os corações como o teu - uma língua sem tamanho, repleta de tanta coisa sem nome, um mar infinito de bondade que vem, sobretudo nas horas densas da noite, trazer-me o eco doce da tua voz. 

Lembro-te cada vez mais, meu querido. Quanto mais conheço do mundo, aliás, mais sinto ser impossível consentir, alguma vez, na tua ausência.

Pega na carta que te escrevi e que levaste contigo, para esse lado, há 20 anos. 

Mudou a caligrafia, Vô, e agora há mais medo. 

Pede que te deixem vir ter comigo para um abraço e um cigarro. 

Abraçar-te seria toda a esperança de que preciso. 

20 anos depois, apenas os meus braços seriam maiores que os teus. 

O teu coração, para sempre, o maior que conheci. 

Obrigado por tudo. 

Um beijo, 

- R. 

Parabéns! 

RM| XXIII-II-MMXX

sábado, 18 de janeiro de 2020

18.01|PELOS TEUS 96 ANOS,

Vóvó,

Milinha, meu amor, 

Corria o ano de 1924 e, neste dia, há 96 anos, sei que foste esperada com um abraço. 

Houve uma infância dourada em que recebias convites das amigas para irem tomar chá e baptizarem as bonecas, houve pele e verdade suficientes para que não amares os teus fosse uma impossibilidade absoluta. 

Anos mais tarde, em junho de 1987, dar-se-ia o nosso encontro. Disseram-me que o teu coração tremeu com o medo de que os teus gémeos - prematuros - não vingassem. 

Quando, em pequeno, me contaram isto disse-te, 

Milinha, por isso é que vou cuidar do teu coração a vida toda!

Ver-te feliz com os teus olhos azuis-abrigo acesos de alegria foi, em todas as horas, a minha vontade mais funda. 

Estavámos em 1998 e o país ardia com o primeiro referendo à IVG. Eu, na altura com onze anos e, em boa verdade, já avesso à neutralidade, quis pôr o assunto em cima da mesa. 

Era um dia quente - jantava-se no terraço, 

Então meus amigos, já decidiram como vão votar? Eu ainda não posso fazê-lo, por isso, façam-no bem, faz favor. 

E expus o meu ponto de vista - pessoalmente, se soubesse que seria Pai, quereria conhecer os meus filhos. E disse mais - ninguém é a favor do aborto. Mas não podiam continuar a condenar mulheres como se queimassem bruxas.

O A. estava comigo e os Pais e vocês ouviam atentamente.

Até que eu lancei para o ar, 

E o que sabemos nós verdadeiramente das vidas dos outros?

Defendia que se acabasse com a hipocrisia que, como sempre sucede, vitimava mais as mulheres pobres - essas que não sabiam onde ficava Londres e as clínicas onde os mais hipócritas de todos emendavam as "asneiras". 

Falámos todos muito, nessa noite - tu, o Avô e os Pais concordaram comigo e com A. 

Anos mais tarde, em 2007, fomos votar cedo. 

Cruzei-me contigo e disse-te, 

Diz que sim, não é, Milinha?, piscando-te o olho,  

Aquela conversa sempre na minha cabeça e o fim da hipocrisia que, em família, escolhíamos. 

Outra conversa, também no terraço, 

Vovó, Vovô, no vosso tempo, que métodos contraceptivos usavam?,

O Avô muito prontamente explicou-me e, em jeito de brincadeira, atirou, 

Nunca confies nesse engodo das temperaturas! Dá asneira!

E eu, 

Oh Vô, se calhar vocês aqueceram foi demais!

Todos se riram. 

Hoje, eu com 32 anos, tu com 96, o Avô que faria 100 este ano e esta conversa não ter tempo. Vocês foram sempre o futuro. 

Uma vez disse-te, 

Vó, nem parece que nasceste em 1924!, 

Pequeno, nós não somos do tempo em que nascemos, devemos ser do tempo em que vivemos

O amor começa, como sempre digo, com o espanto.

Não estava condenado a amá-los - amo-os porque não há outra coisa que me mereçam. Mais - o meu amor não será nunca retribuição suficiente para o milagre que foi o chão do meu caminho. 

Não acredito no amor sem carne - devo ter quase deslocado, umas quinhentas vezes, no mínimo, as clavículas dos que amo. Se é para abraçar, seguro-os inteiros. Toda a vida, eu a dizer, 

A ternura dói!

Eu tenho os olhos nas mãos, está visto. 

A minha Avó ria-se imenso das minhas investidas junto da nossa Gó, 

Oh Gó, mas porque é que os pobres não se zangam mais? Se não fosses católica, eras mais refilona, sabes?, 

Oh menino, o menino não sabe que os santos foram pessoas como nós? Que a vida deles nos pode servir de exemplo?, 

Olha, já sei qual seria - Maria Madalena! Essa, ao menos, segundo consta, teve direito a algum regabofe antes de ser santa!, 

Tive sempre uma gratidão imensa pela liberdade com que me educaram - quanto mais livre me deixavam ser, mais refém ficava de tudo isto. 

É com a liberdade que se prende para sempre e em definitivo. 

Diz a nossa Agustina que toda a família é uma forma de sequestro. Eu, até hoje, sofro de Síndrome de Estocolmo, coitadinho. E pior, desejo ardentemente que se esqueçam de nós para aqui - todos juntos, todos mais livres para voarmos porque o chão é de uma pedra que não quebra. 

Outro dia, 

Olhe, doutor, quando a sua Avó morrer, vai-me deixar saudades, diz-me a funcionária que lá temos agora. Depois da Gó, essa uma de nós, serão todas só isso. 

[Wrong choice of words, pá, pensei]

Devo ter fulminado a criatura quinhentas vezes, enquanto, por cima do ombro dela, intuí que a minha Avó poderia ter ouvido a pérola. 

Apresso-me a sentar-me junto dela, 

Já viste esta, Milinha? Está cheia de pressa para receber o último salário que levará desta casa, ao falar assim de ti. Nem para ela é boa, coitada!

A minha Avó aperta-me a mão no sofá, sorrindo.

Amparo a minha Avó e, com isso, amparo a minha vida.

Tiro o meu fio de prata - o meu "guizo" - como lhe chama o meu irmão. 

E digo à minha Avó que aquela corrente somos nós - a cruz que a minha Mãe me deu, a cruz que ela me deu, a medalha que foi do irmão mais velho dela e uma medalha da Senhora do Carmo que comprei, num dia 30 de agosto, só para dizer à minha Avó que a mãe dela, Maria do Carmo, não estava esquecida. Ela que faria anos nesse dia. 

O fio dá-me sorte, como eles me deram.

Em pequeno pedi à minha Avó, 

Fala-me do mal

O que o meu coração queria saber era como se supera o lixo do mundo, como se emendam os erros, como nos salvamos nós, apesar de tudo. 

Aprendi a viver mas, também, a sofrer com a minha Avó.

Ao ouvir, muito cedo, das falhas do mundo, preparei-me para elas. E descobri que o amor salva. Aliás, que só o amor salva. 

A minha Avó salva-me todos os dias,

Pequeno, só quero que um dia um neto teu te ame como só tu me amas. 

Toda a vida me perguntaram, 

De onde raio te vem tanta alegria?

Daqui. - um dedo que aponta para o coração e um coração que apontará, em todas as horas, o caminho de casa. 

Obrigado, meu amor! 

Parabéns! 


RM|XVIII-I-MMXX

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

2019|

«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin


2019 não foi fácil. 

2019 foi o ano em que muitos mais anos morreram - o futuro, tal como sempre o quis, morreu ou esteve perto disso, muitas vezes. 

Comecei este ano a dizer adeus ao meu Padrinho - a maior prova que tenho de que a família é quem, como somos, nos reconhece sempre. 

Este foi também o ano do, 

O seu Pai talvez não passe da hora de almoço,

E essa frase ser, até agora, como um veneno no sangue, uma lembrança crua de que todo o amor é um sonho sobre o abismo, de que há, de uma hora para a outra, que não deixar que o sangue passe num coração que dói. 

Só me lembro de que era Verão - de que, entre as idas ao IPO, em 2019, não fui nadar uma única vez, não mergulhei no mar, não houve sal na minha pele - só nos meus olhos. 

Foi com o meu Pai que aprendi a nadar e, nesse Verão em que, até à hora do almoço, o meu Pai podia estar morto, eu só me lembrava, 

Rica, nada sempre paralelamente à costa. Tens mesmo que saber boiar. Todos os nadadores sabem boiar para descansarem,

E eu a ser, de repente, atirado para fora de pé. 

2019 foi, também, o ano em que o meu Pai se salvou e em que eu fui, muitas vezes também, salvo. 

Salvou-me o meu irmão, 

O Papá, se morrer, não conhece os netos, A., 

E, de repente, o meu irmão ter-se tornado o pai do meu pai - que medicação tomar, como falar com o médico, como mostrar os dentes quando é preciso, como saber tudo sobre terapias, estatísticas, taxas de sobrevivência do cancro do pulmão, efeitos secundários, vitaminas, suplementos alimentares, botijas de oxigénio e tudo quanto fez do Né, uma vez mais, o melhor de nós os dois. 

Há dois anos que o meu irmão me poupa e, há dois anos, que é ele o meu colete salva vidas. 

Salvou-me, igualmente, a nossa Gó com a luz do seu amor. Em Novembro de 2019, não a pudemos salvar nós.

2019 foi, por isso, o ano em que voltei a ir espreitar o recreio da creche, a passar em frente ao muro que resta do que foi, outrora, a minha escola primária, 

Meninos!

E saber, com uma certeza de granito, que ela é mais minha do que muita da minha família e que, graças a ela, conheci um bem que não cabe nas palavras deste mundo. 

2019 foi o ano em que os telefones que tocaram me assustaram sempre. 

Passei a adorar um dia absolutamente banal, 

Que se passou?,

Nada

Em 2019, não fui uma única vez ao teatro, não matei finos com amigos, em frente ao mar e disse que não a demasiadas coisas que queria muito ter feito. 

Salvaram-me os livros e os filmes, claro. 

E salvaram-me os outros - amigos que, sem o saberem, me relembraram de que não estava esquecido, colegas que me perguntavam, 

Doutor, está tudo bem?,

2019 foi, aliás, o ano em que senti que há gente demais a tratar-me assim - devo aceitar que cresci?

Doutor uma ova! O meu nome é Ricardo!,

Salvaram-me a minha Avó e a minha Mãe - tecto, chão e luz da minha casa. 

E salvou-me, também, a dor dos outros - 2019 foi o ano em que alguns colegas - detesto a palavra, porra. - quase partiram. Tudo correu bem e estivemos juntos num jantar de natal em que, em silêncio, só pedi que cá estivessem todos comigo para o ano. 

Outros, infelizmente, não viverão em 2020 - para esses, onde quer que estejam, um abraço apertado e deles, para sempre, a lembrança dos abraços que recebi. 

2019 foi um ano de novas amizades e de reencontros. 

Tenho esperança em 2020 e de que Alguém saiba o que faz. 

2019 foi um ano de boas conversas, mas, sobretudo, de melhores silêncios.

Fui sempre atento aos outros - gosto demasiado de observar os outros e, por isso, fixo-os como a verdadeira paisagem do mundo.

Há uns anos, por graça, quando me perguntaram,

Vícios?

eu respondi, 

Gente

Em caso de dúvida, pergunto sempre e espero a resposta, 

Está tudo bem?

Mas nunca está tudo bem, minha gente. 

Cuidem dos vossos e

lancem-se para fora de pé, se puderem. 

Quem nos ama, jamais nos deixará náufragos e sozinhos. 

Um abraço, 

- R. 

RM|XXIV-XII-MMXIX

domingo, 10 de novembro de 2019

Porque a Mãe faz anos,

Mamã, 

És o destinatário cimeiro a quem o meu coração estará, até ao fim, endereçado. 

É que ele, sabes, teima sempre em alcançar-te - mesmo tendo de engolir a distância, de fintar os infinitos desaires e encruzilhadas do caminho, ele irá, eu sei, ter que repousar junto de ti. 

Só tu me decifras - há, por dentro dos corredores dos meus ossos, divisões de que apenas tu tens a chave, locais secretos onde somente tu sabes onde guardo as sombras absolutamente precisadas da luz infinita do teu amor. 

Tu moras-me cá dentro - é ouvir-te a afinar-me as cordas no peito, a correr o veludo pesado da dúvida, a abrir as janelas por onde há de entrar o abraço da esperança e de onde se verão, certamente, no horizonte, as primeiras pinceladas de um futuro que só pode ser bom. 

Dizes-me que aprendi a ler e a escrever sozinho e muito cedo. Que foi com a nossa agenda telefónica - a capa de couro castanho - Telefones, gravado a dourado -, o papel amarelado, as vossas caligrafias que eu procurei imitar e cujo significado, depois de entendido, eu copiava com a minha letra de puto minúsculo com cerca de quatro anos.  

Estive com ela, hoje, na mão. Reparei que, já naquela altura, o meu interesse foi todo para os nomes dos nossos - "Mamã" e "Papá" - os Avós -, "Casa" - a nossa casa - e, logo hoje,"Glória - casa".

[Será este o sinal que te pedi, Gózinha? Estarás, finalmente, em casa?

Apeteceu-me tanto ligar-te, sabes?]

Percebi que aprendi a escrever com as letras com que se escreveu, afinal e toda a minha vida, o amor. Acho que isso explica parte do que sou - o amor existia e, havendo um número para onde ligar, eu estaria bem - poderia chamar-vos, poderia, como num búzio, ouvir-vos a voz e saber que viriam.

Mãe, foste tu quem me ensinou a conjugar o amor - és professora, é verdade, e isso terá ajudado. Mas, cá por casa, o amor, por tua causa, existe em tempos e modos que não pertencem ao mundo das regras gramaticais.

Entre nós, por exemplo, o presente é sempre mais-que-perfeito. O condicional é uma embalagem esquecida, nunca aberta numa prateleira qualquer e, sim, o futuro, a existir, só pode ser na primeira pessoa do plural - nós - nosso, portanto. 

Toda a vida, trocámos cartas - mesmo dentro da mesma casa, éramos o carteiro um do outro e, no fim de contas, do que precisava absolutamente de ser dito. 

Havemos de voltar ao Estio de cal branca de Lagos e da Meia Praia que foi nosso toda a vida. Sentados os dois, ver-te-ei puxar de um cigarro e, juntos, desfrutaremos da nudez transparente das nossas intenções e da segurança funda que as nossas raízes, entrelaçadas, têm junto do mar - do mar, sempre.

Todos os dias falamos, todos os dias, 

Amo-te muito,

Ninguém nos ama como tu e crê, malandra, que ninguém te ama tanto como eu e o Né. 

Serás sempre a razão porque nunca desistirei - a bóia de que todos os náufragos precisam e, infelizmente, nem todos têm. 

És o bem num grau superlativo e absoluto - nem o sintético, nem o analítico me chegam - estás para lá disso.  

Celebro a tua vida e agradeço-te por me teres dado não somente a minha vida - mas esta vida. 

Quem aprendeu a escrever, como eu, pelos vossos nomes e quis decorar-vos logo o número de telefone, é alguém com o coração endereçado. 

A vida tem-nos sido um bom carteiro. 

Tu nunca te atrasas, um minuto que seja, a receber o que te destinei. 

E a enviar resposta - sempre o que quero e, sobretudo, sempre o que preciso. 

Obrigado por este amor sem estrada que o canse, ou tempo que o esgote. 

Obrigado, todos os dias, meu amor. 

Parabéns!

Beijos mil, 

R.

RM|| X-XI-MMXIX

sábado, 9 de novembro de 2019

Gó,

Meu amor, 

Escrevo-te, hoje, como sempre, na língua que o meu coração fala. Escrevo-te, como reconhecerás, na língua que ele aprendeu também contigo. 

Falam-te, debaixo da minha pele, 32 anos inteiros da mais absoluta entrega, do mais puro dos encontros, de um caminho todo de verdade, de devoção e da luz de um amor que nasceu para ser eterno. 

Serás sempre o mais perto que estive, alguma vez, de Deus - pela tua mão, sob a atenção doce dos teus olhos, embalado pela doçura morna da tua voz, eu fui testemunha do milagre que nos contemplou quando nos escolheste, sempre que permaneceste, nos amparaste e salvaste. 

Por ti, eu quis sempre ser bom - pendurado nos teus ombros, agarrado ao teu pescoço ou aconchegado no teu colo, eu soube-te a minha casa. 

O melhor de mim, tantas vezes vem, até hoje, de ti - há uma vela que a tua presença sempre foi, um caminho que, apesar de tudo, sempre descobri - porque te tinha, porque estavas lá, porque tudo tinha volta - e as voltas, fossem quais fossem, eram um regresso a ti, ao teu cuidado extremo, ao teu sorriso como um abraço, à porta no trinco que foi o teu jeito de nos amares. 

Ainda há pouco, em Agosto, eu e o A., no IPO, 

A., que sentido é que isto faz? Achas que, ao menos Deus, nos poderá salvar?,
R.,vais ver, o bem manifesta-se sempre. Isto não pode acabar aqui.,

O teu Dedé, o meu Né, o meu irmão-fortaleza que, há quase dois anos, me ajuda a perceber que os filhos nunca se perdem dos pais, que só o amor nos pode, de facto, salvar e que, em silêncio, sem queixas, sem hesitar um segundo sequer, me tenta poupar de tudo quanto seja mais sofrimento, mais dor ou medo.

Bom aluno, o teu Dedé, o meu Né, Gózinha, meu amor. 

Nesse preciso momento, o telefone tocar - tinhas que ser tu, só podias ser tu - aí vinha a minha resposta, 

Menino, já soube do Papá. Como é que vocês estão?, 
Estamos para aqui, Gó. Olha, fazes mais uma coisa por nós?, 
Diga, menino, diga.,  
Pedes ao teu Deus que salve o nosso Pai? Dizes-lhe que ainda é cedo?, 
Oh menino, claro que sim, por vocês faço tudo. Sempre., 
Oh Gó, gosto tanto de ti, sabes? Nunca te esqueças disso. Estás sempre no meu coração.,
Os meninos também. Gosto muito de vocês, 

Naquele corredor estreito para um mar bravo de angústia eu, por momentos, achei que Alguém, por nós, tinha estado por detrás da impressionante coincidência em que as tuas palavras nos chegaram - como um bálsamo, como um agasalho que se veste, um antídoto contra a solidão incerta da dúvida e do desconhecido. 

Devo-te tanto - tu, os Avós e os Pais são, para mim e para o A., uma espécie de santíssima trindade em que a carne se coseu no espírito, tudo se pôde sempre enfrentar porque havia um lugar onde sempre nos esperavam. 

Parte de mim, vai contigo - eu sempre fui o dos dias até ontem - esse que, por entre os desafios à verdade da tua fé, sempre se sentiu inteiro por descobrir, em ti, tanto do que me faltava saber. 

Vou amar-te sempre, vou chamar-te sempre. 

Esta semana, voltaste a casa dos Avós. Pediste que te trouxessem, 

Quero ver a Senhora, 

E voltaste à nossa casa, ao teu quarto, à nossa sala - voltaste ao sítio onde foste feliz. 

Soube hoje que disseste,

Minha Senhora, é a última vez que subo estas escadas

Foi cedo, demasiado cedo. Os nossos vão sempre de véspera. 

Arranja forma de me dizeres onde estás e que estás bem. 

Quando chegar a minha hora, chama, 

Menino

Estaremos juntos. 
Eu terei voltado a casa. 

Obrigado por tudo, Gó. 

Todos os beijos, 

R. 

RM|| IX|XI|MMXIX

domingo, 25 de agosto de 2019

24.08| Avô,

Meu querido, 

Ficámos teus desde o primeiro dia. 

Guardo-te, até hoje, como uma prova de que o amor pode existir para lá de qualquer medida e que, uma vez acesos os corações por onde ele passa, nada há que possa, jamais, apagá-los. 

Foste tudo para a Mãe - foi em ti que ela sempre encontrou o que lhe faltava, foi dentro dos teus braços que o abrigo foi mais fundo, mais sincero e, mais do que tudo, incondicional. 

Por isso, meu querido, nunca estarão ditas sobre ti ou usadas para descrever o que nos foste, todas as palavras.

Volto ao teu jardim - sento-me contigo enquanto os teus dedos longos desenham a paisagem, teimo em não esquecer a tua voz e, mais do que tudo, corro sempre em direcção ao teu sorriso doce que, até hoje, me chama.

Fala-me das tuas viagens, pedia-te. 

E tu, feliz, recordavas essas outras latitudes, esses outros mundos que te fizeram maior do que quaisquer circunstâncias que te limitassem.

Era um gosto ver-te no jardim com a Mãe - as mãos sempre dadas e os sorrisos postos nas vossas caras como uma toalha encorrilhada de uma mesa em festa que ninguém quer que termine. 

Vocês esqueciam-se um com o outro do mundo - um com o outro estavam inteiros. 

A tua nobreza ia muito para lá do teu sangue - és a árvore mais perene do coração da minha Mãe e, graças ao bem que lhe deixas, há sempre um perfume doce quando ela te lembra. 

Dançavam nos bailes do Palace com essa certeza de que, vivessem vocês mil anos, ninguém vos levaria para longe um do outro. 

Fazes-nos muita falta. 

Fazem falta as árvores perenes na nossa vida. 

Por isso, voltaremos sempre ao teu jardim. 

Como te dissemos em pequeninos, sentados, eu e o A., no cadeirão de couro em frente à lareira, 

Nunca vamos deixar de tomar conta da Mamã, Vovô

Era isso que tu quererias, é isso que ela nos merece. 

Talvez casemos no Palace, quem sabe. 

A Mãe nunca mais teve noites de baile como essas.
 - ela continua à tua espera. 

Estarás lá connosco, isso é certo.

Eu e o A. a tentarmos que, no nosso abraço, a Mãe sinta que a luz do teu nome nunca se apagará. 

Obrigado. 

Parabéns! 

Um beijo, 

R. 

XXV-VIII-MMXIX

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Vovó,

Milinha, 

Há cartas que a vida nos deixa escritas nos exemplos que encontramos pelo caminho. 

Desde pequeno que vivo maravilhado com tudo o que te diga respeito - o amor começa, conforme já disse, com o espanto. 

Que era isso que tu trazias dentro de ti, isso que tu não conseguias deixar de dar, que vontade infinita de bem era essa - a que te fez, sempre e sempre, maior do que tudo?

És a mais perfeita das cartas - há em ti, até hoje, uma caligrafia segura e firme, conheces uma gramática em que se conjuga a luz e o amor como ninguém e és sabedora de um idioma desconhecido das pessoas comuns, dos que apenas existem, dos que olhando, nunca vêem realmente. 

Mais tarde, pude perceber que eras uma carta dirigida a mim - que raio teria eu para que, todos os dias da minha vida, eu sentisse que me procuravas, me desejavas futuro, que me escolhias e querias ficar?

Até hoje, por tudo isso, só quero merecer-te. 

Penso em ti cada vez que o meu coração se aperta e, tal como tu, acredito que o passado não pode ser esquecido. 

A brincar, como te disse outro dia, somos duas casas assombradas - o passado, para nós, é a morada de todas as nossas certezas, o tempo em que as horas nada eram senão alegria e esperança no ventre doce da felicidade. 

No meio do escuro, o meu coração alegra-se quando me pedes,

Posso dormir em tua casa hoje?,

Tu sabes que sim - que, como te prometi, quando quiseres fugimos os dois - voltamos à Aparecida do Avô António e da Avó Maria do Carmo, do Avô Arnaldo e da Avó Maria da Conceição - quero, já te disse, que mos desvendes. 

E tu levas-me, pela mão, ao tempo que veio antes de mim.

Falamos sobre tudo - há, minha Milinha, uma nudez cómoda entre nós.

Fico ainda mais feliz quando me dizes, 

Tu e o teu irmão são as únicas pessoas em quem confio.

Vou amar-te sempre, minha luz.

Abro com um espanto imenso, até hoje, a carta que o teu amor me deixa.

Que carteiro te enviou para nós? - outro dia, o A. chamou-te "o nosso pequeno milagre."

Tu perguntaste-me,

Estás triste, meu amor?

E eu respondi-te, 

Milinha, quem pode estar triste com uma Avó como tu?,

Abraçaste-me longamente 
- e eu sou daí. 

Como uma carta. 

Como alguém que, finalmente, chega onde é esperado. 

Obrigado por tudo, em todas vezes. 

Beijos mil, 

R. 

XXIII-VIII-MMXIX