Aos meus Avós
(o mesmo Amor, todos os dias)
O dia em que tudo começou
O mesmo sol, a mesma igreja
A mesma esperança doce no caminho que se abria
Tu, a minha Avó dos olhos azul-infinito
Ele, o meu Avô das cartas de amor
A escada permanece na fotografia
e os rostos são felizes como se o tempo ali parasse
(sempre há coisas que duram para sempre)
as pessoas são as mesmas, os olhos claros, os cabelos de ouro
(as tuas pessoas, Vóvó)
as pessoas que se levantam das sombras e andam por perto nas tuas palavras
(não os deixes morrer, pedes-me tu)
E o Amor foi um cerco que nos montaram
Um sequestro feliz como se a felicidade nascesse sempre da mesma terra
Ao longe, o verde, sempre o verde e sempre perto
E eu que esperava por vocês escondido debaixo do pó do tempo
Olho-vos daqui aos dois - e agradeço
Que Primavera infinita nasceu naquele dia
E que eternas flores nos deixam vocês no coração
(Era bonito o teu Avô, não era? Gostava muito dele, sabes?)
(Sei, Avó. Eu também.)
E enquanto falas o teu olhar é o mesmo do retrato
- as escolhas, porque livres, justificam-se a si mesmas
Deixo contigo flores onde o Avô descansa
(Ao longe, o verde dos nossos campos a reluzir na luz)
A igreja, o sol, a mesma esperança a nascer de novo
E as flores. As flores que somos nós e que são vossas.
E que voltam. E que voltarão sempre.
Para recomeçar na luz que o abraço do vosso nome
nos deixou no coração.
RM
é noite nos meus olhos, meu amor
se a janela dos teus lábios se não abre
e não pode ver-se o mar aqui de dentro
é noite funda e sem regresso, meu amor
se teus braços se não abrem devagar
como se fosse agora o tempo de morar contigo
o amanhã
é noite sem o pó das estrelas no silêncio, meu amor
se tua pele não vem coser na minha carne
o sonho com doçura
é noite, meu amor
vem rápido, se puderes
e traz o dia
para juntos morarmos inteiros só na luz
RM
a primavera durava
trazias o vestido leve como as sombras que o vento arrasta
e a primavera podia durar ainda
a tua boca trazia o brilho de um fruto doce por trincar
e era ainda primavera nas flores do teu ventre arrepiado
o ar trazia o eco de uma promessa generosa
e eu quis cumpri-la inteira na estrada do teu corpo
o vestido rasgado pelas minhas mãos
a primavera a galopar furiosa no teu peito
a tua pele ardendo como se o sol se deitasse contigo
a tua boca matando na minha toda a ausência
e ser reencontro a facilidade dos beijos que vêm depois
a primavera durava
o vestido como um espelho vazio esperando teus olhos
o teu corpo a vestir o meu muito depressa
a primavera durava
e no céu descia a noite em silêncio
depois do lume que nos matou
chega brisa da noite para nos erguer
como se fosse primavera
e sempre fosse o tempo das flores que chegam com teus olhos
RM
aprendi a dançar nas ondas do teu corpo
pegaste-me nas mãos e elas foram
de repente, a noite não ia acabar nunca
depois das mãos, os meus olhos guardaram-te inteira
todo o mar precisa do seu fundo, bem o vês
de repente, a esperança no que vem nascia do teu nome
depois dos olhos, foi meu peito quem quis contar-te um segredo
toda a pergunta precisa de resposta, bem o sabes
de repente, a solidão era um intervalo na conjugação do teu ser
depois do peito, foram meus dedos que beberam de ti o perfume
toda a memória precisa de um cheiro para durar, bem o vês
de repente, o sonho era o ventre de todas as manhãs
depois dos dedos, foi meu coração quem descansou na melodia da tua voz
toda a alma precisa de um abrigo, bem o sabes
de repente, todos os regressos te traziam
aprendi a dançar nas ondas do teu corpo
pegaste-me nas mãos e elas foram
e elas foram
(tuas, devagar.)
Chamo vida ao teu corpo encostado ao meu
Ao mar que repete um abraço ao longe na luz
E à noite que seduz demorada o horizonte
Chamo vida aos teus lábios ensinando aos meus a fome
Aos filmes que vemos juntos na preguiça de um amor tolo
E ao sabor do teu corpo preso na minha pele
Chamo vida à escuridão em que te dou a mão com força
À loucura de te decorar inteira com os dedos
E ao amarrar do meu destino na maré dos teus olhos
Chamo vida ao ar que me falta para te acabar o nome
Aos infinitos pecados que quero consumar no altar do teu ventre
E ao dormirmos nus no luar de uma janela qualquer
Chamo vida aos poentes em que morrer já não importa
Ao crer na eternidade por cima de todos os abismos
E ao gemer rouco da tua voz quando te sinto
Chamo vida à terra sem tempo em que te deito
Ao sorriso que a tua boca esquecida deixa para mim
E ao silêncio que é o quase esperando-te para ser tudo
Chamo vida ao querer morrer quando não chegas
Ao ter que adiar a rima que o meu corpo faria junto ao teu
E aos dias que nessa hora nascem ao contrário
Chamo vida ao tempo que o teu nome me demora nos ossos
Ao vento que o repete por entre os lençóis onde te tive
E espero.
Espero. Se és tu que vens a morte já não existe.
E a vida durará tantas marés
quantas as necessárias para gastar o teu nome
na areia da minha pele.
RM
06.03
a mesa está posta
e o açúcar dos teus olhos derrete-se sobre mim
a mesa está posta
e a casa corre (deve haver uma festa qualquer)
a mesa está posta
e as flores respiram nas jarras sorridentes
a mesa está posta
e as vozes dançam no improviso da alegria
a mesa está posta
e a tua manhã começou cedo connosco no coração
a mesa está posta
e ainda fugimos para ir à missa contigo
(Menino, dê-me a mão. Ande lá.)
a mesa está posta
e és nossa cúmplice na meninice de sonho e liberdade
(eu e o Né ainda hoje sorrimos no conforto de um Deus que o teu exemplo tornou possível)
a mesa está posta
(mas és tu quem faz anos, neste dia)
Vem sentar-te connosco, Gózinha.
(Chega-te para nós, deixa-te de coisas.)
a mesa está posta, Gó.
(Obrigado por tudo, malandra)
Sabe uma coisa:
no lugar onde morarmos para sempre
será pelas tuas mãos grandes e doces que procurarei no escuro
E ficará sempre tudo bem.
(Gosto muito de vocês, meninos.)
Nós também, Gó, nós também.
(E tanto.)
RM
dizer-te que está tudo bem, Avó
e esconder na noite o medo de que partas
dizer-te que está tudo bem
e ser ainda a criança que dorme no jardim perfumado do teu colo
dizer-te que está tudo bem
e roubar do infinito a medida da gratidão
dizer-te que está tudo bem
e amar o céu que se levanta no azul dos teus olhos vivos
dizer-te que está tudo bem
e ir contigo pela mão ver o mar que dança ao longe
dizer-te que está tudo bem
e ter no peito uma planície inteira de sonho e saudade
dizer-te que está tudo bem
e decorar as linhas do mapa da tua pele
dizer-te que está tudo bem
que tudo sempre esteve bem
que estará sempre tudo bem
enquanto a manhã trouxer o perfume das flores
que deixei junto ao teu nome
no dia em que aprendi que o amor
é morada sem tecto e sem medida.
RM
não sei rezar ao Deus que te levou
as minhas palavras são todas para ti
e para o Deus que te devolve no infinito do verde que desperta
não sei rezar ao Deus que te roubou
as minhas preces são todas para ti
e para o Deus que me diz que há na vida uma porta sempre aberta
não sei rezar ao Deus que se ausentou
a minha esperança é toda em ti
e no Deus que faz da saudade um mar que me liberta
não sei rezar ao Deus que não esperou
o meu futuro é todo para ti
e para o Deus que fez do amor um abrigo numa estrada já deserta
RM