Rewind

sábado, 26 de dezembro de 2009

Morada aberta

Não queres vir habitar comigo o tempo onde a minha vida acontece? Fazê-lo correr rápido como uma criança sem fôlego depois de uma corrida? Contigo há sempre uma vitória - a vitória sobre o meu corpo e a vida; a vitória sobre o vazio do tempo. Contigo posso desenhar na areia do tempo que passa a forma perfeita do teu corpo e dar-lhe um sabor mais apurado depois de o fazer passar em cada dobra e curva insinuante de ti.
Não queres vir habitar comigo o tempo onde a minha vida acontece? E dar-lhe o sabor da tua pele para que o tempo me não saiba a vento que sinto e não vejo? Vem fazer dos meus dias a carne de todos os sentidos; vem habitar comigo esta ilustre casa de ninguém que é uma vida onde o tempo corre e nós o sabemos lá mas não é nada mais que um corpo que nos desgasta o nosso - como o mar de encontro às rochas. Vem morar comigo nesta praia e juntos habitemos o exílio de onde ele nos levará, um dia. Mas iremos juntos, abraçados na espuma e, aí sim, teremos deixado uma morada atrás de nós. Teremos habitado o mundo e semeado no fundo dos olhos desse fantasma traiçoeiro o que a espessura dos nossos dedos conseguiu gravar-nos na alma.
Vem habitar comigo o espaço onde a minha vida acontece. Contigo a minha vontade triunfará sobre o que sei que virá, mas não sei quando.
Viverei na ignorância do que corre ao meu lado. O galope que mora comigo é o do teu nome dito e redito vezes sem conta nas entranhas de mim.
Vem habitar comigo o tempo onde a minha vida acontece para que haja espaço. Para que do esquecimento de que a areia corre sempre e o mar a engole até que um dia chegue a nós, se possam abrir as janelas de uma morada ao sol.
Vem fazer desta morada no abismo, a primavera de todas as promessas e juntos ardamos até ao maior dos calores do estio. Mesmo que tudo passe e as ondas violentas do inverno nos engulam.
Sobre a areia da praia teremos feito nascer a fortaleza sólida do nosso amor. E terá havido um fundo na cadeia interminável dos dias; teremos feito as coisas mais intensas que é uma forma de vencermos o tempo contado. Vivê-las mais a fundo como dois nomes gravados na rocha.
Vem habitar comigo o tempo onde a vida me acontece. Só depois de ti a farei minha - com a mesma vontade com que agarro o teu corpo de areia - e, de súbito, vejo que o tempo tem a doce forma da volúpia e do recorte fino do teu corpo.
E então será o meu tempo - o meu tempo porque nele pus a forma do teu corpo e agora quem mora comigo na praia és tu.
Duas rochas, lado a lado.
Num longo beijo que o mar engolirá, um dia.
Mas que ficarão juntas como antes de tudo ter começado.

Thoughts

Há momentos que queremos que durem para sempre. Coisas onde a nossa alma ficou cativa e que vivem do amor com que lhes vestimos o corpo ausente.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"O Palhaço" por Mário Crespo

O palhaço compra empresas de alta tecnologia em Puerto Rico por milhões, vende-as em Marrocos por uma caixa de robalos e fica com o troco. E diz que não fez nada. O palhaço compra acções não cotadas e num ano consegue que rendam 147,5 por cento. E acha bem.

O palhaço escuta as conversas dos outros e diz que está a ser escutado. O palhaço é um mentiroso. O palhaço quer sempre maiorias. Absolutas. O palhaço é absoluto. O palhaço é quem nos faz abster. Ou votar em branco. Ou escrever no boletim de voto que não gostamos de palhaços. O palhaço coloca notícias nos jornais. O palhaço torna-nos descrentes. Um palhaço é igual a outro palhaço. E a outro. E são iguais entre si. O palhaço mete medo. Porque está em todo o lado. E ataca sempre que pode. E ataca sempre que o mandam. Sempre às escondidas. Seja a dar pontapés nas costas de agricultores de milho transgénico seja a desviar as atenções para os ruídos de fundo. Seja a instaurar processos. Seja a arquivar processos. Porque o palhaço é só ruído de fundo. Pagam-lhe para ser isso com fundos públicos. E ele vende-se por isso. Por qualquer preço. O palhaço é cobarde. É um cobarde impiedoso. É sempre desalmado quando espuma ofensas ou quando tapa a cara e ataca agricultores. Depois diz que não fez nada. Ou pede desculpa. O palhaço não tem vergonha. O palhaço está em comissões que tiram conclusões. Depois diz que não concluiu. E esconde-se atrás dos outros vociferando insultos. O palhaço porta-se como um labrego no Parlamento, como um boçal nos conselhos de administração e é grosseiro nas entrevistas. O palhaço está nas escolas a ensinar palhaçadas. E nos tribunais. Também. O palhaço não tem género. Por isso, para ele, o género não conta. Tem o género que o mandam ter. Ou que lhe convém. Por isso pode casar com qualquer género. E fingir que tem género. Ou que não o tem. O palhaço faz mal orçamentos. E depois rectifica-os. E diz que não dá dinheiro para desvarios. E depois dá. Porque o mandaram dar. E o palhaço cumpre. E o palhaço nacionaliza bancos e fica com o dinheiro dos depositantes. Mas deixa depositantes na rua. Sem dinheiro. A fazerem figura de palhaços pobres. O palhaço rouba. Dinheiro público. E quando se vê que roubou, quer que se diga que não roubou. Quer que se finja que não se viu nada.

Depois diz que quem viu o insulta. Porque viu o que não devia ver.

O palhaço é ruído de fundo que há-de acabar como todo o mal. Mas antes ainda vai viabilizar orçamentos e centros comerciais em cima de reservas da natureza, ocupar bancos e construir comboios que ninguém quer. Vai destruir estádios que construiu e que afinal ninguém queria. E vai fazer muito barulho com as suas pandeiretas digitais saracoteando-se em palhaçadas por comissões parlamentares, comarcas, ordens, jornais, gabinetes e presidências, conselhos e igrejas, escolas e asilos, roubando e violando porque acha que o pode fazer. Porque acha que é regimental e normal agredir violar e roubar.

E com isto o palhaço tem vindo a crescer e a ocupar espaço e a perder cada vez mais vergonha. O palhaço é inimputável. Porque não lhe tem acontecido nada desde que conseguiu uma passagem administrativa ou aprendeu o inglês dos técnicos e se tornou político. Este é o país do palhaço. Nós é que estamos a mais. E continuaremos a mais enquanto o deixarmos cá estar. A escolha é simples.

Ou nós, ou o palhaço.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Pegadas na Areia


Sonhei que estava a andar na praia com o Senhor
e a minha frente, passavam cenas da minha vida.

Para cada cena que se passava, percebi que eram deixados
dois pares de pegadas na areia;
Um era meu e o outro do Senhor.

Quando a última cena da minha vida passou
Diante de nós, olhei para trás, para as pegadas
Na areia e notei que muitas vezes, no caminho da
Minha vida havia apenas um par de pegadas na areia.

Notei também, que isso aconteceu nos momentos
Mais difíceis e angustiosos da minha vida.

Isso entristeceu-me muito, e perguntei
Então ao Senhor.
"- Senhor, Tu disseste me que, uma vez
que eu resolvi seguir Te, Tu andarias sempre
comigo, Durante a minha caminhada , notei que
nos momentos mais Difíceis da minha vida
havia apenas um par de pegadas na areia.
Não compreendo porque nas horas que mais
necessitava de Ti,Tu me deixaste."

O Senhor respondeu me:
"- Meu Irmão. Eu Amo te e
jamais te deixaria nas horas da tua prova
e do teu sofrimento.
Quando viste na areia, apenas um par
de pegadas, foi exactamente aí que EU,
Te carreguei nos braços..."

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Onde há crise, há esperança de Pe Vasco Pinto de Magalhães

Há poucos livros assim. Não lhe chamaria exactamente um grande livro - este não tem a pretensão de encerrar verdades absolutas sobre o que somos e o sentido que isto tem.
Há muito que tinha este livro na estante. E decidi começar a abri-lo todos os dias - como se se tratasse de um momento encaixado dentro do quotidiano em que se deixam as coisas demorar dentro de nós.

Um pensamento por dia. E eis que surge um discurso transparente, de uma simplicidade invulgar. Não há agorrância no discurso; há talvez essa tentativa sincera de comunicar. De deixar correr o pensamento. Por isso se distinguem os padres jesuítas. Porque o dogma não existe. Existe uma crença filtrada depois do crivo do pensamento.

A minha relação com Deus é pessoal. Mas fala-se aqui do Homem. Houve coisas com as quais não concordei. Coisas que me fizeram pensar. Coisas que abracei de imediato. E eis que surge a grandeza deste livro: o ensinar-nos que só da humildade nasce qualquer coisa de verdadeiro. Porque a verdade em si talvez nunca importe. Importa que gozemos o caminho. E o caminho começa com a nossa vontade mas acaba, muitas vezes, no contrário do que ela diz.
3. Fev.
"Quantos obrigados disse hoje? Dois ou três? Acha que não houve ocasião para mais?Só agradeço as coisas que me fazem e me ajudam ou me agradam? Não seria bom agradecer a própria existência e a dos outros? Agradecer até os sofrimentos e as contrariedades que, bem vistas as coisas, são ocasiões de crescimento e de solidariedade com os outros? Quando mantemos os olhos abertos, estamos sempre a agradecer. É agradecer e ser-se agradecido que faz a qualidade de vida."

Conferência com Jaime Nogueira Pinto

Eu vou!

New York I love you


“When it's three o'clock in New York, it's still 1938 in London"

Bette Midler

Mar

A cidade corria num passo ligeiro. O seu pulso era por essa hora um pouco mais suave. Começava o céu a despir o dia e a vestir a noite. E ele viu-se num desses sítios de sempre. Quando habitamos um lugar e lhe chamamos casa, começamos a pendurar nas suas paredes os retratos das ausências.
Ao habitarmos o mesmo espaço, percebemos o que o tempo fez connosco. O mesmo mar - assim imenso como o fundo sem fim de uns olhos que recordava sempre. Mas as ondas já não chegavam à mesma praia - contava com o seu corpo em silêncio como a vida, de repente, lhe fizera nascer essa saudade dos tempos passados.
Ao mesmo lugar podemos voltar completamente diferentes. A mesma morada aberta ao sol - essa onde os passinhos de criança deram lugar ao caminho de um adulto- já foi o lugar onde fora esperar que a noite passasse.
A mesma luz a repousar no fundo do leito calmo das águas. E, de repente, o vento num ímpeto mais caprichoso a deixar os seus gritos escritos nas rochas bordadas de espuma. E, ali, longe dos corpos que se cruzavam consigo na sucessão dos dias, podia finalmente ver o corpo do que mudou - e eis as paredes cheias de pequenos piscares de olhos: e só então percebera que nunca deixara ninguém. Que todos e tudo morava consigo ainda. A algumas coisas simplesmente já não as queria com esse desejo sem tecto que é o amor. Aprendera a vê-las, a namorar-lhes o encanto perdido e a sorrir. (Às vezes, o seu sorriso era cinzento. Lá escapava por entre a baínha firme da serenidade, o arrepio húmido da nostalgia.)
E o mesmo mar. Pelo mar sabia ser essa ainda a sua vida. O mar era o seu espelho - o fio que ligava todos aqueles que moravam com ele na praia. O mar vira com o seu rosto inalterado como tudo foi mudando e, também, como tudo era ainda o mesmo.
Pela face fixa do mundo ele tinha sempre esse norte, erguido no colo ondulante das ondas.
O mar e o sua eterna valsa de luz e espuma lembravam-lhe que a vida nos devolve tudo o que lhe damos. Como o mar cospe tudo o que lhe lançamos. Por isso, confiava nele.
Quando se podia ouvir, porque havia finalmente espaço, era o mar que baptizava o seu silêncio com a verdade que fora a sua. Voltava a memória de tempos felizes. E isso ajudava-o a saber que o seu nome morava nalgumas partes da vida de alguém.
Outras vezes, lembrava-lhe a dor imensa e funda que já fora o pano de fundo de alguns dias. E ele sorria - assim como sorrimos aos olhos de quem já nos conhece muito bem.
Ele amava a vida. E gostava de ser como o mar. E acabar por deixar na areia da mesma praia - essa que era a sua - a memória feliz daqueles que tivera consigo. Acabar por conseguir voltar a deixar na areia da nossa vida as mesmas palavras que dissemos outrora.
Como a verdade que existiu e que o mar nos devolve para que nunca esqueçamos que a verdade por se perder de nós, não significa que um dia não tenha existido.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Avó

Os teus olhos azuis amplos e claros como o sol numa das manhãs de Agosto, em dia de romaria. Esse azul puro como a luz que arrasa todas as sombras do caminho.
Sempre te fixei os olhos - a tua face a envelhecer lentamente, a pele a dobrar-se ao sabor do que a vida nos acende no rosto. O tempo passa - já não me seguras a mão na rua e é hoje a tua mão a caber inteira na minha. E seguro-a com esse medo súbito de quem finalmente percebeu que não estamos à prova de nada; com essa vontade de que pudessemos sempre segurar a mão um do outro.
Contigo descobri que o amor pode ser cego - que o amor é difícil; é feito dessa pedra incerta do caminho da vida. Que a cegueira do amor cega tudo o que nos torna falíveis e reconhece sempre na carne os laços que nos trazem presos uns aos outros.
Essa luz nunca se apagou. Resistes inteira e guardas-nos a todos como pedaços dos jardins de que sempre gostaste.
Hoje disseste-me: "Eu quero sempre a minha porta aberta". E sei que nunca perderei essa vontade de subir as escadas a correr e encontrar o lugar onde mora o corpo perdido da minha infância e que pareces guardar no fundo do cristal dos teus olhos.
Vi a luz dos teus olhos tremer: chegou do fundo da tua memória a figura do teu pai a quem dizes que muito fui buscar. Saiu de ti uma dessas verdades bonitas e límpidas como o orvalho na erva rente aos muros das quintas: esse amor que guardas dentro de ti como se o teu corpo te inundasse das memórias que te mantiveram viva.
A tua memória parece falhar e chega o medo. Apetece-me dar-te a mão. E segurá-la para que nada te aconteça. Peço que tudo passe. Que cheguemos inteiros ao outro lado da rua.
Procuro os teus olhos azuis- esses que abrias muito para saberes se te mentia quando era miúdo. Nunca te consegui mentir. E temo que agora me adivinhes o tamanho da sombra que permanece enquanto tudo não passa.
Nunca se deixa realmente de precisar que nos segurem a mão.
E lembrarei hoje e sempre os teus olhos azuis. Esse pedaço de céu na minha vida. Essa luz imensa e funda que a noite nunca engolia.
Guardas na palma da tua mão os anos que a vida demorou a agigantar-me o corpo. Eu levarei na minha o que uma vida toda não chegará para esqucer.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O lugar onde mora a paz

Os seus corpos eram velhos. Os olhos pequenas covas de luz num emaranhado de linhas e ziguezagues incertos. Traziam o corpo como um peso sobre a vontade que ainda lhes acendia o sonho. Alinhavam-se com os olhos presos no infinito. E quando ele chegava algo mudava na vida deles e na dele também.
A eles chegava o que a vida lhes parecia ter dito para deixarem de esperar. A ele chegava essa satisfação maior que pendurava na parede dos dias mais difíceis. Nada importava mais. Pelos outros somos conduzidos à escala da verdadeira felicidade: só quando importamos pouco ou quando não importamos tudo percebemos o quanto da felicidade é o chamarmos pelo nome dos outros.
Só a solidão morava ali. A casa enorme recolhida atrás de uns portões verdes e umas árvores a habitarem o jardim onde se não via ninguém.
Pensou muitas vezes que aqueles portões eram o símbolo do que nunca chegava: dos filhos que não entram e dos amigos que vão morrer longe de nós.
Ali parecia morar uma linguagem esquecida pelo mundo: moravam os rostos daqueles cuja vida eram os outros; os fantasmas dos outros; os medos dos outros; a dor dos outros.
Ele lembrava-se da sua vida: um mundo farto, um lugar aonde chegar e poder ficar porque nos querem e o amor acontece todos os dias.
Uma senhora segurava a Bíblia: o seu balbuciar era compulsivo; rondava os cantos à sala como que fugindo aos fantasmas do que ainda não veio. Isso é o medo. E o medo vem morar no colo da solidão.
Ele ouvia as suas histórias: e o seu corpo jovem e viçoso já fora deles; os sonhos, a doçura, a garra que ainda nos sobra na juventude já dormira com eles um dia.
Era ali que se sentia bem. Podia tentar explicar porque aquilo lhe parecia infinitamente maior do que quase tudo o que conhecia. Mas isso vivia no silêncio do seu contentamento.
" -Quer dar o seu nome para agradecermos a sua ajuda e os seus donativos nas nossas orações?"
" - Não, irmã, obrigado. Existem outras formas de chegar a Deus."
E era isso que trazia no peito: a recordação daqueles olhos que brilhavam de novo e que ainda hoje não esquece. Aprendeu a nunca deixar sozinhos aqueles que se ama. O amor é uma morada conjunta. Tinha medo da solidão: de ver desaparecer o chão do seu caminho e de se achar perdido no meio de um longo deserto vazio.
A senhora lia a Bíblia. Uma e outra vez. E mais outra, ainda.
Estende-se a mão a quem tem medo. Sempre.
Ocupemos o lugar da solidão e já não precisaremos da Bíblia.
Porque Deus mora na morada conjunta que é o amor.


Tetro

A good movie!

Londoner approach to relationships


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O que o silêncio nos diz

Via gente à sua volta. Rostos pequenos e dedos tocando livros velhos com o aroma do pó a soltar-se do corpo espesso e dormente do tempo.
Através do vidro, a luz desmaiava fina na terra húmida da chuva recente e os ramos grossos das árvores agitavam-se ao sabor do passo apressado do vento.
Via a vida - esse corpo que nos corre nas veias e o mundo como um súbito contínuo silencioso onde tudo se cumpria numa acalmia plena. E eis os nossos gestos; as nossas palavras e olhares a povoarem esse deserto de silêncio.
Reparava num toque gentil de alguém; num sorriso doce que principiava o seu trilho no rosto de alguém e na luz que daí nascia.
E, de novo, pelo vidro via agora as gotas que regressavam para beijar o chão como num ritual antigo a que tievsse vindo assistir.
Que sentido viemos dar ao mundo? Que sentido tem por nós o mundo? Sabia que os nossos gestos e rituais, como a chuva que vem beijar a terra, podem desaparecer. E, então, que sentido o nosso ruído no meio do silêncio natural?; no meio das folhas que bailam no vento neste dia, como em todos os dias, de todos os Outonos?
Que diz o nosso som? Que silêncio viemos nós ocupar com as nossas palavras? O que deixou de se ouvir?
Acreditava que viemos habitar o mundo para que do nosso silêncio nascessem palavras como beijos; palavras como longos abraços quentes. Acreditava que as nossas palavras vieram para encher o corpo que temos no sangue com o som dos que nos conta e do que conta essa vontade que primeiro connosco nasce sem nome e que se chama amor.
Acreditava que connosco nasce essa manta de vida com que cobrimos o silêncio e onde repousamos os nossos corpos e damos as nossas mãos.
Viemos povoar o deserto de silêncio do mundo com o som do amor - esse som grandioso e límpido como a água que caía no vidro da janela.
Connosco há sempre algo que acontece no silêncio - viemos dar ao silêncio o que ele nunca pôde dizer. Ele fala quando com um gesto de corpos próximos se diz tanto.
E se ele não estivesse aqui enquanto a chuva caía? E tudo fosse um espectáculo a que nunca ninguém veio?
E, de novo, o silêncio depois da chuva. Pensava que connosco, com a nossa luta para que sempre tenhamos quem nos beije como a chuva à terra; para que sempre se faça luz no rosto de alguém que sorri viemos dar ao mundo o sentido maior do que nunca emudece. Viemos mostrar que há uma voz maior que é a do Amor.
Essa que continua a falar mesmo quando no barro da terra se dissolvem as cinzas do que já fomos.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Comme s'il en pleuvait_Mayra Andrade

Ne me quitte pas_Jacques Brel

Nos degraus daquela porta

"Sabes que o mundo significa muito pouco, não sabes?" O seu olhar com um fundo de cor firme como tábuas de madeira coesas que não cedem.
A cidade diluía-se em ecos vagos já ali ao lado. E aquela pergunta em jeito de acusação a impregnar o ar como o frio que se infiltra na pele em dias cinzentos de invernia. O que importa, de facto, o mundo?
Pensava ele em como certos dias lhe pareciam mais bonitos através da cortina intensa do seu cheiro; em como certas ausências sabiam bem porque ela estava presente no que restava do traço fino do seu corpo no dele.
E, de novo, o que importa o mundo? Reparava nos seus dedos - longos e finos. A luz do dia emprestava-lhes o fundo mas a luz era somente deles. Desses longos dedos como arados que lhe rasgavam as costas e lhe adoçavam o sono.
Recordava o fundo dos seus olhos onde não nasciam dúvidas - tinham os seus olhos esse fundo visível que sempre têm os olhos daqueles que diminuem as escalas e suprimem toda a grandeza.
Ele julgava perceber que, no fundo, ela sabia que o mundo não vem dormir connosco no útero escuro da noite; que o mundo nos espera sempre com o desfecho das nossas vidas do lado de lá do vidro das janelas. E nunca entra. Quem nos segura a mão enquanto o mundo espera para nos condenar ou nos aplaudir?
Quem sempre entra connosco pela porta de madeira envelhecida de casa sem saber o que os dias nos farão com a surpresa do que ainda não se abriu?
E ele pensava nisso. De como para ele o mundo também era esse fora onde tudo nos acontece e onde somos empurrados sempre em direcção a algo; de encontro a alguma coisa, muitas vezes, vestindo o corpo inefável do vazio. E esses embates são geralmente os que doem mais.
Ela ficava com ele. Desafiando a vida que esperava como se ela nao existisse. Não queria os aplausos e, às misérias adiava-as com risos infantis de quem se deita na cama da fantasia com o corpo cansado de amar. Ela gostava de fintar o próximo passo.
De inscrever no mundo uma expectativa e, no momento seguinte, vaguear deitada nas horas como se a promessa fosse já um leve murnúrio distante.
Ele não era assim. Saía com a face disposta a receber o dia que acabara de chegar e podia dizer-se que caminhava de encontro ao que viesse.
Mas era ela quem ficava com ele, à noite.
Era ela quem entrava com ele na casa grande em frente ao mar com amplas janelas e não lhe perguntava onde estariam os dois amanhã.
Ela estaria com ele. E, por isso, o mundo importava tão pouco. Com o corpo dele a revelar-lhe a alma com toques suaves e alguma firmeza em gestos de volúpia mais acesa ele era o seu chão e o seu céu.
Dele tudo nascia para a ele tudo voltar. Ela sabia que tudo o que lhe acontecera fora fruto da sua vontade solitária quando o seu corpo amou mais um pouco e o mundo não ia desenrolando o fio contínuo da sua narrativa.
Podia ela assim perder menos.
Ele fora percebendo que, de facto, quem importa são as pessoas. Mas apenas aquelas que ficam connosco, independentemente do que nos traz no bolso o mundo, do lado de lá das paredes sólidas.
Ela gostava de inscrever na espessura mecânica do tempo uma valsa e um ritmo diferentes -hipotecava o seu corpo e o seu amor a um desejo incondicionado de partilha. E ao condicionamento esmagava-o com o antítodo poderoso da entrega.
"Sabes que o mundo importa muito pouco, não sabes?" E, de novo, esse olhar sem fissuras.
Ele, enfim, percebera que o mundo importava muito pouco. Importava, sim, essa vontade que alguém tinha de ficar com ele sem perguntar onde iam. Sem querer condicionar a entrega ao jogo que espera para acontecer lá fora.
Ela não aceitava que o mundo pudesse ditar quanto amamos uma pessoa.
O amor é o nosso chão e, frequentemente, o nosso tempo. O tempo do que nos acontece dentro. O tempo onde queremos ficar longe do mundo.
Ela erguia o seu amor como uma espécie de liberdade incondicionável. Como um protesto. Como um segredo contado em surdina que as paredes ouvem mas não contam.
E que ele, finalmente, percebera.

Símbolos


Esteticamente, a bandeira mais bonita da Nação.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Blank Joy

She who did not come, wasn't she
determined
nonetheless to organize and
decorate my heart?
If we had to exist to become the
one we love,
What would the heart have to create?
___
Lovely joy left blank, perhaps you
are
the center of all my labors and my loves.
If I've wept for you so much, it's because
I preferred you among so many
outlined joys.
Rilke

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Caim de José Saramago

Há já uns dias acabei a leitura de "Caim". Não sou daqueles que faz da polémica a sua religião. O meu amor pela escrita de Saramago é já um amor antigo - um desses agigantado pelo prazer de cada reencontro. Por isso, "Caim" seria lido, independentemente do folclore que veio depois.
Portugal é um país estranho. Sempre o foi. No meio da tacanhez, do lodo ingovernável que nunca deixamos de ser, às vezes, lá aparece a genialidade vestida sob a forma de gente.

Saramago é um desses motivos de orgulho.

Não percebo pessoas como esse ilustre desconhecido Mário David que assume o papel do SEF e quase expulsa Saramago de constar na galeria dos que muito nos orgulham. Mas a bondade das intenções está boa de ver - Mário David, um deputado europeu da Nação - engravatado como manda a praxe é já sobejamente conhecido pelos disparates para os quais, ao que julgo saber, a sua função não o habilita. Foi este mesmo, sim, este guardião da moral pública que quis que o governo português (esse defunto e, infelizmente, renascido há dias das cinzas) fosse declarado inimigo da liberdade de expressão no Parlamento Europeu, por causa do episódio do Jornal de Sexta feira e que afirma que Silvio Berlusconi, por seu turno, nada atenta contra ela.

Há que dizer duas coisas e duas apenas: em primeiro lugar, senhor deputado, anda a defender a Manuela errada; em segundo, há uma coisa que Saramago tem e chama-se coerência.

Virtudes raras não abundam, é verdade. Mas no seu caso a ausência é chocante. Deus tem destas coisas.

Quanto ao livro, o motivo por que viemos até aqui hoje, e em hora de descanso, este não desilude. Para os que dizem que a Bíblia não deve ser interpretada literalmente, também esta obra de Saramago não o deve ser. A sê-lo, rapidamente se descobre um domínio perfeito e absoluto do mister de contar estórias. Se não se for literal, depressa se descobre a beleza, a ironia fina, o vigor e o ritmo e cadência com que José Saramgo cria imagens, constrói personagens e nos delicia.

A Literatura sempre foi um espaço de liberdade. Para os que querem cerceá-la, lembrem-se que, em Portugal, a polémica pelo menos tem a benesse de lembrar aos olvidados compatriotas de que há questões a levantar; dúvidas que estripar. Bem vistas as coisas, José, bem que prestaste um bom serviço a esta Nação de ingratos. Cá para mim (não te chamo camarda porque isso seria ir longe demais, até para mim, um homem lúcido, mas às direitas.) podes continuar a ser Portuguesinho da Silva. Peço-te é que, ao contrário da maioria de nós, mantenhas tudo o que felizmente te torna tão diferente.

Por último, não consta que a implementação dos princípios bíblicos seja condição e critério de atribuição da nacionalidade. A sê-lo muitos dos arautos dos bons costumes, esses que como o senhor Mário David falam muito e acertam pouco, seriam um conjunto orgulhoso de numerosos apátridas.

O lugar onde moras, ainda.

A casa há-de ficar vazia, um dia. Depois da tua partida, há uns anos, tudo ficou ainda no mesmo lugar de sempre - os quartos como o retrato fixo do tempo que passa; os corpos cresceram; as pessoas entraram e saíram. Mas, depois de ti, a ausência ficou ainda mais funda. Ou foi mesmo a ausência, essa que chegou quando saiste.
Por vezes, penso que crescer é ir perdendo. Acho que nunca cresci até ao ponto em que poderia perder-te. Sei, hoje, que nunca se cresce o suficiente para aguentar perdas como a tua.
A casa continua a mesma - os retratos de prata como fragmentos de um tempo de infância longínqua que não recordo, mas que as imagens me dizem ter sido feliz.
Vejo-te com o peso de alguns anos, mas a minha imagem de ti, enquanto crescia, foi sempre essa - a franqueza e a rectidão num rosto marcado de pequenas dobras a fazer lembrar papeis antigos.
Poucas pessoas são esteios de uma vida. Tu foste o chão onde aprendi a andar. O céu de quase todos os voos.
Contigo aprendi que os silêncios podem dizer muito - que quase tudo se pode inscrever e gravar na intensidade de um abraço ou na forma firme como se segura na mão de uma criança, enquanto ela cresce.
Talvez por isso nunca tenha gostado de apertos de mão frouxos. Fica-nos muito daqueles que amamos.
A casa continua lá. Vou lá menos vezes, agora. Acho que aprendi a aceitar que a distância não apaga os lugares onde sabemos pertencer.
A minha recordação de ti é um filme silencioso; um contínuo que dói menos quando sinto que a tua ausência me vem visitar. É um antídoto contra cada momento feliz ou doloroso em que não estás lá.
Nunca se chega verdadeiramente a aceitar a morte - o que aontece é que uma ausência permanente nos ensina a caminhar por cima dos buracos que se abrem na espessura frágil de uma vida.
Passaste a morar nas palavras. As tuas palavras que recordo dão-te vida. Frases com uma clareza lapidar ditas em longos fins de tarde lassos no campo.
A terra verde a perder de vista. A nossa terra verde, em que o barro do chão engoliu passos dos que já nos foram antes - os que vieram antes de ti e de mim. A memória como um lugar onde sempre visitamos quem perdemos. Sem saberes, ensinaste-me que te posso visitar sempre.
Com o respeito pela memória que me ensinaste nunca te perdi. Hoje somos felizes, por isso. Porque todos continuamos contigo.
Presa nas palavras vem a luz e a felicidade egoísta dos fins de tarde por entre as vinhas e o horizonte desocupado, ao fundo, por entre o casario branco semeado no monte.
Aprendi a viver contigo de outra maneira. E é dos sítios onde o que me ensinaste me trouxe que te recordo sempre.
(Sinto a tua falta.)
E quase sinto, de novo, o teu abraço forte e o teu riso franco. E as tuas palavras são como os retratos de prata lá de casa - o lugar onde moras, ainda.
E sempre, avô.

A vida, de novo.

Pensava que tudo começa nas palavras. Ou, precisamente depois delas.
É depois de se fixarem as palavras que se nos enchem as mãos ou que, pelo contrário, ficamos sem nada.
Por isso, escrevia. Porque as palavras são dedos que ficam na pele depois dos corpos se terem já abandonado. Mas existem ainda os dedos e o toque que se pode repetir vezes sem conta contra o cansaço do vazio.
Ele sabia que as palavras ajudam a viver. E, através delas, podia haver redenção. A redenção que nos sai do corpo, sob a pele das linhas.
De novo, acontecia o sol a derreter-se na calçada de uma rua ensarilhada numa cidade qualquer.
De novo, os soluços da chuva e os olhos que te veêm com o olhar perdido no cinzento revolto do céu. De novo, voltava o tempo que morria do lado de lá da janela com a vida como o nosso triunfo sobre ele.
E, enquanto o véu das palavras ia revelando o eco do tempo - em passos seguros de um caminho já pisado - de novo, voltava a doçura da tua pele ou a meiguice rouca da tua voz.
E ele podia demorar a atenção num gesto já desfeito em cinzas; podia desenhar uns olhos com as palavras - refinando o traço, apurando o brilho que eles tinham numa noite que já não vem no avesso dos dias.
Por isso, gostava das palavras. Nelas existe o tempo e a exacta medida do quanto as coisas duram em nós. Com as palavras nenhuma despedida chega a ser definitiva - pelo menos não enquanto quisermos voltar ao que, para nós, ainda não acabou.
Nas palavras somos senhores do tempo. Elas prolongam-nos as horas num tempo que já foi. As palavras são, em certa medida, uma promessa de eternidade.
Vive tanto do que já não existe nas palavras - alguém que perdemos; um lugar em que fomos felizes com alguém. Com as palavras tudo pode permanecer ou brihar mais contra o escuro do vazio.
Por isso, escrevia. Para que a vida tivesse a justa medida do que as coisas era para si. E para que continuassem a sê-lo - apesar de muitas delas já não serem dele.
Pelas palavras nunca somos desapossados - continuamos a percorrer o mesmo caminho sem que o chão nos fuja, debaixo dos pés.
As palavras são o familiar - o lugar onde se reconhece a nossa identidade; onde fica presa a intensidade de cada deslumbramento ou miséria.
As palavras são a vida que continua por cima do que falha; o cimento que une o que fica depois da perda. O chão onde nasce o fruto do que principia - alimentado pelo sangue do que, finalmente acabou.

Amar

Amar é não ter corpo
E ter dor
Amar é não ter olhos
E ter lágrimas
Amar é ter chagas
E não ter pele
Amar é ter palavras
E não ter voz
Amar é ter sempre mais do que o que somos
Por nos nascer na pele
Um nome que não é o nosso.

Ricardo Pinto Mesquita

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Mariza@Coliseu do Porto_29.10

Eu vou!

Um risco no céu

Há dias que começam assim - o horizonte esgotado como a esperança debaixo do cimento do desalento. Dias com a sensação de derrota antes mesmo do começo.
O Mundo a parecer, de repente, uma longa e profunda sensação de aridez - o corpo de pedra e granito dos prédios; os passeios e os carros que passam - tudo demasiado concreto, nessa nudez despida de sentido. E a sucessão do tempo como a moldura de uma paisagem e apenas isso.

Isto aqui pode, de repente, ser somente isto: a pedra das estátuas uma harmonia cujo som não se ouve; a pintura como uma morada que não habitamos; a música palavras que não nos dizem onde mora a paz.

E, nesses dias, ele procurava imaginar tudo de cima. E via o céu num desses dias de luz, beijando as folhas ainda presas nos poros do asfalto.

E havia um risco no céu - nessa enorme planície azul, um risco percorria um caminho, que os seus olhos seguiam. E pareceu-lhe singelo esse simples traço no manto imenso e uniforme - uma pequena conquista.

E lembrou-se de que os dias como esse - com o traço baço da dúvida - podem servir para atentarmos na parte e não no todo: na nossa casa, a lareira acesa e o mar que nos vê a vida pelos vidros das janelas; nos sorrisos abertos como braços que nos acolhem; no curar das feridas depois da distância ir morar nas nossas costas.

Há dias assim: em que o sentido das coisas parece morrer sob o corpo moldado pelo hábito. Mas, nesses dias, ele pensava no sentido muito maior que faziam as pequenas coisas: alguém que chega para nos mergulhar numa gargalhada; alguém que partilha um segredo ou um beijo longo numa esquina qualquer.

Ele pensava nas imagens em cujo muro se inscrevera o seu passado: eis rostos felizes; corpos pequeninos donos de expectativas enormes.

Os mesmos prédios e a vida, às vezes, como uma valsa mecânica nas ruas; o carvão escuro das fachadas e o chumbo reflectido no espelho dos passeios.

Sempre houve dias assim - em que o Mundo não fazia sentido nenhum ou, o sentido que fazia era apenas esse: o dos lugares onde mora o que somos.

E, de novo, lembrava - agora com o corpo maior e os sonhos, por vezes, menores - que não importa o todo. Importa precisamente essa parte onde mora a vida, presa no olhar de quem sempre nos espera; esse nosso caminho que abrimos por entre o que não dominamos e, no fundo do qual, sempre existe luz.

Como um risco no céu de uma manhã de Sol.