Rewind

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Os livros da Mãe,

A Mãe lê como quem repete um hábito antigo - abre o coração como a umas portadas de madeira para que entre a luz, se sinta o mundo, se cheire e ouça a vida - para que se veja através de outros olhos, se ouça a verdade no timbre de outras inúmeras vozes que não somente as nossas. 

Gostei sempre disso na Mãe - o gosto que guarda por cada livro, as lembranças e as marcas dos personagens de quem fala como se os tivesse recebido para jantar, lhes tivesse conhecido os segredos mais íntimos, as esquinas mais afiadas ou os sorrisos mais iluminados. 

E sempre, em todos eles, a sua assinatura e a data em que os leu. De certo modo, os livros da Mãe são uma outra biografia que posso traçar dela - quem conheceu e quando, onde estava quando se deram todos esses encontros e, mais do que tudo, pelos sublinhados e notas suas nas páginas, posso ouvir o que disse, então, o seu coração. 

O papel dos livros cá de casa tem a minha Mãe dentro - o cheiro do perfume que usava, vestígios de uma caligrafia que aprendi a reconhecer de imediato, dobras e sulcos nas capas que mostram os quilómetros das viagens que fizeram - eles sempre ao seu lado ou dentro de uma das suas inúmeras carteiras onde, sem que perceba bem, pode, afinal, caber o mundo inteiro. 

Há livros da Mãe que eu leio ou levo em viagem para que as saudades doam menos - mesmo longe, descubro que, ela e eu, podíamos ser amigos dos mesmos personagens, recebê-los, sim, para jantar ou ficar a ouvi-los enquanto durem as páginas e as confidências. 

Abrir um livro da Mãe é, justamente, abrir uma espécie de baú para o tempo que veio antes de mim - passar nos passeios das mesmas ruas, entrar nas vidas e nas casas dessas pessoas e quase poder dizer, 

A minha Mãe esteve por aqui. Lembram-se dela?

Também eu os assino sempre com a data em que os leio, também eu os sublinho e anoto como se, com os sedimentos do tempo e de ambas as passagens pelos mesmos lugares, se pudesse fixar para sempre um encontro meu com o coração da Mãe. 

Guardo os livros da Mãe como partes de um retrato seu que hei de continuar a fazer enquanto durarem as páginas, enquanto puder encontrar dela o perfume doce, a letra desenhada 

e o caminho para casa. 

RM| XXV|XII|MMXVIII

sábado, 10 de novembro de 2018

Mamã,

Porque a Mãe faz anos,

Ouço-te chegar, sempre.

Nos tempos da creche, não falhavas - acontecesse o que acontecesse, essa era a tua hora - a hora de nos ires buscar, de nos ouvires as aventuras daquele dia, de nos trazeres, finalmente, para casa. 

Toda a minha vida foste isto - sempre que foi preciso que me fosses buscar, que me desses a mão, que houvesse um regresso, estiveste lá. 

Na verdade, os meus ossos são as escadas que te ouço subir quando o meu coração se aperta, se interroga, se perde ou duvida - o meu sangue é a tua morada e a minha consciência tem o som meigo da tua voz. 

Por isso, hoje, como sempre, digo que te ouço chegar.

És tu quem conhece, verdadeiramente, a casa que sou - percorres-me as divisões todas, lembras-te de que há que vedar as torneiras onde a tristeza teime em pingar, que há que abrir as janelas e deixar entrar a luz. 

Mas, Mãe, a luz é toda do teu nome, 

Mamã, o que faço?

Não te preocupes, filho, eu trouxe a chave

E a chave que tu trazes, essa de que tu nunca te esqueces, é a chave do meu coração - é a chave que abre a porta da esperança, que inventa outros sonhos, se preciso, ou um outro chão e céu, só para que eu possa continuar. 

O som da tua chegada é o som mais feliz da minha vida - sempre que te lembro, que te vejo ou te chamo minha, estou em casa. 

Devo-te, mais do que a vida, esta vida - uma vida em que houve, até hoje, uma casa, em que me soubeste, sempre, perdoar, em que me arranjaste por dentro como ninguém. 

Tu tens a chave suplente do meu coração - caso eu perca a que é minha, só tu me poderás salvar. 

Vou amar-te sempre. 

E, melhor do que isso, sei que vai ser impossível não te amar. 

Fazes anos, meu amor. 

O meu coração está em festa. 

Sobe-me as escadas dos ossos e demora-te num abraço. 

Para ti, para sempre, a porta fica aberta. 

Um beijo, 

R. 

RM| X|XI|MMXVIII

sábado, 3 de novembro de 2018

Gó,

Gó, 

Foste um rochedo forte contra as minhas inúmeras investidas de miúdo chato, sabes?

Era um puto com perguntas nos olhos, uma criança que teve a liberdade debaixo dos pés, que andou de colo em colo e que foi feliz. 

Eras para mim, bem o sabes, o amor no superlativo - sempre. 

Mesmo assim, lembro-me bem, eu testava os limites da tua fé, media o pulso da tua crença sem perceber, no fundo, que o que queria era poder emendar o mal que achava que o mundo te tinha feito e que não merecias. 

Gó, achas que Deus é justo? - eu, de pijama de seda trazido de Macau, uma espécie de quimono que achavas que me ficava bem, sentado na tua cama, com não mais de oito, nove anos,

É que não percebo como Deus dividiu o mundo entre pobres e ricos e os ricos vão para o céu só por ajudarem os pobres. Isso é instrumentalizar os pobres, percebes? Quem decidiu, antes de tudo, quem fica de que lado?, 

[Round 1] - Menino Ricardo - 1 vs. Gó - 0. 

Dentro de mim, ecoava a história da tua vida - muitas irmãs, uma casa pequenina, uma infância de trabalho, pouco direito a sonhar - o mais longe possível do que eu tive. 

Doía-me tudo aquilo, gostava de poder aliviar algumas das tuas dores, devolver horas inteiras à criança que não chegaste a poder ser. E, antes de dormir, zangava-me com um Menino Jesus que, como criança que foi também, não te deixou ser uma por mais tempo. 

Tu sorriste-me e, enquanto me calçavas as pantufas, disseste-me, 

Menino, a minha vida não foi fácil, sabe? Mas, no meio de tudo, tive direito à minha dose de coisas boas. Apareceram nas nossas vidas os seus Avózinhos e tudo melhorou. O seu Avô empregou a minha família toda, trouxe-me cá para casa e, mais tarde, veio o menino e o Dedé e tudo mudou na minha vida. 

Não acha que Deus esteve por detrás de tudo isso?, 

[Round 2] - Menino Ricardo - um murro no estômago. 

Nunca me esqueci disto, sabes? 

Que os teus olhos me tenham ensinado a ver que na vida há sempre uma razão para agradecer. Que, por muito mal que nos tenha acontecido, há sempre a esperança de que alguém nos estenda a mão e tudo se possa compor. 

Mas eu não desistia, 

Sabes, Gó, quando estiveres aflita, não peças logo ajuda a Deus. Eu ajudo-te no que puder, está bem? Prometo., 

Pelo amor que te tinha, não podia arriscar que a ajuda de que precisasses, pudesse não chegar a tempo. Havia de fazer tudo o que pudesse por ti - era o coração, desde pequeno, a querer salvar-te do que viesse que pudesse levar-te de nós. 

Levaste-me à escola, meu amor, muitas vezes. Na verdade, o teu exemplo tornou-se, até hoje, na mais perfeita lição de amor, de paciência, de abnegação, de coragem e superação que conheci. 

Desculpa, Gó, qualquer coisa. Tudo o que quis, em todas as vezes que interroguei o teu Deus, foi uma resposta para os desaires do mundo. 

Percebo, hoje, que a culpa é dos homens - e que, sim, há pessoas como o meu Avô e a minha Avó que, podendo, estenderam a mão e tentaram fazer a diferença. 

Mesmo assim, tal como te disse, em pequeno, 

Um dia quem te vai dar colo sou eu!

Telefona-me e, se quiseres, diz,

Menino, quer ir comigo e com o Dedé à missa?

Eu vou, nós vamos. 

Por ti, pela fé que tenho no mistério deste nosso encontro e, também, para agradecer. 

Por ti, pela luz do teu coração e pelo bem infinito que te devemos. 

Obrigado por tudo, meu amor.

Os milagres existem. 

Tu és o meu. 

RM| III-XI-MMXVIII

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Milinha,

Preciso de arrumar-me, às vezes, como a uma gaveta grande e funda. 

Ir ver a minha Avó é poder pegar com ela na melhor parte de mim - aquela que ela tão bem cuidou, aquela que ela sempre amou com um infinito que as palavras não alcançam, com gestos que não cabem no tamanho conhecido das coisas deste mundo. 

Vou vê-la porque a amo, vou vê-la porque gosto de voltar à janela de onde se vê o mar azul-verdade dos seus olhos - o mar onde o meu nome nada, até hoje, como uma promessa jamais quebrada. 

Tiro os sapatos, sento-me no chão - a minha Avó mexe-me no cabelo como num ritual antigo; os dedos longos e a meiguice na voz de quem, desde sempre, me esperou. 

E, então, começam as coisas do amor, 

Vovó, tenho a certeza que o Vovô te amou sempre, sabes?, 

Sim, meu querido, o teu Avô sempre me disse, 

Apaixonei-me por ti, Milinha, porque foste sempre lindíssima, vestias-te sempre com elegância mas, sobretudo, por ter percebido onde poderia chegar contigo e o que poderias fazer de mim, 

Fico feliz por ter sabido mais este pedaço da história que também é a minha - ouço a voz do meu Avô, de novo, e estendo-lhe a mão como se o chamasse. 

E, depois, a minha Avó dizer-me, 

O romance da nossa família, meu amor, há de ser escrito por ti. Conheces-me como ninguém e, quando vens, o meu coração pode falar. Os corações precisam de poder falar, sabes?

E a minha Avó parecer-me um milagre - quase 95 anos e estes versos que lhe saem do fundo de uma alma toda luz, ensinamentos que acendem as vielas escuras dos meus dias mais tristes. 

Sempre tive fé nisto - nos meus Pais, no A., nos meus Avós e na Gó. 

Juntos, o mundo estava inteiro dentro dos meus braços, o chão seguro e o céu limpo como uma planície de esperança e paz. 

Ter encontrado uma das irmãs da Gó e ter-lhe dito, 

Então, menina, quando vão ver a patroa? A porta da nossa casa está sempre aberta!,

Dois dias depois, a minha Avó recebeu a Gó e a irmã - vale a pena, por isso, andar na vida de coração aberto e deixá-lo assim - quem nos ama, sempre voltará. 

Vou para perto da minha Avó para me arrumar. 

Volto a vestir o agasalho que são sempre os seus braços, volto para lhe emprestar um dos meus casacos e, sobretudo, para descobrir que um e outro, ela e eu, nos guardamos sempre com essa devoção recíproca, com essa cumplicidade de quem já se amparou muitas vezes nas noites mais escuras das nossas vidas. 

É este o cimento dos meus dias - guardo esta verdade contra a torrente do tempo, insisto em escrever, em repetir, em relembrar como quem agradece a sorte que teve. 

Volto a ti, Milinha, para que o meu coração fale. 

Sei, sim, meu amor, que eles precisam de falar. 

E nos nossos, felizmente, a língua é, até hoje, a mesma. 

RM| I-XI-MMXVIII

domingo, 28 de outubro de 2018

Avô,

A mesa redonda, ainda, no mesmo lugar.
A janela de onde se vê o grande terraço. 
E hoje ser domingo. 

O meu coração que, de súbito, ouve a nossa Gó, 

Meninos, Sr. Mesquita, o chá está pronto!,

Eu, tu, o A. e as peças do dominó espalhadas na mesa; algures, os jornais do dia que lemos, as conversas em que, sem o sabermos, o coração foi gravando um antídoto eterno contra a tristeza. 

E que jogador generoso foste para nós, toda a tua vida. 

As peças mais altas foram sempre para nós - o futuro tinha que ser um abraço teu, mesmo que já cá não estivesses; havia que se compor o caminho e dares-me, a mim e ao A., as peças que desempatassem o jogo. 

Pelo meio, ensinar-nos, também, as regras que foram sempre as tuas - as do esforço, do trabalho, do perdão, da verdade e do afecto num grau absoluto. 

E, hoje, eu saber que os corações que amam fazem sempre batota - como no dominó que se joga com duas crianças, a vitória estava, sim, nas regras que a verdade do que fomos uns para os outros, nos permitiu - nada pôde a morte no meu coração - o teu abraço continua aqui, o chão do meu caminho é obra tua e o céu dos meus sonhos tem a altura que os teus ombros generosos me permitiram. 

Olho a mesa com os meus 31 anos - na caixa de madeira, as peças todas. 

Como no meu coração, tudo continua a postos - até hoje, as peças todas que foram os teus ensinamentos, a memória viva da tua voz alegre quando um de nós te ganhava, 

Parabéns, pequeno!

Até hoje, em cada vitória, tu estás lá comigo, 
Até hoje, em cada tristeza, o teu abraço que os meus ossos sentem

e o vapor quente da saudade que sobe no sangue e embacia o vidro dos olhos.

Trago no bolso as peças todas, Avô. 

No jogo da vida, já ganhei - o manual do dominó do nosso amor teve somente as nossas regras. 

Por isso, é possível a um neto desejar que tivesses tido na tua vida mais peças para que o jogo pudesse ter durado mais. 

A mesa está pronta. 
Eu peço à Gó e ao A. que me ajudem a chamar-te. 

Eu e ele temos no coração, até hoje, as peças todas que nos deixaste.  

Senta-te connosco, Bininho, meu querido.

O chá deste domingo trouxe saudade. 

RM| XXVIII-X-MMXVIII

domingo, 30 de setembro de 2018

Vovó,

O teu braço preso no meu, 

Meu amor, vens comigo ali e vimos já?, 

Palavra de honra que, creio, nunca ter conseguido dizer-te - não

Na verdade, foste comigo, também tu, a todos os lugares da minha vida - nunca, por uma vez, deixei de sentir o teu braço atado no meu, os teus dedos finos e compridos apertando-me a pele como que cegando de vez um nó que não se podia soltar. 

Nunca te perguntei sequer onde íamos - contigo todos os passeios são um ritual de absoluto prazer e cumplicidade - a tua voz, ainda agora, na minha cabeça a puxar a corda do futuro, a ousar sonhar, planear, dançar por cima de todos os abismos e impor-lhe o que o coração te diz sempre - mergulha-se no desconhecido com uma fé de pedra de que, venha o que vier, há de continuar o amor. 

Por isso, atemos sempre as nossas mãos, Vovó, - juntos, seja qual for o caminho, sejam quais forem os lugares por onde a vida nos faça passar, que as nossas mãos sejam como marcos de pedra velha na estrada que contam os quilómetros - mas, sempre, os quilómetros a que estaremos, um e outro, de um regresso, de um reencontro, de um abraço demorado ou de uma conversa longa - sempre isso. 

Que em todas as paisagens, o vento me traga o cheiro de casa - e que eu, vaidoso e feliz, possa passear-te pelas ruas e alamedas todas do meu caminho como a luz inteira que foste sempre para mim.

Disse-te eu, 

Vovó, achas que te agradeço vezes suficientes?, 

e tu, 

Meu amor, eu é que tenho que vos agradecer por serem sempre tão meus amigos, 

Mas eu, ainda hoje, acho que o amor tem que se merecer - que, tal como tu nos esperaste de braços abertos, - a vossa fotografia com a dos Pais, por cima das nossas camas - há que te mostrar que o meu braço está, ainda, aqui - agarra-o, Milinha, e vamos os dois. 

Aprende-se a andar, sobretudo, com quem nos mostra, de verdade, o que é o amor - quando alguém nos ama, o corpo ergue-se, primeiro, para alcançar os braços que o convidam a entrar; depois, mais tarde, o corpo repete tudo como um hábito feliz em que tudo o que quer é que a camisola da pele - e o cheiro da memória - lembrem ao coração que está em casa. 

A minha camisola-de-pele tem os vincos de todos os caminhos que foram nossos e sente, até hoje, o peso dos teus dedos a ensinar-me como se anda pelo mundo. 

Caso queiras ir a qualquer lado, Milinha, pede-me,

Queres vir ali comigo num instante, meu Amor, e vimos já?

eu irei, claro,

só para, como sempre, poder ser o rapazola mais feliz e mais vaidoso da rua - quem nos vir, reparará que, até hoje, a minha camisola-de-pele é a mesma - a mais confortável, a mais perfumada, a mais verdadeira e vincada de todas. 

Nas dobras dos meus braços, as marcas dos teus dedos como vincos de quem nunca se quis perder até chegar a casa. 

Vamos os dois e,

seja qual for o caminho, 
seja qual for a distância, 
que as nossas mãos contem os quilómetros, 

e haja sempre um regresso, 
para um reencontro, 
um abraço 
ou uma conversa longa, 

para mim, que haja sempre tempo de te dizer, 

obrigado

a camisola-pele arrepiada inteira da luz que só tu acendes quando te vejo. 


RM| XXX|IX|MMXVIII




sábado, 15 de setembro de 2018

Mamã,

São as mães quem nos ensina o verdadeiro nome das coisas. 

Tu, minha querida, ensinaste-nos a pronunciar o amor até ao último centímetro possível - há que demorar o amor no fundo dos olhos, nos veios da pele, nas gavetas que trazemos  dentro e, sobretudo, saber levá-lo sempre onde ele falte. 

São, também, as mães quem nos ensina a escutar o silêncio - como um balão cheio de ar quente, como num abraço-de-lareira-acesa, pode ouvir-se igualmente tanto do crepitar do amor, tal como na certeza que existiu sempre quando, pelas tuas mãos e nos teus braços, todos os trapézios tiveram rede. 

Foi contigo que aprendi a falar - a minha voz é, ainda hoje, a tua, o meu coração dança ao som da composição que tu fizeste com tanto empenho, doçura e infinita bondade. 

E, desde cedo, não te importaste que eu desse nomes diferentes às coisas - onde os outros viam tristeza, eu via aprendizagem e crescimento; onde os outros viam erro, eu via uma oportunidade, redenção, esperança e perdão. 

Via tudo isso e, digo-to sem qualquer dúvida, porque havia o teu amor que serviu para coser as fissuras todas, para reatar os nós mais apertados, para reparar com luz, o escuro das fendas mais fundas. 

Por amor, as mães inventam nomes que não existem - tudo para que a estrada continue, o caminho atire em direcção ao infinito, o sonho cresça e o céu seja um telhado alto o suficiente para acomodar tudo isso. 

Sentado no teu colo, os meus poros eram uma escrita que tu soubeste ler sempre - a minha pele veio da tua e continuas, até hoje, no firmamento iluminado dos meus olhos - levo-te comigo a ver do mundo coisas de que não descobri, ainda, o nome; trago-te comigo numa viagem que não sei, ao certo, onde me levará, 

Como em pequeno, 

Mamã, porque é que as coisas são assim?, 

E, até hoje, o procurar no manual de sobrevivência que me legaste no sangue, a resposta que tu darias, que explicação doce seria a tua para os desaires e desencontros do mundo. 

No fim de tudo, por cima de tudo, para lá de tudo, uma coisa que aprendi contigo - as coisas podem ter um nome diferente do que os outros lhes dão - por isso, vejo sempre esperança, ponho a dar pela enésima vez - como uma cassete que se repete vezes sem conta - o arquivo atento que te gravou dentro de mim. 

Tal como me ensinaste, se nos faltam as palavras, há que inventar outras - desde que se possa continuar a falar de amor, de perdão, de dádiva, de felicidade e de futuro. 

Obrigado, Mamã, por me teres ensinado a falar - e a falar assim. 

Mais, obrigado por me teres mostrado que, sobre o amor, ainda não se inventaram as palavras todas - pode, por isso, haver amor muito para lá do que achamos ser possível. 

Entre nós, há - e ainda bem. 

Vou continuar a escrever sobre o amor e, com isso, sobre ti. 

Vão faltar-me as palavras, eu sei, e vão ficar aquém de ti, todos os elogios. 

Mesmo assim, que saibas sempre que te amo. 

E, se estiver calado, lê-me nos poros as palavras mais antigas da nossa história. 

Sempre foi amor, mesmo antes das palavras. E será depois delas. 

Tu, eu e a nossa pele que será, para sempre, pó que se levanta e abraça numa estrada que se estreita num abraço sem fim. 

Obrigado. 

RM| XV-IX-MMXVIII

sábado, 8 de setembro de 2018

Vovó,

Tenho vontade de ti todos os dias. 

Pela manhã, durante toda a minha vida, da janela do meu coração, houve o azul atlântico dos teus olhos - até hoje. 

E eu fui imensamente feliz na liberdade brincalhona com que aprendi a nadar-te o coração, a conhecer-te as marés, as zonas de rebentação, as grutas de rocha onde me levaste a conhecer de ti todos os segredos; ao receber a poesia do luar que te escorre dos olhos quando te seguro nos meus braços. 

Contigo nunca perdi o pé - és uma das minhas bóias, a praia onde vou para descansar, onde nunca me faltou tempo, onde volto para saber e me lembrar da criança que tinha uma crença desmesurada na luz do mundo; para saber que, apesar de tudo, ainda é possível renovar os meus votos de absoluta gratidão para contigo e para com os meus. 

Sou mais vosso do que, no fundo, sou meu - o meu lugar é o lugar onde estiverem, a minha casa é o lugar onde podemos estar juntos, a minha estrada aponta sempre o caminho do vosso nome. 

Vou para fintar o medo, para arrumar os destroços da tristeza, para me espantar com a tua coragem, a firmeza do teu desejo de bem, de futuro, de redenção e de amor. 

Digo-te, 

Não sei viver sem ti, Vovó, sabes?

E tu, pendurada no meu pescoço, as lágrimas no canto dos olhos, 

Nem eu sem vocês, pequenos, 

E eu, sempre mais crente nos milagres dos homens por vossa causa, acho, todavia, que há alguém que nos ouve e nos deixa ficar juntos - só porque uma criança não pode sentir um amor destes e não ter a quem o entregar. 

Eu, na verdade, não entrego amor - devolvo, retribuo, estendo os braços a quem, primeiro que as palavras, que o ruído do mundo, me gravou na pele, para sempre, o calor de uma morada. 

Telefono-te nem que seja para dizer, 

Milocas, malandra, gosto muito de ti!, 

E, se não falo de ti, tu és o meu norte em todos os lugares, pelas portadas de osso do meu peito, ouve-se no vento a tua voz. 

Tenho uma alegria infinita em que sejas, mais do que tudo, minha amiga, minha cúmplice e que, sem sabermos bem como, os nossos corações tenham falado a mesma língua, precisem, até hoje, do mesmo e se queiram sempre juntos. 

Tenho vontade de viver porque o azul de todos os céus, em todos os lugares, todos os dias, me lembra do azul dos teus olhos.

Sei que tenho uma casa. 

Voltarei sempre, Milocas, para descansar junto da areia da tua pele. 

Entrarei na vida, como, até agora, mergulho no mar - de cabeça.

Graças a vocês, nunca perdi o pé. 

Graças a vocês, há a possibilidade de um abrigo em cada porto a que chego. 

Foi debaixo do céu azul dos teus olhos, que me aconteceram todos os milagres. 

Por tudo isso, meu amor, obrigado.

Ouço-te passear-me nos ossos como o vento. 

O meu coração é uma janela aberta e há luz. 

Chama-me que eu vou. 

RM| VIII-IX-MMXVIII

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

24.08|Avô,

Meu querido Avô Adélio,

Volta nem que seja para um abraço. 

Eu, prometo-te, preparo tudo - o teu cadeirão de orelhas largas, o couro e a pregaria com o cheiro a tempos felizes; a limonada fresca para os gumes afiados do calor e, claro, uma brisa que relembre às árvores que a sua sombra é, outra vez, um abrigo para nós. 

Sabes, meu querido, se, mesmo assim, não for fácil convenceres quem quer que seja que te tem, diz-lhes, por favor, que há, ainda, um areal inteiro de sorrisos por desenhar nos lábios da Mãe - ela ia gostar tanto dos teus dedos longos presos nos dela, do teu olhar que acenava de longe e que era como uns braços abertos assim que te víamos. 

Não sei como te contaríamos tudo quanto se passou na tua ausência - talvez, na verdade, a mobília tenha ficado, todo este tempo, no mesmo sítio - a tua cadeira sendo tua até ao fim dos tempos, a casa um mapa onde a tua existência e os teus passos sempre se sentiram - ninguém conseguiria, eu sei, viver num mundo onde nunca tivesses existido. 

Logo eu, um falador nato, acho, somente, que ficaria agarrado a ti como um sol que teimasse em não se pôr, que pudesse atrasar o escuro, adiar o gole voraz da noite e da partida.

Quem ama quer, hoje, que a tua cadeira está pronta, a limonada se serviu e há uma sombra gentil e fresca a dançar no jardim, que os despertadores não toquem - por amor, que tudo se atrase, se prolongue, se demore e ninguém nos lembre de outros lugares - não há nenhum outro lugar que importe, sabes?

Sorris-me do fundo das molduras - eu recordo-te sempre porque, quem ama, é como uma nascente que, embora correndo todas as vezes em direcção ao mesmo lugar, não se importa de levar na corrente a mesma vontade, como um vício benigno, de chegar a casa. 

Iremos sempre para perto de ti, meu querido.

Espera-te o teu jardim, 

a cadeira de couro

e a limonada fresca. 

Volta para um abraço que seja, por favor. 

Hoje a noite não tem hora para começar. 

Obrigado por tudo.

Parabéns! 

RM| XXIII-VIII-MMXVIII

domingo, 12 de agosto de 2018

Casa,

Há, segundo creio, uma espécie de geografia dos afectos - somente o amor povoa as grades das nossas costelas das flores mais bonitas, de flores que nunca murcham. 

Há uma primavera-para-sempre que começa quando nos escolhem para ser a terra, o berço dos sonhos mais bonitos; há um baú que quem escolhe o amor acaba sempre sendo - o perfume intenso das velas sempre acesas debaixo das memórias que a maré do tempo não apaga nunca. 

Há uma paisagem que somos nós e, no fim de contas, quem amamos é o mapa que torna possíveis todos os regressos, todas as emendas, todas as vezes em que o caminho prossegue, se espreguiça, se alarga e nos leva juntos até ao fim e não nos afasta de nós mesmos. 

Os meus olhos foram sempre janelas abertas - memorizei, como pude e com a alegria do coração, todas as formas de voltar a casa. 

O abrigo que vocês me são, bem sei, tem a porta no trinco - entro, subo as escadas - os dedos, como sobre a pele de alguém conhecido, percorrem sempre as paredes todas; há no ar o perfume da infância que as jarras preservam e fazem boiar. 

Quem ama não tem nunca um silêncio calado - há um alvoroço nas entranhas, há um soalho que treme porque alguém nos trepa os ossos e nos assombra com luz o sótão da memória. 

Amar é sermos, para sempre, uma casa habitada - a mobília que trazemos dentro é feita, justamente, de todos quantos nos ensinaram o coração a girar o disco do amor. 

E o amor é uma dança que não tem coreografia - começando a música, nada há de ensaiado, de repetido - tudo é um milagre; o espanto no leito aceso dos olhos e uma vontade de, mesmo que de improviso, os corpos não se descosam, não se deslacem, se não separem jamais. 

A minha fé veio toda do altar que tem sido o vosso colo - por isso, obrigado. 

Há uma geografia dos afectos, dizia. 

Eu, pela minha parte, serei sempre a vossa morada - por perto, o mar e as portadas dos olhos sempre abertas. 

A porta no trinco e um silêncio nunca calado. 

Cá dentro, a música que alguém, um dia, pôs a girar e que se chama amor. 

Subam as escadas, pisem-me o soalho do sangue e encham de luz o sótão todo da memória. 

Passem, já agora, a levar as flores que plantaram na varanda de ferro das minhas costelas. 

É primavera-para-sempre, sabiam? 

E as jarras têm de cheirar, até ao fim, à alegria de uma infância feliz que não pode acabar nunca. 

Amo-vos. 

RM| XII-VIII-MMXVIII

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Avô,

Um dia pensei que quem ama olha sempre para trás antes de atravessar uma passadeira. 

De facto, amar é esperar que a sombra que nos segue pelos passeios não tenha que ser necessariamente a nossa - que possa, sim, ser a de alguém cujos passos andam, por ali, ensarilhados bem perto nos nossos. 

E que o sol, como que a brincar, nos põe a dançar os corpos por cima das lajes do cimento numa coreografia inventada pela luz num fim de tarde quente qualquer.  

Eu, pelo menos, dou por mim a gostar de imaginar que quem ama não atravessa nenhum caminho sem pensar no que deixa para trás. 

Fui sempre assim - desde pequenino, por cima do ombro, aguardei sempre uma mão que remasse comigo rumo ao que quer que fosse que viesse depois.

Lembro-me tão bem dos nós dos dedos, do abraço das peles, dos braços presos e, sobretudo, de nunca ter medo de atravessar nenhum caminho, de não me parecer nenhuma estrada ampla demais, nada demasiado longínquo ou impossível. 

Nunca me deixaram para trás, está visto. 

E eu, como posso, tento não os deixar para trás - as mãos que se oferecem, o braço que se estende, as palavras com que somente um coração que fale a língua do outro lhe diz, 

Vai tudo correr bem

E, sempre, do outro lado de todas as viagens, para onde for que a vida nos leve, que se agarrem as mãos, que sejam cegos os nós com que os dedos se entrelaçam e que possa ser eterno o abraço das nossas peles. 

Há dezoito anos, Avô, tinhas acabado de fazer 80 anos e ias renovar a carta, 

Eu e o A. radiantes por te vermos na rua - um abraço longo e o teu sorriso doce de quem parecia sempre querer convidar os outros a permanecer,

E a nossa maldita pressa em cumprir horários, 

Temos que ir para as aulas, Vovô, desculpa

Vão lá, pequenos

E o beijo que te demos ter sido o último, enquanto, olhando para trás, te acenámos até chegarmos à esquina, rumo ao liceu. 

Até hoje, sinto que chegar a horas a certos sítios é, inevitavelmente, chegar demasiado tarde a outros. 

Desde então, o olhar para trás - fixar o outro antes que o poente seja noite, oferecer-lhe os ossos, o abraço da carne, é como um vício. 

Quem ama, nunca atravessa nenhum caminho sem olhar para trás. 

Eu e o A. nunca fizemos nenhum caminho sem estendermos a mão. 

Estamos todos cá, Avô, felizmente. 

Eu, ainda assim, olho por cima do ombro antes do princípio de cada viagem. 

Vejo o teu sorriso doce, o teu aceno feliz e, na dúvida, estendo a mão. 

Espero por ti no início de tudo, todas as vezes. 

O meu coração espera por ti - o semáforo suspenso até que regresses. 

Um beijo do teu, 

R.  

RM| VII-VIII-MMXVIII

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Milinha,

Milinha, meu Amor, 

Há um só tempo verbal possível para o nosso amor - o presente-mais-que-perfeito. 

Nunca vivi um dia sem saber que me amavas - no coração de uma criança como eu fui, o medo não pôde nunca existir - tudo foi felicidade, os braços da luz chegaram ao fundo da sala onde o coração se escondia e tudo quanto era dúvida teve fim. 

Toda a vida quis ser digno do amor de uma mulher como tu - imensamente complexa e inteligente, intensa como um dia de Estio longo e demorado, sensível como a mais bela das flores, exigente como quem sonha um tamanho que ainda não há, um céu a que ainda se não chegou, uma maré que ainda se não navegou. 

Todos os meus dias te repetem - o meu coração tem no bater o compasso daqueles que ama e, sei-o bem, ter merecido o teu amor é, até hoje, parte do cimento da minha carne e dos meus ossos, parte da minha esperança no futuro, da minha fé nos regressos, reencontros e na emenda de todos os males. 

Se não estás, não sei bem o que fazer comigo - a pele é, de súbito, grande demais, como se a roupa não me servisse - emagrece-me o ânimo, encolhe-se-me a fé, estreita-se-me e esgana-se-me o horizonte e as nuvens tapam o tecto todo do corredor do futuro. 

Tu, o Avô, os Pais e a Gó puseram-nos, a mim e ao A., do lado dos preferidos toda a vida - sabes, tenho regressado muito a esse tempo quando os nossos corações caíram, sem saber e para sempre, sob o feitiço eterno do vosso encanto, da vossa sabedoria, do vosso esforço, da vossa abnegação e entrega absoluta ao cozinhar dos nossos seres. 

Espanto-me com a facilidade com que abdicas, dás, renuncias e nos desejas apenas um futuro onde tenhamos mais, melhor, tudo e quanto possa caber na medida gigante que o teu coração tem.

Nasceste com uma urgência de ser, um sentido de missão e de liberdade, uma ânsia profunda de justificação diária para ti e para o teu caminho que, de pequenino, sempre me espantou. 

Nunca terei o teu tamanho, eu sei. 

Mas peço-te, Milinha, que te demores - como no terraço de nossa casa, deixa-me correr até à ponta onde me esperas para me agarrar e, depois, esquece-te das horas. 

Uma vez, meio a brincar, em pequeno, 

Vovó, nunca me fujas, nunca partas, que eu vou direitinho atrás de ti!,

Acredito, ingenuamente, talvez, que as minhas palavras te protegem. 

Que, quem nos ouça, algures, saberá a absoluta necessidade que temos de ti e, por isso, nos tem deixado demorar os abraços, largar os relógios, serenar os corações perto uns dos outros. 

Nasci, talvez, para ver no fundo do mar dos teus olhos, o sol mais bonito e luminoso. 

Nasci, decididamente, para vos amar - a vocês que me pegaram ao colo, que me levantaram mais alto, que foram o meu chão e a minha estrada, o meu obrigado. 

A ti, Milinha, tenho-te como uma oração, um antídoto contra a tristeza, uma varanda onde eu vejo o mar mais azul e bonito de sempre. 

Nunca terei o teu tamanho, Milinha, eu sei. 

Mas, por ti, por vocês que sonharam um céu que ainda não existia e, pegando-me ao colo, me deixaram tocar o milagre infinito do amor, eu nunca fui tão grande e tão altos foram os meus sonhos. 

Obrigado. 

RM|XIV|VI|MMXVIII