Rewind

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Conselhos IV

"Cada um vê aquilo que espera. Parece estranha esta afirmação. Vemos o que esperamos! É assim. Se o que espero são desgraças, só vejo desgraças e tudo me parece já mal. Mas se o que espero (e sei que vem) é o Bem, tudo já são sinais desse bem. É isso que me purifica o olhar e me liberta de fantasmas. Quem sabe que o Bem vem, já vê o bem a vir. Vê com bons olhos, mesmo no meio do nevoeiro."
Padre Vasco Pinto de Magalhães

Conselhos.III

"Não podemos viver sem coragem! Sem coragem ninguém sairia de casa, ninguém entraria num avião, ninguém ligaria um aquecedor. Tudo pode rebentar! Mas a coragem maior é aquela de que precisamos para sermos coerentes connosco próprios e com os nossos valores, sobretudo quando todos os atacam ou se riem deles. Sem coragem não há personalidade nem felicidade!"

Pe. Vasco Pinto de Magalhães

La Boheme


La Boheme - Charles Aznavour

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Café de Fassbinder


"Oportunistas, jogadores compulsivos, cafeíno-dependentes, cowboys anacrónicos, gangsters, adúlteros incorrigíveis, falsários, criados endinheirados & outras criaturas virtuosas formam a fauna de O Café, a peça que o hiperactivo R. W. Fassbinder compôs após uma única leitura da comédia homónima de Carlo Goldoni. Na sequência da montagem da obra setecentista, encenada há um ano por Giorgio Barberio Corsetti, o TNSJ entregou a paráfrase livre de Fassbinder nas mãos de Nuno M Cardoso (...)"


"O vício é um dos temas mais fortes, e está tão patente na voragem do jogo como no consumo de droga. O café é aqui uma droga – ou a droga. A viciação atinge e corrompe as próprias relações. Elas estão viciadas, ou são, de alguma forma, viciantes. Diz-se por vezes que há uma “química” entre pessoas. Aqui há um químico, uma substância que gera uma dependência nos relacionamentos e impede que as personagens se libertem. O que coíbe, por exemplo, Vittoria de se libertar de um marido incorrigível? Ou o que faz Placida correr atrás de um traste como Leander? Há uma outra coisa que me parece importante assinalar: a sobrevivência pós-perda total. Eugenio e Vittoria sobrevivem à perda de tudo, incluindo a perda dos brincos, que são descritos como “o que resta da nossa felicidade”. Todas estas criaturas são, à sua maneira, sobreviventes. Sobrevivem à falência afectiva, à falência das relações e do que socialmente as sustenta, à falência de todos os valores, pulverizados pelo vício e pelo jogo. Mesmo os que ganham – como Leander, que ganha apenas ilusoriamente – estão em falência absoluta. É uma liquidação total. O capitalismo aqui instaurado não serve para criar uma “sociedade feliz”, uma sociedade em que se evolui para um bem-estar comum ou para o bem-estar de quem quer que seja. Apenas produz sobreviventes."

Nuno M Cardoso


Uma peça brilhante que vale a pena ir ver!

Na chuva


Chovia tanto nesse dia, meu amor. O céu era um chão pesado de chumbo. O asfalto das ruas a pele morta de um rio sem fundo. Segurava-te a mão com os teus dedos compridos enlaçados na pequenez impotente do meu corpo. Via-te nos olhos a areia fina de lágrimas contidas e envergonhadas.

O teu corpo pedia-me: "Olha a chuva." E, então, percebi que querias a cortina dela para poderes chorar todas as lágrimas que o teu corpo continha. E seguravas a tua mão na minha, como a bóia que te impediria de sucumbir no mar do pranto. Falava-me tanto esse silêncio de água lançada contra o corpo altivo e prepotente dos prédios e das casas, nas ruas. Também as tuas lágrimas eram o rio de protesto contra o que morava na tua vida, sem que o habitasses. O teu grito de raiva escrito na água das tuas lágrimas.


Tinhas o corpo molhado, com a água a dobrar as esquinas dos teus ossos. O cabelo num desalinho de cola na pele do teu rosto. Tudo o que se ouvia era o mundo calado. Era o vento a chicotear as nossas costas e a varrer o caminho. E tu a alma que desabita a existência que acontece sem ti. Saíste do palco da tua vida para a deixares no espaço vazio das ruas. Tinhas esperança que no corpo da água dos teus olhos se misturasse a água do céu e a elas, as pisassem os pés da gente que chegaria.


Foi maior do que eu e a minha vontade encostou o teu rosto ao meu peito. Puseste as mãos nas costas do meu pescoço - senti dar-se um nó na pele dos teus dedos.


E o meu peito foi o chão onde caíram as lágrimas - tuas e do mundo. Segurava-te inteira nos meus braços e senti que tinha inteiro o céu.




"- Olha a chuva" - dizias. E foi nos teus olhos que encontrei a mais perfeita delas, caindo inteira na terra dos meus braços. E nas ruas do meu corpo tudo o que passou foram os passos do meu amor por ti. Com cheiro a terra molhada.


O continuar


Há coisas que acabam na nossa vida. Coisas que, de repente, não podemos mais seguir. Coisas que seriam o corpo e a causa dos dias mas que não chegam mais. E nós continuamos e continua a ser vida os dias que vêm sem o nosso sonho na palma da mão.

Custa chamar a isso vida. Ou mesmo que lhe chamemos vida e saibamos que ela corre, o difícil é mesmo sentir que estamos inteiros no tempo que passa por nós.

Continuar significa, pois, seguir em frente depois de deixarmos para trás algo que era nosso. E sabe a perda. Tem esse sabor de prisão e vazio.

E a sua vida continuava. Mas, às vezes, com o mar em fundo e vozes recentes que lhe falavam, pensava onde estaria se o que continuasse fosse o filme parado no silêncio. Estranha essa sensação, quase certeza, de que estaria noutros lugares e os rostos seriam outros.

Estranha essa sensação de saber que há uma imagem da vida que poderia ter sido. Pensava só que a nossa vontade de trilhar novos caminhos pode vir de encruzilhadas que chegam ao fim. Ou talvez o que nos levasse para a frente não fosse vontade - não fosse esse desejo nas veias, mas antes uma esperança de encaixarmos o nosso corpo e espírito num vazio um pouco mais cheio.

Tivera já de continuar. E, não raras vezes, encontrara uma vontade de ficar no caminho aberto no avesso da vida. E o continuar podia ser o começar. O começar por reconhecer nas coisas novas razões para ficar. Tudo no mundo continua, afinal. Nada é como no primeiro dia. E a vida que corre nas ruas é uma versão fortalecida do sonho. Fortalecida por esses amores imprevisíveis que, quando olhamos, percebemos terem começado exactamente no avesso disso, sem nada que fosse a nossa vontade a chamar-lhe o nome que ainda não tem.

E, aos poucos, os seus dias enchiam-se de coisas que poderia ter perdido. E o segredo era esse: pensar no que teria perdido se não tivesse havido uma fenda na certeza que era o chão dos dias que viriam. Vieram os dias. E talvez não tivesse vindo o mesmo chão de sempre. Mas havia o homem. E a vontade de chamar seu ao caminho que agora se abria.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O esquecimento

Quanto tempo demora o esquecimento a chegar? Quanto tempo se demora a esvaziar a nossa lembrança de alguém?
Lembrava-se sempre do tempo em que gostar era coleccionar a vida como se a simplicidade das coisas fosse o que tem mais valor. Guardava sempre os momentos mais raros - esses em que a vida se assemelha tanto a um corpo sem peso; a um corpo sem ele ou sem os seus limites.

O esquecimento demora sempre mais quando o amor foi intenso ou longo. Como se a borracha do seu lápis nunca chegasse para roubar às nervuras das páginas o sabor do que aí ficou gravado.
E mesmo do que engole o véu do olvidar fica sempre a marca sem cor das letras da nossa vida. Como uma folha marcada pelo corpo agora ausente do que já não há. Perguntava-se, por isso, se esquecer seria verdadeiramente possível. Porque querer esquecer, com a vontade de um desejo lá no meio, significava lembrar o que se queria esquecer.

Quando chamamos o esquecimento as coisas são uma recordação maior do que nós. E aí percebemos o quanto delas é nosso e quanto somos no que delas existiu.

Não sabia se alguma vez se esqueceria alguém ou alguma coisa. Talvez esquecer fosse ensinar ao coração a não chamar pelo nome do que lhe dissemos ser nosso. O esquecer é evitar passar por certos caminhos e evitar ver certos rostos. Até que desaprendemos como chegar até eles. Sabemos que eles existem; sabemos onde estão mas não sabemos mais como chegar até eles.

O esquecimento é a exclusão de partes do mundo. Como se nos tirássemos de uma parte do mundo para que ele deixe de nos reconhecer.

Esquecer não é apagar as coisas. Talvez seja não passarmos tanto por elas, como se o lápis não pudesse mais carregar fundo nas letras daquela estória.

Esquecer não é, pois, a absoluta dissolução do que fomos. Esquecer é lembrar mas não desejar mais o corpo do que se lembra. Esquecer é poder lembrar sem desejo.

Sabia pois que o esquecer era lembrar menos vezes. Lembrar e parar no momento em que não mais se pode desejar o que foi.

O esquecimento enquanto utopia de destruição total só persiste enquanto há ressentimento ou mágoa. Como se tentássemos provar a nós próprios que a nossa vontade pode desdizer o que aconteceu acima dela.

Depois dele vivemos na ilusão a que chamamos esquecimento. Mas, na verdade, podíamos chamar-lhe contemplação. Sabemos que o corpo das coisas está lá e mora connosco. E olhamos para elas com um olhar onde cabe a serenidade do que já não dói.

O esquecimento é, então, o esquecer a forma como recordávamos as coisas. Ou viver com a corpo dessa recordação mas aceitar lembrá-las da forma como elas podem ser.

E a forma como elas podem ser é, em geral, um não-ser do que já foram. Por isso custa tanto. Porque sabe a menos do que já foi. Porque sabe a pouco.

Mas com o tempo e o seu balouçar o nosso sonho encaixa-se no imperativo das possibilidades.

E talvez depois de termos teimado em esquecer, o que fique em nós das coisas seja a forma de as mantermos vivas. E de elas existirem sempre connosco.
*"A Persistência da Memória" de Salvador Dalí.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

The Duchess - A Duquesa

Este filme de Saul Dibb retrata a vida de Georgiana Spencer (Keira Knightley), uma jovem aristocrata do século XVIII, que acaba casando com o poderoso e influente Duque de Devonshire (Ralph Fiennes).
Trata-se de um filme centrado numa relação que origina um casamento atribulado e que traz para a cena personagens como Bess, a melhor amiga de G. e amante do duque; o político promissor e amante da Duquesa que acaba primeiro-ministro e os cães com os quais o Duque se parece entender bem melhor.

Trata-se de um drama histórico retirado dos anais da aristocracia inglesa que aborda o cinismo e formalismo vazios das vidas destas pessoas. Não é um grande filme. Tão pouco a protagonista nos brinda com uma interpretação brilhante.

O filme torna-se previsível e talvez o que ressalte mais à vista seja, de facto, o distanciamento entre as personagens em causa.

Valkyrie

Este thriller histórico escrito por Christopher McQuarrie e realizado por Bryan Singer tem como pano de fundo a Alemanha Nazi da Segunda Guerra Mundial e narra a conspiração de 20 de Julho de 1944 levada a cabo por militares alemães para assassinar Hitler e usar a operação Valquíria para tomar conta do país. Tom Cruise assume o papel do coronel Claus Von Stauffenberg que foi o grande impulsionador desta que foi a última das quinze tentativas para derrubar Hitler levadas a cabo por alemães.

Foi um filme que me deixou satisfeito. Não é um grande filme mas vale pela sensação de que é feita Justiça. Dá-se voz à verdade que se esconde por detrás da História que se conta que é, em regra, a dos vencedores. Essa nossa visão das coisas transforma o lado dos vencidos numa amálgama uniforme que se aprende a detestar e a julgar toda por igual. Este filme prova que houve quem pusesse o interesse da Nação acima dos interesses próprios e da sua família.
Um hino ao heroísmo e à ideia de que não vale a pena vivermos num país que não reconhecemos como nosso. Um hino à ideia da luta constante.

Um filme razoável com uma excelente mensagem.

Der Vorleser - The Reader


O último filme de Stephen Daldry ("As Horas" e "Billy Elliot") tem como cenário o fim da Segunda Guerra Mundial e conta a história de Michael Berg um jovem que é ajudado por uma mulher mais velha e misteriosa, Hanna. (Kate Winslet).

A relação de ambos intensifica-se e o seu envolvimento físico e emocional é pautado pela leitura de obras clássicas que Michael faz a Hanna Schmitz.

Um dia Hanna acaba por desaparecer e, oito anos mais tarde, Michael, estudante de Direito em Heidelberg, reencontra-a como ré. A acusação: a de ter servido como guarda prisional em Auschwitz ao serviço das SS. Eis que se inicia o duelo entre a memória amorosa e a censura moral. O que Michael (Ralph Fiennes) não sabia e veio a descobrir é que a mulher que tanto amou escondia um segredo que mudaria as suas vidas.

Uma história interessante onde se destaca a brilhante interpretação de Kate Winslet - uma séria candidata ao Óscar deste ano.

Os Saltimbancos de Chico Buarque


Outro dia foi dia de teatro. Mas não foi um teatro qualquer. Resolvi aceitar o convite e alinhar numa incursão pela infância fora de tempo. E fui ao Teatro do Campo Alegre ver "Os Saltimbancos" de Chico Buarque e Sérgio Bardotti.

A peça tem como protagonista um jumento que, cansado da exploração, abandona a fazenda onde trabalha para procurar melhores condições de vida. É nesta sua viagem que encontrará um cão e uma galinha que fogem do mesmo e uma gata que foi expulsa do apartamento onde morava porque passava a noite a cantar. Todos juntos decidem formar um grupo musical e partir em direcção à cidade.

Uma peça recheada de boas canções, de um excelente figurino e que me arrancou (contra todas as expectativas) umas boas gargalhadas!

Tudo porque, se calhar, nunca é tarde para se ter nove anos outra vez.

Primavera!


Vivaldi: The Four Seasons--La Primavera [Spring] - Vivaldi

O tempo contado

Lembro-me de quando pus os meus olhos em ti daquela última vez. Lembro aquele que agora sei ter sido o último dos beijos e dos êxtases. Não podia imaginar que as linhas do teu corpo estariam tão longe das minhas mãos. Que o teu cheiro chegasse apenas com o vento da memória. Não te vi os olhos quando saí. Que diziam eles? Onde os puseste enquanto o meu corpo desaparecia em direcção às ruas?
Ainda me lembro dos meus primeiros passos dentro da tua vida. Do querer descobrir um espaço só para mim. O meu egoísmo era a minha forma de altruísmo para contigo. Queria ficar, sabes? Queria que a minha vontade fosse maior do que eu e do que nós.
Hoje sei que dormi com o corpo repousado na certeza de que a promessa dos teus beijos não acabaria. Não sei se acabou.
Sei apenas que o tempo corre e já não vejo os teus olhos. E que no fundo dos meus passam vozes sem carne de um tempo que já não vem.
Não sei se o meu corpo te disse para onde iria. Se o pudesses ter ouvido saberias que nunca seria para longe de ti.
Mas tudo o que fala agora é o silêncio. Talvez para que não perca a primeira das tuas palavras no regresso do teu corpo à minha imagem de ti.

Nas ruas


Às vezes, saía sozinho de casa. Não lhe apetecia ir a lado nenhum. Talvez o bom fosse mesmo não haver esse ter que ir ou ter que fazer. E achava-se sozinho na rua. Em geral, era hora do poente quando punha o seu corpo à deriva naquele mar de caminhos.


Sabia-lhe bem a cidade com o silêncio e a sua companhia somente. Descia para ver o mar. Muitas vezes dava consigo a não resistir ao apelo constante do horizonte largo. Outras vezes havia em que seguia o impulso e descobria novas linhas no mapa que achava já conhecer da cidade. Apareciam-lhe recantos novos nas dobras de paredes onde se ancorava a memória.


Olhava as janelas e não raras vezes havia gente que lhe sorria lá de cima, quem sabe recordando romances de idades perdidas.

Fixava os olhos no ferro moído das varandas apertadas onde floresciam rebentos pequenos de cor. E imaginava a vida a acontecer do lado de lá. Imaginava as dores de mortes repentinas; lágrimas enraivecidas de caprichos não satisfeitos; risos abertos como teclas de piano; sonhos e gritos; gestos pequenos e esperanças amplas a acontecerem no corpo redescoberto da sua cidade.

Gostava que houvesse vida por perto e que o caminho desvendasse um pouco do seu mistério como se ele a surpreendesse num momento de distracção. Não se fazia notar. Levava no seu olhar a atenção sem expectativa. Não lhe veriam as pessoas nos olhos um desejo do que quer que fosse. Só isso era vida - a corrente decidida de um rio que corre sem espartilhos coalhada pela luz alva da manhã.


Reparava nos rostos enquanto ainda eram seus. Imaginava-lhes as vidas, que todos haviam sido pequenos. Crianças com vozes de uma meiguice trapalhona de caramelo. Às vezes, as pessoas sorriam-lhe. E ficava a ocupar o silêncio a doçura de um olhar caloroso.


Achava que saía para ver a vida. Não queria participar nela. Queria chegar e surpreender a vida em movimento ou num silêncio quieto, desde que o não notassem. Talvez a vida se esquecesse dele ou ele, pelo menos, se sentisse menos em si naqueles momentos.

Na vida dos outros não havia o peso da sua vontade. Não tinha de carregar nos passos a direcção que as decisões sempre dão à vida. Sabia-lhe bem a vida vista assim de fora - os sonhos dos outros a acontecerem e ele a chegar como uma personagem que o sonho deles jamais pudera imaginar que viria.

Não queria ser o sonho dos outros ou sequer pôr neles o seu corpo. Mas isso de alguém chegar ao nosso sonho enquanto a vida corre, lembrava-o que o sonho também o pode desejar por nós a vida. E que o sonho era o corpo de mãos dadas com a vontade mas com uns olhos muito vivos. De surpresa, pensava ele.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Das causas da crise (ou talvez não)







A noite


Gostava sempre mais da noite. Dessas horas em que os corpos se aproximavam e se despia da pele o cheiro das ruas que iam dormir connosco. Era na noite que encontrava o espaço que sempre encontra quem esquece o tempo.

Imaginava que a voz do que pensava a podia ouvir inteira a noite. Caminhava na face adormecida e vazia do mundo e assistia ao espectáculo das vozes que se calaram. Quieta a noite boiava sobre as coisas e as ruas. Procurava o corpo desse alguém com quem dizer ao sono que não era o seu tempo ainda. Procurava a imensidão calma onde nada houvesse entre os corpos - nem a luz invasiva e a nudez explícita dos dias, nem as vidas dos outros e dos seus corpos. Procurava no véu misterioso da noite o espaço para se revelar o segredo que queria só para si e do qual não queria perder nada para o mundo.

Queria estar perto e tão perto que fosse a vida que vem nas veias tudo o que ouvia no ar que a sua pele recebia. E queria demorar os olhos e a pele no encaixe perfeito do tempo para amar.

Só na noite se esquece verdadeiramente o mundo. A noite faz-nos a todos egoístas ou solitários. Egoístas aos que não querem perder ou partilhar; solitários aos que nela encontram o verdadeiro tamanho do seu vazio e das suas ausências.

A luz da noite era especial. Admirava as luzes que chegavam a revelar as sombras quietas de coisas perdidas no escuro. Pensava nelas como corpos verdadeiramente livres e nus num mar de silvos serenos.

Era na noite que a demência saía à rua. Só aos loucos se deixavam os jardins e as praças das cidades - como se a noite fosse a vida que acontece sem nós. Talvez só os loucos vissem a luz da noite porque talvez só a veja quem perdeu o medo. O medo que sempre nos contém nos limites e traça linhas certas dentro de nós.

Nunca tivera medo. Da noite lembrava sempre que as distâncias diminuem quando ela chega. Que estamos mais perto de nós e dos outros que iluminamos com o calor aceso dos corpos bem perto.
Temia sempre a manhã. Quando com o dia a verdade era mais do que apenas dois corpos. Quando o que se ouvia era mais do que o silêncio ofegante do desejo. O dia não era o espaço de cumplicidade. O dia apagava a atenção ao pormenor com o seu mar de luz. Na noite prendiam-se corpos e olhares na pele.
E ele guardava na sua a memória da noite como um segredo.

Porto em 15.02.2009







No pó do caminho


Foi para casa naquele dia a pensar onde chegariam aquelas pessoas com ele. Sim, gostava de imaginar até onde lhe envelheceria a certeza de que há pessoas que ficam. Gostaria de acreditar que os sonhos soltos assim numa voz límpida de ousadia eram promessas gravadas no ar a dois.

Imaginava quais daqueles veriam a sua vida até ao último dos dias; quais daqueles lhe veriam nascer os cansaços no leito fundo das rugas que teria certamente.

Desenhava na luz dos dias, com um silêncio de esperança, os mesmos locais de hoje, o mesmo mar, as mesmas ruas com um cheiro a tempo que se demora nas coisas, com ele a passear-lhes por perto - os olhos a lembrarem pessoas que tivemos perto e que a vida devolveu à turba; o corpo a lembrar os passos mais ágeis de outros tempos. Imaginava a vida com um rosto familiar em que ele pudesse sentir o chão do caminho como o seu.

Talvez o que sempre acabe ficando das coisas seja a nossa forma de crer que nem tudo acaba. Que não acabamos espoliados de tudo o que foi nosso como sombras errantes no esqueleto da nossa vida.

O corpo e a face visível do caminho eram a sua memória de si banhada pelo dourado morno do fim de tarde. E a sua sombra na mesmas paredes era como o seu segundo corpo onde repousava do que ficara para trás.

Gostava que a sua vida estivesse presa na pele daquelas ruas. Que elas lhe lembrassem que na mesma esquina onde se dobra o caminho se podem dobrar também as distâncias para vir o que tem de ficar.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Na praia


Desceu e procurou o mar. No céu rasgavam-se as nuances do poente. A praia estendia-se como um lençol de infinita brancura. Sentou-se com o licor onde o Sol derretia o calor bem em frente dos olhos. Finalmente o espaço onde podiam caber os seus pensamentos. Onde podia respirar a voz que o mundo aniquilava nas ruas da vida.

Desenhou no horizonte a aritmética impossível da saudade. Relembrou passos de outros tempos nessa mesma praia - tempos que a sucessão dos dias levara. Estranho como pode o tempo passar-nos fora e, cá dentro, continuar a vida presa num dia que não acabou na linha horizonte.

Viu-se com o acreditar a caber inteiro no peito. Que estranha crença a que mantinha numa coisa tão desabalada como o Mundo. Pensava no absurdo das ruas cheias de ruído, na alcatifa suja das almas abafadas nas multidões.

E gostava da solidão. Saber-se inteiro no tamanho que tinha longe de outras sombras na sua.

Às vezes, vinham as recordações como ondas visitar a praia da sua memória. Recordava já sem doer. Demorava nalguma lembrança escondida de instantes mais leves.

Devolvia ao Mundo o que o Mundo vira mas agora era a sua voz que lhe emprestava vida e movimento. Não podia levar a praia consigo. Mas ao menos poderia levar o que nela foi dele. E isso, mesmo depois do poente, eram os dias a nascer de novo. A cada dia. Todos os dias.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Um dia qualquer na minha vida

Um dia destes fui convidado para um almoço. Uma boa surpresa sobretudo vinda de quem veio. Como uma coisa que sempre se espera e, com algumas pessoas, sempre se concretiza.


Estava um dia cinzento com o céu no seu bipolarismo de prantos.


Chegamos os dois a um sítio escolhido por mim. E desatamos a falar, como sempre acontece com quem apenas encontra pelo meio a intimidade. Falamos de quatro anos. Destes nossos quatro anos que connosco começaram desde o primeiro dia. Estavamos orgulhosos de termos durado neles. De termos posto dentro deles coisas um do outro que hoje trazemos os dois.


Vimo-nos de novo naquele ínicio estranhamente próximo e distante. Falamos de mudança, de termos crescido. Mas não sabíamos em quê exactamente.


Quem está perto e connosco todos os dias aprende-nos o nome sempre. Está pronto a reconhecer-nos por detrás das pequenas mudanças do tempo que passa.


Eu senti orgulho. E vi-lhe "saudade", como ela disse. "Saudade de tudo o que vivemos e do que não vamos fazer."


Fez-me prometer que seríamos sempre amigos. Que gostava mesmo que o fôssemos.


Eu percebi que essa promessa já a havia feito há muito tempo. E sabe-me bem a presença dos que ficam. Que nos dão a sensação de que há coisas que podemos chamar mesmo "nossas".


Ouvi-lhe segredos e esse lado que ela tinha guardado também em mim.


Não foi um almoço em que esperasse perceber, mais uma vez, que há pessoas que serão a face mais visível da minha vida.


Vim embora feliz. Adivinhei-lhe lágrimas escondidas na voz que tentei segurar com a certeza de que estaria lá. E estarei. Na distância que quem sempre se reconhece percorre e que, no fim de contas, não existe.





domingo, 8 de fevereiro de 2009

A intenção

Reconhecerão sempre os outros a nossa intenção naquilo que fazemos? Aquilo que verdadeiramente pusemos na semente da vontade que nasceu de nós? O que importa para o outro que recebe a nossa acção - o resultado ou a verdadeira intenção? Ou o que é que sente que efectivamente o atingiu?
Tenho pensado nisso de, por vezes, nos falhar o resultado e nascer por nossa mão algo inteiramente diferente do que foi o nosso desejo. Como se se quisesse chuva e viesse um dilúvio; como se se quisesse uma brisa e caísse um vendaval. O que fica gravado de nosso na espessura dos dias? O que ficará a falar por nós na lembrança do nosso nome?
Como provar que a verdade é tudo o que não aconteceu? Como mostrar que o que não se vê e não tem corpo é, sim, o que queríamos ter dado para se guardar?
Estranho quando o nosso amor por alguém não veste um corpo à sua medida. Quando a nossa vontade imensa e silenciosa que guardamos cá dentro e só nós podemos ouvir não vive numa voz que a diga numa harmonia perfeita.
Ficaremos sempre reféns do que não frutificou das sementes que deitamos ao chão?
A qual de nós se agarrará o outro mais facilmente - ao que verdadeiramente existiu mas sem um corpo visível ou ao que existiu só por engano num corpo imperfeito para falar de nós?
Estranho como pode o homem ficar preso entre um amor e desejo sem corpo e a sua manifestação por sombras que não alcançam a pureza e a profundidade do que sente.
Talvez o que nos salve seja a capacidade dos outros verem sem olhos e amarem sem corpos a nossa verdade escondida sobre eles.

Enquanto dormes

Às vezes imaginava-te morta enquanto dormias. Retirava a vida do teu corpo aconchegado perto do meu. Imaginava que não mais me acordarias com um sorriso doce e lento e que não mais nasceria das tuas mãos nenhum beijo de dedos que passeiam.
Imaginava que a luz dos teus olhos se afundara para sempre na sombra. E tinha medo. Era como asfalto incendiado por borracha queimada o meu peito. Doía o mar de angústia como um volume que cresce e esmaga o ar debaixo dele.

Peguei-te na mão tantas vezes. Pu-la na minha com medo de te perder. Às vezes, mexias-te com desenhos infantis a nascerem-te no rosto sereno. Queria tanto agarrar-te com uma força maior do que o medo que sentia. Não deixar que te levassem dali.

Porque podias, de facto, não mais acordar. Podia o mundo perder a tua luz e eu perder o meu chão. E ao meu amor juntava-se o medo. O medo que fazia nascer em mim, num lampejo súbito, a ânsia de te cobrir inteira nos meus braços, de demorar a minha pele na tua um pouco mais.

E perguntava-me se, sendo nós eternos e sabendo disso, demoraria os meus olhos em cada um dos teus sinais para guardar dentro de mim a imagem perfeita do teu corpo ou se repararia na posição em que dormes e deitas o teu corpo. O amor só é intenso enquanto houver medo. Medo que o tempo o consuma antes do tempo; o medo que todo o tempo que tenha a nossa vida não chegue para o adormecer.

O tempo faz com que as coisas infinitas se concretizem. Ou que delas se realize a nossa tentativa. É porque há um fim que demoramos a vida no tempo que as coisas duram.

Chegavas-te perto de mim quase todas as vezes. Pousavas o braço no meu peito. Conseguias, enfim, acalmar-me e levar-me o corpo até ao sono. Só queria que fosse o mesmo que o teu.

Se amanhã não acordasses, dormiria para sempre acordado no sonho da véspera.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Porto em 02.02.2009 às 17:41

Foz

Conselhos.II

  • "É preciso viver com os pés na terra e a cabeça no céu. Isto é, ser realista sem perder o ideal. Aliás, um ideal - e não um idealismo - é uma meta concreta, possível, onde se pretende chegar. Por isso, a primeira coisa que a pessoa de ideais tem a fazer é conhecer muito bem a sua realidade. Só conhecendo e amando essa realidade, saberá fazê-la crescer e purificá-la do que não é ideal".
  • "Vale mais perdoar do que vingar-se. Acreditar nisto e vivê-lo é ter fé. Há quem pense que ter fé é acreditar noutras vidas. Mas um acto de fé, de fé vivida, é acreditar e agir convencido que mais vale amar. É fé porque anda tudo a dizer o contrário: 'Vinga-te, mostra os teus direitos, impõe-te.' É nisso que as pessoas acreditam, e o nosso mundo é o que se vê, porque não se acredita no amor."
Padre Vasco Pinto de Magalhães

Conselhos.I

"A questão na vida é a verdade e a entrega que pomos naquilo que fazemos"

Padre Nuno Tovar de Lemos

As flores

Um dia trouxeste-me flores. Chegaste com um vestido a que emprestaste a tua graça infantil, o cabelo desalinhado sobre o recorte minucioso dos teus ombros. Nos olhos a malícia meiga da provocação.
Eras, sim, a minha flor. Tu que pegaste logo numa jarra de vidro qualquer que encontraste perdida num dos armários da cozinha que mal conheço. Encaixaste cada uma das flores com um aparente descuido. Olhavas para mim e sorrias. Fixei a luz que se derreteu no castanho dos teus olhos.

Foste pô-las em cima da mesa onde os papéis se amontoavam. Foste pô-las bem no meio da minha vida. Tal como eu te tinha a ti - nesse amor aparentemente descuidado que tinha no avesso a necessidade de segurança e continuidade que sempre têm as coisas naturais.

Ali ficaram - bem perto da minha face banhada pelos golpes de um cheiro subtil como a nudez implícita debaixo do teu vestido.

Quase imaginava que tinha a tua pele perto da minha de novo ou o teu murmurar perto do meu ouvido.

E era assim a minha vida contigo: um cheiro suave no ar, iluminado pela luz que se derrete na minha pele. E os teus beijos como pétalas que caem de uma jarra de flores qualquer.

Retrato

Sentou-se na cadeira grande da sala. Penetrou no silêncio picotado, ao de leve, pela batida regular do relógio de parede. Estava sozinha. A casa vazia e ela como o pedaço de carne que restava num esqueleto cansado.
Na parede, em frente, o retrato do marido. Uma imagem pálida de um homem que parecia bonito mas sem exagero ou volúpia. O sorriso desenhado e os olhos perdidos num ponto qualquer que não vamos saber. Ela gostava de dizer que os seus olhos se fixavam nela.

Tinha saudades da vida dos outros a acontecer na sua. O marido a chegar com o passo apressado e a ir encontrá-la na cozinha onde trocavam uns olhares rápidos.

Os filhos na escola e ela a imaginá-los em perigos, com o peito a apertar-se. Estavam grandes os miúdos. Longe com a vida deles.

Sem as pessoas já nada podia acontecer. "A vida aconteceu-me assim e não pode acontecer de outro modo", pensava perante o definitivo das perdas.

Já não poderia aconchegar o corpo velho nos braços do marido e lembrar no abraço a força de êxtases antigos. Nunca receberia uma carta de amor. Nunca chegaria a cumprir todos os desejos que a juventude e o sonho lhe haviam prometido.

Sem o marido o seu amor não poderia transformar-se; não haveria nada mais que pudesse acontecer. Nunca chegariam a ver o mar juntos e a descansar os corpos no tempo que teriam um para o outro.

O seu olhar perdia-se na sala. Os seus olhos fixavam-se num ponto que só ela sabia. Gosto de imaginar que os seus olhos viam um filme antigo; fixavam algum pormenor em que acabaram de reparar. E ela percebia que o seu amor se viveu e se declarou de outras formas.

Estendia o braço repleto de ondas na pele. E sorria. Com os olhos a encontrarem os do marido. Só eles sabiam o que aquele mar queria dizer e até onde os tinha levado.

E nos olhos dele viu a luz do amor a acontecer sem palavras.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A crise


Em terras lusas a crise chegou para ficar. Ou nunca chegou a partir. E, com as chuvas do Inverno, ela frutificou nas bocas e nas carteiras de meio mundo. A crise está no meio de nós, minha gente.

Mesmo as alminhas mais incautas assistem à sua deificação em grandes parangonas nos jornais e em telejornais de gosto e qualidade duvidosos.

As coisas estão mal. Mas o mal que hoje vivemos é a consequência de um mal muito maior pelo qual somos todos responsáveis. Sim, isto de se ser cidadão do Mundo é uma chatice porque traz uma data de nomes esquisitos de sítios inóspitos onde se decide a nossa vida e as viagens que vamos fazer nos fins de semana prolongados.

Mas, apesar da crise não ser esquisita e também atingir essa cambada de prepotentes louros e quase perfeitos "do estrangeiro", a verdade é que em Portugal ela nunca vai embora e grassa a cada solavanco do mundo civilizado.

Talvez o problema seja mesmo nosso, meus amigos. E, enquanto não se elimina a História dos currículos das nossas crianças, aprendamos um pouco mais acerca de nós mesmos. Sim, sobre a nossa gente e a nossa terra. Não arranjemos rapidamente um bode expiatório.

Se olharmos para o nosso País veremos que, desde sempre, Portugal buscou a solução no colo da bem aventurança que viria de fora. Primeiro os Descobrimentos e as especiarias da Índia; depois o ciclo do ouro do Brasil ou ainda o saudoso Império Ultramarino. O último colo que encontramos chama-se União Europeia.

O Sebastianismo impera na nossa forma de vermos o Mundo. Esperar pela salvação, a moer as mágoas, não é paradigma do nosso tempo. Não é, nem pode ser.

Nenhum país se salva sem o seu Povo. Porque são uma e a mesma coisa. Reacção precisa-se. Precisam-se padeiras de Aljubarrota para exorcizar desta vez os nossos demónios. Precisa-se de uma nova forma de se ser Português - a do compromisso com uma Pátria, com um futuro, com uma visão. Nossa e por nós.

Chega de esperar e pedir soluções. Chega da demissão que isso significa porque a cidadania, como a Vida, acontece-nos todos os dias. Mas só existe verdadeiramente quando se faz dela uma conquista de todos os dias e não uma terra adquirida onde se espraia o esquecimento e o comodismo. O erro dos portugueses é achar que os erros do passado não se repetem. Temos memória curta e indolente.

Por isso, tudo se demora aqui e volta sempre com mais força. A crise é nossa. Uma crise de identidade, de valores. Não há uma ideia de País que nos aglutine e galvanize a todos. Não há ideia de Bem Comum, de Comunidade no seio deste individualismo estéril e anómico.

Não se pode ser indiferente. Precisa-se de uma sociedade civil consciente, viva e activa. Precisa-se de um país para lá da partidarização e do aparelhismo político que teima em reproduzir modelos e arquétipos vazios. Mas temos os políticos que merecemos.

Precisa-se de uma educação séria, completa e sempre exigente. Sem ela não há verdadeira igualdade de oportunidades e a liberdade efectiva do Homem reduz-se a uma mera conquista e consagração formais.

A nossa crise não é económica. Ou, se é económica, é-o também porque nos falta uma estratégia comum, esse desígnio colectivo que se ergue para lá do conjuntural e momentâneo.

As liberdades têm de sair à rua. Têm de existir para lá do formalismo. Têm de viver no corpo da sociedade que somos ou queremos ser.

Pelo nosso país lutamos nós. E a solução, tal como parte do problema, está no que fazemos da vida no quotidiano e a forma como nos posicionamos em relação às coisas que decidem e condicionam as nossas vidas e as dos nossos filhos.

O nevoeiro veio. Vivemos rodeados de um desespero calado e conformado. Esperamos ansiosos pelo volte-face que há-de vir. Mas o nevoeiro também somos nós. E não podemos esquecer que, enquanto cidadãos, é a nós que se exige para podermos exigir. É a nós que se pede para abdicarmos para podermos ter. Não podemos esperar que o Mundo nos dê um novo Mundo. O Mundo também somos nós. E, hoje, ninguém dá nada a ninguém.

Nunca são as coisas mais simples

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.

Nuno Júdice

Hunger


Em 1981, Bobby Sands, activista do IRA, depois de ter sido condenado a 14 anos de prisão por posse de armas, inicia uma greve de fome com o objectivo de reclamar melhores condições para todos os prisioneiros do IRA; resgatar, no fundo, a dignidade humana no estabelecimento pertubardor em que se encontra.

Este filme de Steve McQueen, dotado de uma enorme violência visual e uma profunda carga simbólica, descreve o crescendo dramático do protesto. Descreve o primitivismo a que o drama faz chegar e sufoca muitas vezes pela crueza e realismo.

O corpo pode ser, em muitas situações, o único veículo desse grito desesperado que se pretende fazer ouvir. E é disso que precisamente "Hunger" vem falar. Do corpo como veículo da mensagem que vale acima dele. E que só se ouve muitas vezes quando calamos a nossa voz.

Revolutionary Road


O último filme de Sam Mendes é a adaptação para a tela da obra do americano Richard Yates. Leonardo Di Caprio e Kate Winslet dão vida a um casal, cujas promessas de felicidade se tornam numa tortura.

Sam Mendes vem desvendar a "paz podre" que se esconde por detrás de mais um típico casal apaixonado que procura os subúrbios para viver o seu sonho. Trata-se de uma crítica à típica classe média - essa dos homens de fato cinzento - que se acomoda na vida que acontece em vez dos sonhos. A ante-estreia deste filme trouxe a degradação que resulta dos confrontos e das rotinas quotidianas. Kate Winslet fez lembrar o desespero que anseia por uma fuga que viveu a sua personagem em "Little Children".

Um bom filme apesar de não ser grande fã de Di Caprio e do "déjà vu" que trouxe o casting deste filme.

Milk


"Milk" retrata a vida e obra de Harvey Milk/Sean Penn (1930-1978), o primeiro homossexual confesso a ter sido eleito para um cargo político na Califórnia e um dos principais responsáveis pelo reconhecimento jurídico dos direitos civis dos homossexuais nos EUA.

Gus Van Sant conta os principais episódios do seu protagonista desde que era um empregado de uma companhia de seguros, em 1970, até à sua eleição para o board of supervisors da cidade de São Francisco, em 1978.

Um retrato que faz lembrar Obama nessa capacidade de dar voz e esperança à diferença. Um belíssimo filme que faz pensar no longo caminho que ainda temos pela frente no reconhecimento dos direitos civis dos homossexuais, bem como de todas e quaisquer minorias.

Vicky Cristina Barcelona


O mais recente filme do cineasta genial Woody Allen conta a história de duas jovens americanas que, de férias em Barcelona, conhecem um pintor (Javier Bardem) com quem se vão envolver até à chegada da ex-mulher temperamental (Penelope Cruz).

É uma história fresca, regada por momentos do familiar humor deste realizador. Mas, ainda assim, parece faltar-lhe a fineza da ironia e o humor do absurdo que vimos, por exemplo, em "Match Point". Destaca-se o brilhante desempenho de Penelope Cruz (Maria Elena) que seduz com o corpo e o génio marcadamente latinos. Juan Antonio deambula entre a deriva sentimental de Cristina, o amor contido e resignado de Vicky e a explosão do seu amor intenso por Maria Elena.

Ainda numa fase europeia, Woody Allen transforma Barcelona numa personagem pouco explorada para além dos locais habituais e turísticos.

Sabe a férias esta última incursão de Woody Allen. Espera-se o regresso em grande deste que é, sem dúvida, um marco do cinema.

O Estranho Caso de Benjamin Button


Este filme conta a história de um homem, Benjamin Button (Brad Pitt) que nasce com 80 anos e que rejuvenesce com o passar do tempo. Esta adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald com o mesmo nome e o novo trabalho de David Fincher é uma reflexão sobre a inadequação do tempo na nossa relação com os outros. A importância que o tempo que temos e o que o tempo faz connosco tem sobre o corpo frágil das relações humanas.

Um filme excessivamente longo, com pormenores a tocar ao de leve um sentimentalismo forçado mas que se converte, apesar de tudo, numa interessante e curiosa irrealidade que faz pensar.

A Troca


Christine Collins (Angelina Jolie), uma mãe solteira na Los Angeles dos anos 20 descobre que o seu filho desapareceu. Depois de um período de longas buscas é-lhe anunciado o suposto regresso da criança. Mas quem regressa não é o seu filho.

Um filme intenso, íntimo e comovente em que o que importa é a luta pela luta; lutar porque desistir implicaria aceitar o que não nos cabe no hábito e na resignação. Um hino ao absoluto inalienável da dignidade humana e ao amor de uma mãe.

Christine é uma heroína solitária, estóica e convicta. E Angelina na sua pele empresta a esta personagem o porte e a beleza trágicos. Clint Eastwood capta este drama com um olhar intimista, atento e realista. Um grande filme em que Angelina Jolie aparece no seu melhor papel de sempre e se revela uma grande actriz.

Obama



Obama is the new black.