Rewind

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Retrato

Sentou-se na cadeira grande da sala. Penetrou no silêncio picotado, ao de leve, pela batida regular do relógio de parede. Estava sozinha. A casa vazia e ela como o pedaço de carne que restava num esqueleto cansado.
Na parede, em frente, o retrato do marido. Uma imagem pálida de um homem que parecia bonito mas sem exagero ou volúpia. O sorriso desenhado e os olhos perdidos num ponto qualquer que não vamos saber. Ela gostava de dizer que os seus olhos se fixavam nela.

Tinha saudades da vida dos outros a acontecer na sua. O marido a chegar com o passo apressado e a ir encontrá-la na cozinha onde trocavam uns olhares rápidos.

Os filhos na escola e ela a imaginá-los em perigos, com o peito a apertar-se. Estavam grandes os miúdos. Longe com a vida deles.

Sem as pessoas já nada podia acontecer. "A vida aconteceu-me assim e não pode acontecer de outro modo", pensava perante o definitivo das perdas.

Já não poderia aconchegar o corpo velho nos braços do marido e lembrar no abraço a força de êxtases antigos. Nunca receberia uma carta de amor. Nunca chegaria a cumprir todos os desejos que a juventude e o sonho lhe haviam prometido.

Sem o marido o seu amor não poderia transformar-se; não haveria nada mais que pudesse acontecer. Nunca chegariam a ver o mar juntos e a descansar os corpos no tempo que teriam um para o outro.

O seu olhar perdia-se na sala. Os seus olhos fixavam-se num ponto que só ela sabia. Gosto de imaginar que os seus olhos viam um filme antigo; fixavam algum pormenor em que acabaram de reparar. E ela percebia que o seu amor se viveu e se declarou de outras formas.

Estendia o braço repleto de ondas na pele. E sorria. Com os olhos a encontrarem os do marido. Só eles sabiam o que aquele mar queria dizer e até onde os tinha levado.

E nos olhos dele viu a luz do amor a acontecer sem palavras.

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