o teu corpo trazia escrito o nome de todas as coisas
devagar, as sombras dançavam todas no espaço aberto do meu peito
e havia luz no ventre rasgado da janela que me abrias
a tua boca deixava na minha o sal de tantas marés longínquas
enormes, as falésias sempre apontavam docemente o céu sereno
e ainda agora me acorda na pele a frescura de um orvalho a dizer saudade
os teus olhos eram a casa onde todas as ondas rebentavam
luminosas, as dunas gemiam aos dedos do vento urgente que passava
e, em silêncio, eu ficava guardando de ti o mapa do caminho
os teus dedos eram o chegar a casa e ligar a música
esfomeados, os teus olhos procuravam os meus dentro do escuro
e as veias eram todas metáforas do nosso amor
tu, o teu corpo, a tua boca, os teus olhos, os teus dedos
inteiro, o meu corpo a ceifar dentro do teu o medo, a dor e a distância
sabes, eu podia ficar sentado toda a vida ao poente doce do teu sono
e as cinzas sorririam sempre no arrepio da manhã que vem beijá-las
não vás.
ainda é cedo.
RM
às vezes no escuro, se demoras, o tempo para
o teu cheiro queima-me a pele e nas sombras quase vejo o teu corpo
às vezes, se demoras, tenho medo
e as horas sobram como um deserto que cresça devagar
às vezes, penso que o pó das ruas te engolirá um dia inteira
e tenho medo
os meus dedos escrevem o teu nome antes que a fome das ondas o leve
e espero cá dentro que essa não seja a caligrafia de um adeus
às vezes, se demoras, tudo é longe
e o mar é o espelho que guarda a mágoa da ausência dos teus olhos
a noite é um labirinto longo de ferro e solidão
e faltam as tuas mãos para que se abram de vez mais mil janelas
às vezes, tenho medo de não poder beijar mais os teus lábios por cima do silêncio
e deixar escritas no vidro da janela do quarto, quando chove, as saudades que vou ter o dia inteiro
às vezes, tenho medo que o teu nome não te traga mais quando te chame
ou de me esquecer como se anda na estrada florida do teu ser
às vezes, só às vezes, tenho medo
de que as luzes que se apagam neste quarto quando sais
sejam as do dia em que, por ti, por entre o escuro, eu aprendi o amor
e em tudo a luz pousou serena para ficar
RM
a imagem dos teus lábios a dizerem o meu nome
a chamarem-me assim devagar por entre o silêncio cúmplice da noite
os meus olhos fechados, as tuas mãos perdidas algures em mim
e a noite era uma imagem - o movimento da tua boca podia ver-se no escuro
ardiam as sílabas no fogo que dentro de ti se erguia como um grito
a tua boca a rasgar o silêncio como uma roupa que se despe num soluço
o meu nome a bater na pele do corpo que era o meu, a chamar por ele
e ele a ir devagar, a ser teu para ser maior, para ser inteiro
a tua boca a escrever o meu nome com a tua língua, na tua língua
que aprendi a ler, mesmo no escuro
o meu nome a percorrer todos os recantos do teu ser
a afogar a dúvida, a destruir da sombra o longo abismo de ruínas
o meu nome escrito no ar que me desperta na pele o infinito
o meu nome e a tua boca e todas as palavras que o teu corpo me ensinou
RM
não sei o que foi que disseste, mas sorri
e olhei-te sem sequer ter pensado olhar-te
os meus olhos seguiram o corredor rouco da tua voz
e viram o teu corpo molhado ardendo ao sol
trazias o sumo de frutas maduras na luz da pele
e o que tive foi fome da polpa dos teus beijos
e uma sede súbita da frescura da tua língua
não sei até hoje o que foi que disseste, mas sorri
de repente, a tua voz desatava os nós dos meus dedos
a areia do meu corpo deslizava inteira para dentro da maré viva que eras tu
era fácil este amor e esta nudez repentina no silêncio
e tudo o que se ouvia era o meu corpo a sublinhar o teu
não sei o que foi que disseste, mas sorri
e sei que entramos juntos na noite que chegava
a tua boca ainda refém da minha mais uns instantes
as nossas mãos cansadas traziam maresia
e o sorriso ficou-me no rosto demorando
nas palavras que o teu corpo em segredo me dizia
RM
o teu corpo era como um pássaro na brisa
ao longe, muito quieta, pensei que os teus olhos estivessem a aprender o infinito
o céu era um vidro que o vento soprava a fazer um desenho suave e doce
e eu via-te inteira com um sorriso que dizia paz
depois o mar levantou-se e as ondas dançaram num passo livre e espontâneo
na areia a luz deitava-se nas últimas horas de um dia longo e amplo como um sonho
ao longe, muito quieta, soube que foi no teu coração que o horizonte deixou o infinito
e pus-me a rir
era quase noite, Mãe
a cal das casas apagava-se devagar
e o silêncio falava mais alto sobre todas as coisas
ao longe, no lume de um dia que cessava
o infinito era o que os teus olhos traziam no regresso
e eu soube que o teu nome era então a morada de todas as coisas maiores e mais perfeitas
RM
são horas de voltares, Avô
é tempo de vires para dentro do nome das coisas
e já não ser absurdo chamá-las
já não doer o granito escuro das paredes da tua ausência
são horas de voltares, Avô
não tarda é tempo de luz na romaria
as janelas da casa vão estar abertas
entra
que o olhar ainda se demora na promessa das portas que se abrem
são horas de voltares, Avô
a tua voz a chegar morna do jardim que te viu crescer
na estrada o rumor de gente que vem feliz
e os teus olhos presos no horizonte de todos os encontros
são horas de voltares, Avô
os retratos não chegam nem os postais nem sequer a saudade chega mais, Avô
volta que é tempo de romaria
as janelas estão abertas como promessas ardendo na luz
entra e diz que vais demorar
entra e diz que vai ficar tudo bem
entra e fecha a porta que o tempo não mais fechou
e deixa que meu coração descanse na ilusão da eternidade de todos os regressos.
RM
há de haver volta
e os teus olhos levantarão a manhã nesta janela
há de haver volta
e hei de fazer-te sorrir de novo
a tua boca depressa dirá à minha que ainda há tempo
há de haver volta
e os teus dedos perdoarão os meus pela falta que tu me fazes
há de haver volta
e vou encontrar-te no jardim encostada serena no silêncio
a tua pele sorrindo muito depressa dirá que ainda há tempo
há de haver volta
e vou tocar longamente o dentro das tuas pernas
há de haver volta
e no escuro de um cinema clandestino qualquer
o galope do teu peito depressa dirá que ainda há tempo
há de haver volta
e vou encontrar-te na solidão de uma rua sem nome
há de haver volta
e no frio punhal da madrugada longa
o teu abraço depressa dirá que ainda há tempo
há de haver volta
e o homem que já não sou ainda te quer
há de haver volta
no escuro da distância os teus olhos ainda dançam nos meus.
ainda há tempo.
RM
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
uma mesa comprida como uma estrada de um sonho
no tecto a luz sempre farta da esperança
e as portas abertas esquecidas do medo
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
a pele das mãos que nos guiam dentro da noite
os risos que a memória emoldura na doçura da saudade
e as horas suspensas no silêncio fresco do jardim
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
e o ir-se ficando mais um pouco
pendurados todos no hábito fácil de um amor sereno
no fundo dos olhos a guardar-se a luz que enche o vazio que o coração não consente
e decorar-vos a todos como se tudo fosse ser eterno em vésperas de sombra
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
lembrar-me do sorriso de um avô que me habituei a esperar
e nas janelas abertas para dentro da noite
desejar que algures a minha saudade se ouça
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
abraçar aqueles que amamos e imaginar que podemos não os deixar ir
inventar a interdição da distância pois que
amar é também precisar desesperadamente de ver com as mãos
sentar-me à mesa
e a ternura das coisas mais simples
a mesa longa como uma estrada
no tecto do mundo a luz farta da esperança
e o amor como um ritual em que nos cumpro
sempre.
RM