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terça-feira, 30 de setembro de 2014

acorda-me ao saíres,

acorda-me ao saíres, amor.
 
somente no rumor faminto dos teus lábios, eu sei que o dia chegou.
 
apenas no encontro doce dos teus olhos continua o abraço que o poente da véspera atou mais fundo. 
 
somente na bainha de silêncio que se rompe quando dizes o meu nome é que o chão se junta, de novo, debaixo do meu corpo. e esse chão és sempre tu.
 
o sol a voltar de dentro da boca do mar, a luz da manhã a devolver o infinito à esperança que se alcança da janela do teu quarto e eu a acordar do naufrágio voluntário do meu corpo na arriba arrepiada do teu ventre.
 
acorda-me ao saíres, peço-te.
 
apenas o sabor do teu corpo me abrevia a espera, apenas o teu cheiro ainda preso nas dobras doridas dos meus dedos é o pavio de todos os sonhos que me esperam e até as sombras se atrasam no vício de espiarem as danças que lhes ensinas dentro dos meus braços.
 
acorda-me ao saíres e deixa, por favor, que a manhã comece pelo subir da persiana da tua nudez. deixa que se possa inventar um pedido mais na estrofe inacabada do meu desejo e deixa, se puderes, que o fôlego sereno da manhã seja o cais onde fico a gostar até das coisas que não dizes.
 
acorda-me ao saíres, amor.
 
há flores que quero que venhas colher no avesso da minha pele; há, ainda, luzes acesas nas partes de mim que sabem que uma noite inteira já não nos serve; que nem mesmo o tempo todo em que nos amarramos dentro do escuro chega, agora que sabemos que voar pode também ser nosso.
 
acorda-me ao saíres como se viesses nua bater à minha porta.
 
juro que hei de encostar-me todo à quentura de mel da distância que nos separa e sentir o sonho a oscilar-me no sangue - tudo como se, de súbito, fosse outra vez tempo de aprender o amor todo do princípio; como se, pela profecia de um louco qualquer, eu pudesse voltar a encontrar no desenho apertado dos teus braços um primeiro esquisso da casa do nosso encontro.     
   
acorda-me ao saíres, meu amor.
 
juro que vou passar os dedos devagar nos poros todos das paredes do teu corpo e ficar a ouvir estalarem-me na língua as tiras longas do soalho vivo das tuas pernas.
 
juro, amor, que vou subindo devagar dentro de ti, enquanto os meus dedos rompem os restos de noite na bruma fresca dos teus seios.
 
juro, amor, que se vieres nua bater-me à porta vou deixar-te entrar.
 
e, antes que o mar venha, vou, sem querer, desenhar-te rente à boca os sulcos fundos do meu nome. 
 
como se a manhã viesse apenas dizer-me que tu voltas.
 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

acende um cigarro,

acende um cigarro, peço-te eu.
 
o escuro ainda é agasalho, as tuas mãos são a porta onde eu espero para entrar e os meus olhos inventam na curva nua do teu decote uma janela aberta de onde se veja o mar.
 
acende um cigarro como se cortasses as pernas ao tempo, como se os teus dedos não queimassem na repetição da minha pele as palavras que foram as primeiras e disseram tudo.
 
deixa que o silêncio se encha todo apenas dos passos apressados do meu peito e tudo o que se ouça no ventre dilatado dessa espera seja a pérgola abraçada dos nossos ossos sobre o abismo.
 
uma, duas, quatro escadas e a minha boca a ocupar os espaços vazios da dúvida dentro da tua, os meus braços a inventarem um outro nome para a véspera do fim, as minhas pernas a dobrarem as tuas como se o mar pudesse subir tão alto que houvesse ondas e maresia no desalinho intenso dos lençóis.
 
as horas são todas, de súbito, búzios que trazem na curva da garganta a saudade do teu nome e os meus passos dentro de ti são apenas formas imperfeitas de te sujar inteira na luz que se solta dos meus sonhos.
 
acende um cigarro, por favor. dá-me tempo de inventar uma desculpa, de, mesmo sem saber muito bem porquê, me esquecer das mãos no declive tenro das tuas pernas e começar o mesmo sonho no chão de uma outra esperança.
 
acende um cigarro e espera.
 
espera pelas salas onde ainda não deixamos o nosso cheiro, espera pelos clarões que ainda não nos cegaram os olhos e por todos os voos picados onde se despenha a razão e toda angústia.   
 
espera, meu amor. eu sei que ainda matas a sede na clareira da memória, que te deitas buscando na pele restos da minha saliva como numa extensa praia de lume e poesia. eu sei.
 
acende um cigarro enquanto fintas a espera e me dás tempo de chegar.
 
vou fingir que espero na porta fechada das tuas mãos e, enquanto isso, vou entrar pela janela ampla do teu decote.
 
deixa-a aberta, por favor. 
 
e deixa, mais que tudo, que eu chegue a tempo, meu amor.
 
 
 
 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

dança-me,

o dia em que me levaste a dançar.
 
não queria, sabes bem. 
 
dançar, para mim, foi sempre estar perto do teu corpo, ouvi-lo pousar à porta de tudo o que estava por fazer, senti-lo começar dentro de todos os infinitos que se abriam inteiros na carne dos teus lábios e agarrá-lo sempre com a coreografia inquieta do improviso.
 
mas tu pedias, insistias que fosse - os teus lábios demasiado perto dos meus, tão perto que o ar com que te negaria, mo roubaste tu com um sorriso como um rumor subtil entre a folhagem.
 
e fui, como se pela tua mão o meu corpo me habituasse à noite, habitasse essa espécie de silêncio vazio e clandestino em que as varandas soltam versos, as janelas secretamente não se trancam do lado de dentro e sobre tudo paira o fôlego ansioso de uma promessa.
 
sabes, a dança começa muito antes do encontro dos corpos - cada um de nós  agarrado ao perfume da estação por inventar que o outro traz nas esquinas da pele onde queremos, de súbito, não saber mais o caminho e não ter que voltar; a dança começa quando o mistério do outro se anuncia nos corredores demasiado longos da nossa espera e todas as palavras se movem na urgência de um encontro que as dispense.
 
o que dia em que me levaste a dançar - no escuro, as tuas pernas a varrerem as dúvidas do chão gasto; no escuro, o teu peito agitado como o mar nos dias em que o poente se atrasa; no escuro, o teu corpo a empurrar o meu como um balouço que me levasse sempre para o limiar da porta do teu ventre.
 
imagino ao som de que melodias nos movíamos - tu certamente descalça na areia fina da praia do nosso encontro - essa onde os teus cabelos soltos roubaram ao vento a pressa de partir e a praia se esvaziou à espera que eu viesse.
 
eu a lembrar o arco doce dos teus braços feitos fortaleza e a maré que subiu mais longe só para me deixar nos lábios a esperança imensa do teu regresso. 
 
às vezes, à noite, mesmo nas noites mais escuras, lembro-me de ti.
 
e tu és como uma paisagem que parte os vidros e fica suspensa nas paredes do meu quarto, esperando apenas; invadindo o meu sono, somente para não deixar que o meu coração possa estar noutro sítio ou que da varanda da memória se veja mais do que os teus olhos enchendo o espaço infinito da manhã.
 
dessa noite, ficou-me a música.
 
o vento traz o teu corpo de novo, como um sonho esquecido há muito tempo.

as praias ficam desertas outra vez.
 
e eu, sem saber como, volto a saber dançar. 
 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

por isso, amor.

quero-te com palavras ainda por inventar.
 
por isso, meu amor, não esperes na chegada da minha língua, as flores colhidas nos mesmos jardins de outros amores velhos e gastos, não esperes que o caminho seja o mesmo, que te deixe nos olhos os luares de promessas que morreram. não queiras isso, por favor.
 
quero-te com o azul de um mar que não existe e quero poder levar-te a passear nos braços de ruas que passem longe de todos os lugares onde já estive, quero deitar-me contigo nas costas quentes de todas as varandas onde o tempo não passe, quero ser velho contigo e não saber mais como partir.
 
por isso, meu amor, vamos primeiro aos beijos demorados dentro da noite, vamos, antes de tudo, tomar conta dos cantos todos do corpo um do outro e amarrar lentamente os nossos olhos acesos e famintos. façamos tudo, amor, como se no nosso encontro houvesse um milagre que há muito nos esperava para se cumprir.
 
quero ter cuidado antes de entrar depressa na história do teu corpo, quero encontrar-te primeiro os olhos e aprender-lhes as marés, habituar a pele às nortadas frias da tua tristeza e inventar um poente um pouco mais quente só para te ensinar esperança. quero subir devagar o vão das tuas pernas, parar a meio com medo de chegar cedo demais, demorar as mãos subitamente esquecidas de caminhar. quero encostar-me ao teu peito como se soubesse que do outro lado da parede a tua roupa está estendida no chão e tu me esperas.
 
agora falo pouco, amor.
 
primeiro a tua boca, as tuas pernas, os teus olhos, cada um dos teus sonhos derramados na ventania em que os lençóis se agitam no fundo do escuro. primeiro atravessar a nado a corrente do teu corpo, perder o pé na vertigem dos teus gritos e lançar-me contigo no abismo que se abre debaixo de nós.
 
por isso, meu amor, não escrevo palavras de ontem na areia da praia onde somos chegados hoje. já não as sei escrever e, mesmo que soubesse, teria medo de te perder na vastidão vazia que elas trazem. sabes bem que a minha língua anda ocupada dentro das fendas do teu corpo, a gramática é somente a que permite mais uma declinação em que a minha pele rouba da tua um sonho maior.
 
sabes bem que todos os verbos te chamam como se dizer andar fosse trazer sempre as tuas pernas atadas no fundo das minhas costas, como se todos os versos fossem formas de o teu rosto se abrigar na sombra fresca do meu.
 
por isso, meu amor, não me peças mais as palavras - não quero amar-te nos lençóis em que os beijos foram destroços e a solidão aumentava na escarpa das sombras que não caminhavam juntas. não quero, amor, fazer passar nos meus lábios feridas que apagam as sílabas molhadas do orvalho da nossa madrugada. não quero usar os mesmos nomes - os olhos são outros e chamam-se infinito, a pele é outra e chama-se primavera, os braços são outros e chamam-se casa.
 
vem morar comigo noutras ruas, deixar abertas outras janelas, dançar outras noites que não vão acabar nunca.
 
(vens?)
 
as palavras estão velhas, os meus olhos abertos a perguntarem-te se vens, se entendes que o que eu não quero é o teu nome esmagado nas dobras amassadas de um passado, misturado com o fel dos meus enganos e esganado pela aridez dos parêntesis em que a minha vida esteve parada.
 
primeiro, o teu corpo inteiro dentro da minha boca, depois a minha língua a incendiar-se como um rastilho e talvez, um dia, as palavras.
 
quando as palavras forem aves, talvez as use para falar do mar dentro dos teus olhos ao entardecer.
 
e elas já não me doam mais. 
 
 
 
 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

o teu corpo,

o teu corpo foi o descanso de todas as minhas tempestades.
 
atravessei-te a pele com a fúria desesperada do deserto de onde vinha e atei na tua boca a corda por cima do abismo da minha solidão. descobri a saudade no ar que me falta na esperança quando vais e preciso dos teus dedos para colher debaixo da luz quente da tarde, os primeiros frutos da promessa que fizemos.
 
o teu corpo foi o fim do provisório e tu a sorrires incendiavas-me a impaciência e derretia-la, devagar, nas esquinas do teu corpo, onde era absolutamente necessário que eu passasse e o meu cheiro ficasse preso nos poros luminosos da manhã que querias levar nos olhos.
 
o teu corpo ensinou-me a escrever no parêntesis das tuas pernas, a demorar em  ti o calor como se quisesses que te sublinhasse dentro o espanto do nosso encontro. o teu corpo a fazer a travessia perigosa do mar das minhas dúvidas, da névoa súbita dos meus sonhos e as tuas pernas agarrando a luz repentina de uma manhã que se fez maior, os teus braços atando em volta do meu pescoço os nós de uma caligrafia que dizia amor.
 
o teu corpo que eu encontrei numa cidade onde parei apenas porque o disco dos sonhos andava riscado; o teu corpo que me falou do outro lado de uma mesa - a língua era estrangeira e a forma como te impuseste foi como aprender um verbo novo e deixar a língua presa no prazer de o repetir até à exaustão. o teu corpo como um céu onde se visse dentro da noite, onde se acendessem todos os absurdos com a cadência de aves que regressam.
 
o teu corpo a reluzir na imobilidade dos hábitos, no aço vazio da caixa onde se arrumam os sonhos como sacos vazios de que não lembramos mais o conteúdo. o teu corpo a ser, de súbito, um miradouro rasgado de onde vejo a cidade enquanto te mordo na boca a distância e a cuspo para dentro do escuro onde escondi também todas as despedidas.

o teu corpo como a memória salgada das múltiplas marés cheias dentro da minha pele, de luas eternas a brincar no licor espesso da noite com o coração dos homens.
 
o teu corpo como um dedo apontado ao meu peito, como um sismo numa escala desconhecida que faz vibrar as sílabas de todas as frases, de todos os livros, de cada um dos lugares de mim onde a tinta da vida se havia desgastado um pouco.
 
o teu corpo como a praia onde vou entornar todos os sonhos, afogar nas ondas ofegantes do mar os restos de angústia dos tempos da caverna da tua ausência.
 
o teu corpo rasgado mil vezes pela fome violenta do meu, escrito, riscado e amachucado outras mil antes que alguém acenda a luz do dia. o teu corpo conjugado na gramática irrequieta em que as roupas acabam no chão e, de improviso, é hora de traçarmos uma linha em que se alarga sempre o horizonte. o teu corpo como um estuário silencioso para onde corre a ternura e onde o céu cúmplice escurece sempre mais cedo.
 
o teu corpo.
 
a minha voz sempre os braços que o envolvem.
 
e a minha língua presa no vício de inventar regressos.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

o teu nome não me chega,

trago o teu nome a encher-me a boca antes de se rasgar o silêncio com a saudade que te tenho. digo o teu nome, uma, duas, três mil vezes como se todo o meu sangue fosse ser sempre uma viagem demasiado curta para o esquecimento.
 
o teu nome roubou-me o silêncio, menina.
 
os meus olhos fecham-se e o escuro é uma janela com o teu nome escrito na pele de todos os vidros - todas as letras como arrepios para dentro da espera, todos os beijos como cartas destinadas apenas aos teus lábios.
 
o teu nome tem sílabas que repito como se fosse ficando cada vez mais perto da chegada e o contágio da saudade me fosse doendo cada vez menos nos ossos; digo-te o nome para que a casa não se esqueça de ti, para que a cama seja ainda a nossa e desta janela nos pareça sempre impossível querer fugir. 
 
o teu nome pela manhã como um lençol que se estende no ferro da varanda; dizer o teu nome como que a dar uma razão às flores para se esquecerem de partir, aos pássaros para aprenderem no canto uma liberdade nova e mais inteira e aos muros da cidade para se cobrirem com as letras do sonho em que te encontrei.
 
o teu nome é uma dessas ruas que nos atrasam o passo, que nos mudam a vida, onde nos demoramos a inventar um nome para o que nunca existiu antes. o teu nome traz árvores alinhadas em direcção ao mar, traz sombras gentis debaixo das quais apetece contar segredos e inventar a urgência de um encontro. o teu nome fez-me chegar atrasado à solidão - digo-o, às vezes, só para me lembrar da primeira vez em que vi a noite da claraboia dos teus sonhos, em que o meu corpo foi beijado pelo fogo dos teus olhos e eu parei de sonhar sonhos antigos.
 
o teu nome, menina.
 
o teu nome pendurado no cabide como uma camisola velha para os dias de frio, como um cigarro que fumo só para passar de novo o sabor da tua pele nos lábios esquecidos. o teu nome só para recordar o acaso dos meus olhos acharem os teus, só para recordar a impossibilidade de os nossos corpos se conterem e de todos os abismos terem sido pontes dentro dos teus braços.
 
o teu nome em todas as cartas - debaixo dele, o teu corpo a faltar-me, os teus olhos sozinhos dentro da cama, os meus dedos a procurarem a porta onde termina o corredor da tua ausência. o teu nome e a minha língua habituada a demorar-te com a lentidão em que o desejo se engradece e se precipitam todas as renúncias.
   
o teu nome como a véspera do teu corpo - chamar-te de dentro do silêncio e levar-te, pela mão, pela boca, por cada recanto onde possa passar o meu desejo para vires, para respirares no meu pescoço o resto de primavera que guardei para ti no mistério da noite que nos cobre.
 
o teu nome ou aquilo com que a minha língua se ata na tua num abraço apertado. o teu nome ou as tuas pernas todas escritas de frases onde a sílaba soube a sonho. o teu nome ou todos gemidos contigo dentro.
 
o teu nome é meu. o teu nome é o meu. 
 
só faltas tu.
 
vem depressa. 


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

se já não for eu,

daqui onde me deito, consigo sentir amor nas coisas que deixas espalhadas pelo quarto - livros com as páginas mastigadas em sublinhados carregados, dois pares de sapatos que te descalcei algumas vezes, a minha camisa que passaste a preferir depois do dia em que te tratei finalmente por tu ao roubar-te dos lábios um beijo demorado.
 
no meio dos livros guardas sempre alguma coisa - depressa te tornas cúmplice das personagens de que gostas, falas delas de dentro do vapor do banho e eu olho pelo espelho como se quisesse encontrar-te perto as mãos só para ter a certeza de que a manhã será de sol. guardas dentro dos livros bocados de ti - rio-me ao pensar que é quase como se também tu te quisesses confessar da mesma forma, ser tão honesta quanto aqueles que ouves falarem de cidades que nunca viste, de bocas que nunca beijaste, de camas onde nunca te abraçaram dentro da noite.
 
um dia, ao acaso, encontrei uma fotografia nossa dentro de um. senti-me parvo ao imaginar o que te diriam as personagens do rapaz com quem, nesse dia, tinhas ido ao cinema e que do filme apenas se lembra do desejo a encher-lhe o corpo como uma maré que chegasse aos telhados das casas mais altas da rua.
 
ainda guardo todos os bilhetes das nossas idas ao cinema quando choveu, quando não choveu ou mesmo quando o céu era só céu antes da chuva. até hoje, não sei com que palavras os meus dedos te convenceram no escuro, mas lembro-me de que me apaixonei logo pela caligrafia inquieta do teu corpo.
 
daqui onde me deito, vejo que há três flores a rebentarem na varanda. tu gostas de descansar a fala no dorso da vista da janela e eu, depois de ti, percebi que o amor é um quarto com vistas, mas para dentro.
 
daqui onde me deito, vejo que a saudade pode ser estas palavras que encontro dentro dos bolsos e que me entretenho a alinhar na cal da parede alta da tua ausência. reparo que deixaste os teus óculos esquecidos na mesa junto à janela, perto dos últimos cigarros que fumaste antes de saíres a correr pela escada.
 
tola, rapariga. tu vês mal ao longe. e eu estou longe, porra.
 
daqui onde me deito, saio para comprar um bilhete de cinema. por acaso, não chove.
 
se vieres por causa dos óculos, perdi as chaves.
 
se vieres por mim, estou no cinema.
 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

os pássaros ficaram,

às vezes quando passas, observo o teu corpo esquecido dos meus olhos, o teu corpo esquecido das palavras que a minha boca lhe diz para o convencer de que há noites que se esquecem de acordar, de que há caminhos em que o vento levanta a poeira só para esconder os segredos que os corpos confessam algures por entre as sombras da tarde.
 
às vezes sorrio e sorrio quase sempre tempo demais - depois de ti, tudo se queimou mais devagar e as flores existem mesmo depois de cada uma das suas pétalas terem desertado no primeiro vento de um dia, de súbito, mais curto. depois de ti, houve primavera nos sulcos fundos da chuva nas curvas das estradas, houve pássaros cujo lar foi o teu nome e a luz cremosa que se solta dos teus olhos quando danças, enganou-os, mas eles não se importaram de ficar e morrer mais novos. depois de ti, também eles acreditaram que a partida era escusada, que pode haver luz no avesso do que vemos, quando tudo o que vemos é somente aquilo que sentimos.
 
às vezes escrevo cartas inteiras que tu nunca lerás, versos inteiros em que o teu corpo se desenha em metáforas que fazem da tua pele uma labareda imensa; metáforas que acrescentam mais sonhos ao fundo do teu olhar, metáforas que dizem que te amo todos os dias só porque admitir que não te amo todos os dias seria começar a perder-te e eu não quero. 
 
às vezes essas metáforas são pássaros que ficam, pássaros que se alinham e se agarram aos cabos eléctricos da rua do lado só para tu sentires como é bom ter quem nos chame. outras vezes, as metáforas são rochas onde estoura a saudade, gritos infinitos que precisam de um horizonte maior para se cansarem.
 
às vezes, meu amor, escrevo cartas onde há rochas, escrevo linhas inteiras em que já foste embora e eu também, em que nos fartamos da janela dos olhos um do outro - é quase como ter que mudar de casa e temos que ir.
 
mas os estupores dos pássaros persistem e cantam nos postes das ruas ao lado de todas as ruas para onde eu vou. e o teu nome aparece pendurado nos ramos de todas as árvores e todas as árvores são perenes e trazem nos ramos cada um dos beijos com que a tua boca me convenceu a ficar.
 
às vezes sei que sou teu, sei que nunca ninguém dançou tão bem comigo o escuro de tantas coisas da vida, mas demoro um pouco mais a rendição. só porque sim, só para que, quando eu suba o ventre amplo das escadas velhas, a porta se abra sempre. e não sejam precisas chaves e me possa esquecer delas num casaco qualquer que só tu sabes qual é.
 
às vezes as cartas ficam mesmo sem nome. tens coisas bem mais bonitas que um nome, trazes na pele um cheiro que não pousa e que só apanha quem voar contigo sobre as coisas dos homens e do mundo. ficam sem nome as cartas, mas o canto dos pássaros está lá.
 
estupores dos pássaros.
 
as cartas ficam sem nome, mas os pássaros do nosso amor sabem que um homem ama mais a mulher do que o nome que a contem. e aguardam.
 
às vezes, enquanto te olho, os nossos olhos cruzam-se na praça solitária do desejo e tu sorris-me.
 
sei que os pássaros não sabem guardar segredos, mas não importa.

domingo, 7 de setembro de 2014

o vestido,

Às vezes, escolho amar-te com a ignorância do primeiro dia.
 
É como se, de repente, eu andasse dentro do escuro, como se pudesses chegar vinda do princípio do nosso amor em que um vestido leve principiou a frase. Na verdade, a frase não começou com o vestido - foi o que começou depois de o vestido estar esquecido no chão que foi a primeira frase do nosso amor. 
 
Volto, sem querer, àquela frase - é bonito uma frase começar com um mar de pele a acender no escuro partes de nós que o outro traz na ponta dos dedos, nas linhas que a língua desenha e onde escrever se torna quase impossível.
 
Chamar-lhe frase é quase ridículo - nunca soubemos escrever com pontuação, tu e eu. Há sempre um excesso naquilo que não se espera, há sempre um desacerto quando começamos a aprender a escrever o nosso nome com as palavras que o outro nos ensina.
 
A primeira vez que a polpa dos teus beijos me empurrou para o lado de dentro da pele, a primeira vez que deixaste os teus cabelos esquecidos no meu peito e eu não dormi só para que se atrasasse o tempo naquele abandono feliz das coisas e dos sonhos.
 
É mesmo estúpido dizer que um amor começa com uma frase - quando se ama, cedo se descobre que nunca se soube escrever, que todas as folhas trazem o branco da surpresa, que todo o amante é um analfabeto nas coisas do mundo. Se o nosso amor começou com um vestido, amar é despir tudo quanto não deixe ver-se a pele, amar é começar a chamar céu ao contorno dos teus lábios quando tudo em ti promete noite e tudo em mim esquece o dia.
 
Volto à surpresa do meu corpo a navegar o teu, volto a sentir-me bonito por andar na rua com o teu cheiro dentro das camisas como um segredo, volto porque todo o amor para ser grande há de ter, por entre as sombras, a esperança de um regresso.
 
Volto a esperar-te do lado de cá da porta - no rosto, um sorriso que não desiste, que não se cansa, que não tem horas e, de repente, os olhos são braços e a porta abre-se e dentro de mim a música começa a desenhar desejos debaixo da pele.
 
Nunca te disse que o nosso amor tinha começado com aquele vestido. Talvez o vestido tenha sido apenas o princípio - o que veio depois, isso sim, é o tempo onde volto sempre para encontrar de cada uma das coisas o lugar.
 

sábado, 6 de setembro de 2014

ardeu-te o coração?

"Ardeu-te o coração?", dizia o bilhete que te deixei.  
 
Saí para o desapego da cidade com a certeza de ter sido despejado - sair dos teus braços, de dentro da tua boca, do encontro da luz dos teus dedos é perder sempre.
 
Os parágrafos cinzentos em que se escreve a inclinação da nossa rua nos meus olhos, a pontuação desajeitada do desejo a tentar encurtar a distância - prender os olhos no mar e imaginar que as ondas se agarram também ao sonho de um encontro e vêm deixar na praia despojos das memórias que não conseguem perder.
 
Dentro de mim todas as janelas trazem a vista do teu corpo - nos vidros das montras quero encontrar os teus olhos, nas pedras da calçada o teu passo feliz de quem traz na pele a leveza de poucas promessas e muitos sonhos. Sentar-me num café qualquer a fumar um cigarro e fintar o desejo com o que só o silêncio nos conta.
 
Pensei na tua boca, no que ela me diz mesmo em silêncio, no litoral ventoso que a tua língua faz nascer no arrepio da minha. Pensei por que veias me chega a tua memória ao fundo dos olhos, por que esquinas da alma espreitas, sorrindo como se estivesses à espera.
 
As jarras das mesas trazem flores, há no chão sombras mais quentes do que os corpos que as carregam - há ainda um resto de Verão em tudo. Sorrio ao pensar que protestas quando deixo as portadas da janela do quarto abertas. Eu rio-me e digo-te que o frio te empurra para mim. 
 
Lembro-me do bilhete que te deixei - as palavras como poemas inacabados, a caligrafia como traço impreciso quando tudo o que eu queria era deitar-me contigo na véspera de todas as partidas e adiá-las sempre. Lembro-me da letra de uma música qualquer onde se escondeu a memória feliz do teu olhar ao levantar-se em direcção aos braços do meu.
 
Soube que era amor quando a espera me soube a renúncia.
 
"Ardeu-te o coração?" - os teus lábios a lerem a fome que traz a minha boca, os teus dedos a encontrarem os meus nos vincos mordidos do papel que te chama sobre a mesa.
 
Da janela que ficou aberta toda a noite, o vento sopra.
 
Como se esperasse, no regresso, uma resposta.
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

gerúndio,

no gerúndio dos teus beijos
sabe-me a boca ao mar que tu trazes nos teus olhos
os teus braços são os vidros abertos da janela sobre a noite
e os meus dedos ardem na vaidade de agarrar os teus

no gerúndio do teu ventre
prende-se-me a língua na ondulação do desejo
no jardim do teu peito abre-se uma urgência de infinito
e queimo no teu nome a escada da noite que se insinua

no gerúndio do teu sorriso
dança o vinho dos acordes da música que ouvias
no bolso das minhas calças ainda respira o vento que te trouxe
e há na minha cama restos de madrugada a começar

no gerúndio das tuas pernas
pousam-te os sonhos procurando os meus
na bainha da tua pele passa o gume dos meus olhos
e dentro da tua carne é noite e não dormimos

no gerúndio do teu rosto
são poemas as veias que puxam o teu corpo contra o meu
soltam-se da nossa nudez pétalas de luz
e o longe, de súbito, desaprende de correr

RM