quero-te com palavras ainda por inventar.
por isso, meu amor, não esperes na chegada da minha língua, as flores colhidas nos mesmos jardins de outros amores velhos e gastos, não esperes que o caminho seja o mesmo, que te deixe nos olhos os luares de promessas que morreram. não queiras isso, por favor.
quero-te com o azul de um mar que não existe e quero poder levar-te a passear nos braços de ruas que passem longe de todos os lugares onde já estive, quero deitar-me contigo nas costas quentes de todas as varandas onde o tempo não passe, quero ser velho contigo e não saber mais como partir.
por isso, meu amor, vamos primeiro aos beijos demorados dentro da noite, vamos, antes de tudo, tomar conta dos cantos todos do corpo um do outro e amarrar lentamente os nossos olhos acesos e famintos. façamos tudo, amor, como se no nosso encontro houvesse um milagre que há muito nos esperava para se cumprir.
quero ter cuidado antes de entrar depressa na história do teu corpo, quero encontrar-te primeiro os olhos e aprender-lhes as marés, habituar a pele às nortadas frias da tua tristeza e inventar um poente um pouco mais quente só para te ensinar esperança. quero subir devagar o vão das tuas pernas, parar a meio com medo de chegar cedo demais, demorar as mãos subitamente esquecidas de caminhar. quero encostar-me ao teu peito como se soubesse que do outro lado da parede a tua roupa está estendida no chão e tu me esperas.
agora falo pouco, amor.
primeiro a tua boca, as tuas pernas, os teus olhos, cada um dos teus sonhos derramados na ventania em que os lençóis se agitam no fundo do escuro. primeiro atravessar a nado a corrente do teu corpo, perder o pé na vertigem dos teus gritos e lançar-me contigo no abismo que se abre debaixo de nós.
por isso, meu amor, não escrevo palavras de ontem na areia da praia onde somos chegados hoje. já não as sei escrever e, mesmo que soubesse, teria medo de te perder na vastidão vazia que elas trazem. sabes bem que a minha língua anda ocupada dentro das fendas do teu corpo, a gramática é somente a que permite mais uma declinação em que a minha pele rouba da tua um sonho maior.
sabes bem que todos os verbos te chamam como se dizer andar fosse trazer sempre as tuas pernas atadas no fundo das minhas costas, como se todos os versos fossem formas de o teu rosto se abrigar na sombra fresca do meu.
por isso, meu amor, não me peças mais as palavras - não quero amar-te nos lençóis em que os beijos foram destroços e a solidão aumentava na escarpa das sombras que não caminhavam juntas. não quero, amor, fazer passar nos meus lábios feridas que apagam as sílabas molhadas do orvalho da nossa madrugada. não quero usar os mesmos nomes - os olhos são outros e chamam-se infinito, a pele é outra e chama-se primavera, os braços são outros e chamam-se casa.
vem morar comigo noutras ruas, deixar abertas outras janelas, dançar outras noites que não vão acabar nunca.
(vens?)
as palavras estão velhas, os meus olhos abertos a perguntarem-te se vens, se entendes que o que eu não quero é o teu nome esmagado nas dobras amassadas de um passado, misturado com o fel dos meus enganos e esganado pela aridez dos parêntesis em que a minha vida esteve parada.
primeiro, o teu corpo inteiro dentro da minha boca, depois a minha língua a incendiar-se como um rastilho e talvez, um dia, as palavras.
quando as palavras forem aves, talvez as use para falar do mar dentro dos teus olhos ao entardecer.
e elas já não me doam mais.
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