Rewind

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

acende um cigarro,

acende um cigarro, peço-te eu.
 
o escuro ainda é agasalho, as tuas mãos são a porta onde eu espero para entrar e os meus olhos inventam na curva nua do teu decote uma janela aberta de onde se veja o mar.
 
acende um cigarro como se cortasses as pernas ao tempo, como se os teus dedos não queimassem na repetição da minha pele as palavras que foram as primeiras e disseram tudo.
 
deixa que o silêncio se encha todo apenas dos passos apressados do meu peito e tudo o que se ouça no ventre dilatado dessa espera seja a pérgola abraçada dos nossos ossos sobre o abismo.
 
uma, duas, quatro escadas e a minha boca a ocupar os espaços vazios da dúvida dentro da tua, os meus braços a inventarem um outro nome para a véspera do fim, as minhas pernas a dobrarem as tuas como se o mar pudesse subir tão alto que houvesse ondas e maresia no desalinho intenso dos lençóis.
 
as horas são todas, de súbito, búzios que trazem na curva da garganta a saudade do teu nome e os meus passos dentro de ti são apenas formas imperfeitas de te sujar inteira na luz que se solta dos meus sonhos.
 
acende um cigarro, por favor. dá-me tempo de inventar uma desculpa, de, mesmo sem saber muito bem porquê, me esquecer das mãos no declive tenro das tuas pernas e começar o mesmo sonho no chão de uma outra esperança.
 
acende um cigarro e espera.
 
espera pelas salas onde ainda não deixamos o nosso cheiro, espera pelos clarões que ainda não nos cegaram os olhos e por todos os voos picados onde se despenha a razão e toda angústia.   
 
espera, meu amor. eu sei que ainda matas a sede na clareira da memória, que te deitas buscando na pele restos da minha saliva como numa extensa praia de lume e poesia. eu sei.
 
acende um cigarro enquanto fintas a espera e me dás tempo de chegar.
 
vou fingir que espero na porta fechada das tuas mãos e, enquanto isso, vou entrar pela janela ampla do teu decote.
 
deixa-a aberta, por favor. 
 
e deixa, mais que tudo, que eu chegue a tempo, meu amor.
 
 
 
 

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