Percebera porque os afectos o tinham cativo. Por que é que eram os mesmos rostos que afloravam na face dos seus dias.
Os dias enchem-se do que acontece em simultâneo nas nossas vidas e nas daqueles com que dividimos o caminho. Isso é a partilha. A tudo o que entendemos e se nos revela com um significado único.
Era assim que os outros haviam conquistado sobre si os dias que ainda não tinha. Ao ligarem-se as suas vidas por uma música perfeitamente prosaica; ao terem descoberto o sentido que afinal tinha uma qualquer coisa comum, garantiam a entrada nesse reino seguro que é o do entendimento. A união que se estabelece e se cristaliza em pequenas coisas à nossa volta é uma forma de a sentirmos mais real. É o corpo partilhado sem profanação.
E assim, ao som de uma determinada música; ao passar, de novo, por um local específico era a memória de alguém que aparecia por perto. O atribuirmos o mesmo significado às coisas do mundo mantém-nos secretamente ligados. E o facto do mundo, assim de surpresa, pôr no nosso caminho o som de palavras já ouvidas, dá-nos a ilusão de que há algo que se mantém para lá de nós, para lá do que se quebra e emudece.
Quando o corpo pesa menos e há alguém que conflui connosco na corrida dos dias, vamos bebendo uns dos outros o sentido por onde segue, afinal, o caminho. E vamos cravando na nossa memória conjunta aquilo que aprendemos como a linguagem do mundo.
É isso que encontra quem chega depois à nossa vida: todo o nosso arsenal de recordações onde vencemos a solidão e nos encontramos com alguém. Coisas a que continuamos presos ou para onde nos foge o pensamento sempre que a nossa pele passa por elas, outra vez. Vivemos sempre na vida dos outros. É a nossa lembrança que as visita no som da música que havíamos escolhido para nos dizer.
Quem chega depois significa por outras coisas. Significa o mesmo ou mais até. Mas nunca pelo mesmo. O que vem depois instala-se noutros lugares da nossa vida. Lugares onde tudo pode e começa do nada. Onde o chão é todo seu para ficar.
Prendera a vida e certos tempos dela ao som de certas palavras, ao corpo de certos objectos, ao significado aparentemente vazio de certos números ou ocasos. E ela aí continuava, como se se confundisse o que as coisas eram por si e o que ganhavam depois da sua vida se exilar nelas.
Aquela música não era mais somente uma música: era um tempo, era a juventude alicerçada num desejo de a marcar no Mundo. Ao ouvi-la voltava, por momentos, ao seu coração a ligeireza esquecida de sonhos assim guardados nas notas da melodia.
A vida faz-se mais real assim. Quem chega depois encontra o nosso mundo secreto construído em cima destes símbolos - palavras-passe de um mundo que vinha antes.
E podemos, como amantes tímidos, desvendar alguma da magia que a partilha nos fez prender nessas coisas. E começar a beber nas pautas deste outro que chega um novo entendimento. Mas será sempre uma voz a que falta a pele; um significar que principia mas por outros caminhos.
A vida é mesmo assim. Talvez a partilha seja a forma de darmos o nosso nome conjunto a alguma coisa que sempre nos guarde assim com alguém. E, em boa verdade, é garantir que o mundo quando nos visite na forma dessa canção ou dessa coincidência repisada, nos mantenha perto do que já fomos.
Partilhar é condenar o outro a um exílio nas coisas que partilhamos. Com elas volta sempre quem perdemos. Como se tudo continuasse na mesma. E talvez esses símbolos sejam o lugar da concórdia e da eternidade que os outros conquistaram na nossa vida. E uma forma de neles voltar o nome que já foi o nosso.