Rewind

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A partilha


Percebera porque os afectos o tinham cativo. Por que é que eram os mesmos rostos que afloravam na face dos seus dias.

Os dias enchem-se do que acontece em simultâneo nas nossas vidas e nas daqueles com que dividimos o caminho. Isso é a partilha. A tudo o que entendemos e se nos revela com um significado único.

Era assim que os outros haviam conquistado sobre si os dias que ainda não tinha. Ao ligarem-se as suas vidas por uma música perfeitamente prosaica; ao terem descoberto o sentido que afinal tinha uma qualquer coisa comum, garantiam a entrada nesse reino seguro que é o do entendimento. A união que se estabelece e se cristaliza em pequenas coisas à nossa volta é uma forma de a sentirmos mais real. É o corpo partilhado sem profanação.

E assim, ao som de uma determinada música; ao passar, de novo, por um local específico era a memória de alguém que aparecia por perto. O atribuirmos o mesmo significado às coisas do mundo mantém-nos secretamente ligados. E o facto do mundo, assim de surpresa, pôr no nosso caminho o som de palavras já ouvidas, dá-nos a ilusão de que há algo que se mantém para lá de nós, para lá do que se quebra e emudece.

Quando o corpo pesa menos e há alguém que conflui connosco na corrida dos dias, vamos bebendo uns dos outros o sentido por onde segue, afinal, o caminho. E vamos cravando na nossa memória conjunta aquilo que aprendemos como a linguagem do mundo.

É isso que encontra quem chega depois à nossa vida: todo o nosso arsenal de recordações onde vencemos a solidão e nos encontramos com alguém. Coisas a que continuamos presos ou para onde nos foge o pensamento sempre que a nossa pele passa por elas, outra vez. Vivemos sempre na vida dos outros. É a nossa lembrança que as visita no som da música que havíamos escolhido para nos dizer.

Quem chega depois significa por outras coisas. Significa o mesmo ou mais até. Mas nunca pelo mesmo. O que vem depois instala-se noutros lugares da nossa vida. Lugares onde tudo pode e começa do nada. Onde o chão é todo seu para ficar.

Prendera a vida e certos tempos dela ao som de certas palavras, ao corpo de certos objectos, ao significado aparentemente vazio de certos números ou ocasos. E ela aí continuava, como se se confundisse o que as coisas eram por si e o que ganhavam depois da sua vida se exilar nelas.

Aquela música não era mais somente uma música: era um tempo, era a juventude alicerçada num desejo de a marcar no Mundo. Ao ouvi-la voltava, por momentos, ao seu coração a ligeireza esquecida de sonhos assim guardados nas notas da melodia.

A vida faz-se mais real assim. Quem chega depois encontra o nosso mundo secreto construído em cima destes símbolos - palavras-passe de um mundo que vinha antes.

E podemos, como amantes tímidos, desvendar alguma da magia que a partilha nos fez prender nessas coisas. E começar a beber nas pautas deste outro que chega um novo entendimento. Mas será sempre uma voz a que falta a pele; um significar que principia mas por outros caminhos.

A vida é mesmo assim. Talvez a partilha seja a forma de darmos o nosso nome conjunto a alguma coisa que sempre nos guarde assim com alguém. E, em boa verdade, é garantir que o mundo quando nos visite na forma dessa canção ou dessa coincidência repisada, nos mantenha perto do que já fomos.

Partilhar é condenar o outro a um exílio nas coisas que partilhamos. Com elas volta sempre quem perdemos. Como se tudo continuasse na mesma. E talvez esses símbolos sejam o lugar da concórdia e da eternidade que os outros conquistaram na nossa vida. E uma forma de neles voltar o nome que já foi o nosso.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Porto em 21.11.08 às 17:28


Gosto da cidade assim. Quando nela se começa a desenhar o sono. Quando chega no ar a sombra da luz que se apagou. Quando o Sol vai iluminar outros dias e a Lua chega de outras noites. Quando passamos ao lado do dia que desce assim para repousar no seu leito. E recebemos a noite que lhe apagou a luz para o adormecer nos seus braços.
Também como na vida: a escuridão é o berço da luz.

Depois de ti


Nunca to disse, talvez. Gosto do teu amor revelado pelo que não me dizes. Ou pelo que me dizes tu, mas sem ti. Gosto do que me escorrega na pele enquanto dormes. De ter o máximo silêncio da tua vida e aí ouvir o teu amor por mim. Gosto do que te foge dos dedos onde seguras o tempo que é todo meu. Gosto do que me fica de ti, quando já não estás. A memória dos teus dedos marcada na minha pele. A sombra do teu corpo nos lençóis brancos onde ficou a tua memória no cheiro. Fico sozinho com o que me aconteceu de ti. E demoro o ar no véu revelado da minha saudade de ti.

Colo o corpo nas marcas frescas do teu calor. Absorve o meu peito o código secreto que a tua pele ali deixou. Lembro os beijos que me deste e que desejaste para dentro do meu sono. Fingi que dormia. Tocaste a minha testa e aí demoraste os teus lábios. Ainda sinto o beijo da vida que veio no ar quente do teu silêncio.

Vi-te sair. Dispensei o teu corpo para me agarrar ao que ainda é teu. Tomei banho no teu calor. Desenhei sonhos com a chama adormecida ao meu lado. Era ainda lume o que ficava depois do teu corpo. O lume brando do desejo que eram as tuas mãos ainda em mim, depois de ti.

A caminho do mar

Depois das lágrimas
Soube o segredo da tua vida
E o que me confiou a tua pele
Foi ser tudo vida e só vida
Vida apenas com aquele rio fundo
Onde corria a vontade
Onde corria já hoje
O mar que há-de ser amanhã.

Ricardo Pinto Mesquita

Pedir não custa



Será?

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A nostalgia


Gostava quando a saudade o visitava assim: passos rápidos, da velocidade do ar que inspirava até que era toda sua. Ou do seu peito, que era o mesmo. Gostava do seu corpo quieto sob a luz cinzenta do céu de cobertores. Estava deitado perto da janela. O corpo estendido, existindo apenas o dentro que só ele via.

E o seu corpo era o retrato silencioso do que já lhe passara nas veias. Lembrou cheiros onde planara mais alto. Lembrou o olhar do avô onde sempre se sentira seguro. Os corpos que amara e que devolvera à terra. Lembrou os amigos que perdera. E aqueles de quem se perdera. E aí a saudade doía, misturada de culpa e banhada de um remorso como o orvalho triste nas ervas da manhã. Ela vinha no seu namoro infiltrar-se nos ossos e trazer à luz tudo a quanto havia ele emprestado o seu olhar ou a memória da pele onde demorara os lábios.

Passava-lhe no corpo o fio suave da memória. E só por ali sentia ele que vivera. Por tudo o que já não tinha.

Às vezes, via o brilho da luz demorar-se na lembrança e só então reparava. Reparava como o sorriso da mãe sempre fora o mesmo: imenso, terno - uma cama de paz onde podia dormir. Como aquele amigo fora importante e ter o seu abraço fora o orgulho maior. E a saudade doía mais. A saudade de ter sido feliz. Uma felicidade que lhe voltava ao sangue como a um filme a que não volta a voz. Imagens soltas e caras onde se desenham linhas. Ele a adivinhar-lhes a ira ou o contentamento inteiro mas a voz a escondê-la o manto espesso do silêncio.

Ficava no corpo moído, o eco marcado dos seus passos. Fechava melhor os olhos até que o sangue afogava tudo, de novo, no fogo quente. Como num quarto há muito fechado onde, depois de nós, o pó assenta numa chuva serena de entrega às coisas que o tempo, mais do que elas, lhe entregou.

Só pelo que perdera percebia o quanto tinha vivido. E teve vontade de ser o pequenino a quem a mãe amou mais do que tudo. Ou o amigo que não perdemos e nunca se perde. A memória misturava-lhe no rio de sangue a nostalgia. E ela, com a sua voz doce, suavizou os traços e diminuiu as distâncias. E ele pôde ser, de novo, o filho que adormece no colo da mãe. O corpo pequenino e cansado de querer mais ar para os seus sonhos. E foi o amigo que a vida não apagou.

A memória nunca apagava o sonho. Lembrava-o sempre do que não acontecera. E ele sonhava de novo com um gesto suave de mãos que tocam quem amam. Sonhava que à sua voz o amigo sorria de novo. E que a mãe sentia que a vida toda cabia nos seus braços de novo.

Gostava da saudade. E do que ela trazia. O tempo contendo a nossa vida. Os nossos erros. A possibilidade de rir de novo. De provar, de novo, o sabor das lágrimas que nos fugiram. Demorar aí o gosto, molhar aí a pele. E escrever, bem fundo, com a tinta lenta da nostalgia o que o nosso amor sonha por cima das falhas. E para lá delas. Como promessas na areia que uma onda vem roubar.



Schindlers List Theme - John Williams

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Os outros


Andava por esses dias com um desejo incumprido no peito. Não era nova a sensação. Já a tivera muitas vezes. Talvez porque ficasse sempre a sensação de que o sonho com o ar das ruas acontecia, invariavelmente, de forma diferente. Ou não acontecia de todo.

Sabia ter sido intenso. Sabia tê-lo queimado a dúvida, mais uma vez. E poderia até ter ficado sozinho. Mas já não importava. Gostava desse jogo de sonhar mas correr o risco de o querer já, de o sonho ter pele e andar nas ruas por onde passeamos os corpos.


Gostava de ter dito as palavras não confessadas, a escavar o ar frio das noites. Gostava de se ter dado e exposto como a mais alta e a mais íngreme das montanhas.


Vivia dos sonhos, mas não vivia neles. Gostava que no sonho coubesse a face exposta do mundo: o arame das palavras mais tristes, a crueza dos gestos mais magoados. E que tudo se resolvesse - como a vida que se cumpre sem travões e que sempre faz aproximar as almas e os corpos nesse único medo que é o de perder.


Mas diziam-lhe que isso, sim, era irrealista. Que não sonhar tudo perfeito mas continuar a acreditar e a chamar-lhe sonho era a quimera das quimeras. Que perdoar e ficarem saudades do que não continua no caminho não era certo.


Há muito que esquecera o manual dos orgulhos e desistira de tentar agarrar-se à ilusão solitária de vitória sobre os outros que resulta dessas regras. O que o guiava era esse amor quase incondicional que era o seu pelos outros. Com a única condição de viver enquanto o sentisse como tal.


E caminhava com esse desejo incontido no peito. Havia espaços abertos na sua vida. Horas que sabia teriam outro nome se viesse no tempo o que ele vira. Mas aprendera a amar o que vem. E ao que não vinha nunca esquecera o nome. Nem as falhas. Por isso, não era sonho. Era vida feita acima de nós. Vida feita dessa memória feliz que nenhuma raiva apagava. Defendia-se do mundo assim. Podiam roubar-lhe os sonhos. Mas ao pô-los no mundo, sabia o caminho.


E, com isso, podia caminhar sozinho. Não queria nada sobre os outros. Nem vitórias, nem nada. E não se sentia derrotado. Queria apenas a vida. Feita dos milagres que acontecem connosco lá, apesar de nós. Ou porque os outros eram essa espécie de fé. E então os milagres aconteceriam sempre por causa deles. Ele pelo menos acreditava que sim.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Na casa




Sempre fora de entregas demoradas. Não sabia porquê mas viviam-lhe na pele sempre os sonhos muito tempo. Pensava que talvez fosse isso de viver muito que lhe desse memórias suficientes para se lembrar a si e aos outros. Fora seu peito sempre cimento fresco onde secou cada um dos amores e das entregas.




E não lhe pesavam. Embora os carregasse já sem doer, com a vida que ainda faltava, esperava que nascesse em quem partira o súbito desejo de retomar a vida que parara. Aprendera a visitar a memória sem que doesse. Visitava o tempo ido em que o amor tinha corpo presente mas vivia para lá dele. Isso era a prova que tinha de que era verdadeiro.



E, por isso, não deixava esquecer as promessas. Não era porque não se tinham cumprido que eram menos verdadeiras. Talvez se agarrasse a isso. A verdade não é só aquela a que emprestamos o sonho e julgamos legitimar.


A verdade é tantas vezes uma verdade sem corpo. Só a si foram ditas aquelas palavras e só no seu corpo curara alguém as suas feridas. E sabia-o quando caminhava já sem ninguém.


Aprendera a agarrar as verdades que mais ninguém vira. E a confiar na sua voz que lhes limpava o pó e as ressuscitava da sombra.


Muitas vezes era uma casa abandonada. Sítio de encontros e desencontros; o corpo aberto e o medo da entrega sempre vencido. Um corpo espoliado do que nunca fora seu para além da força de um amor sincero. E esse amor foi o pedido calado de que ficassem os corpos desse amor.


Que ficassem depois das piores palavras. Que ficassem depois de acontecer o avesso dos desejos. Hoje sabia que o amor era mais amplo do que imaginava. Que o peito pode chamar amor ao que o orgulho rejeita.


O amor faz-nos humildes. Quem ama nao percebe que sente o infinito somente na pessoa que está diante de si. E isso é pedir menos.


Mesmo que fosse essa casa abandonada - assim com o ventre exposto - só a sua presença poderia arrancar daquelas paredes a memória perdida de existências felizes. Sem si tudo aquilo seria uma cama vazia onde só dorme o tempo.

Gostava de recordar. De devolver à sua pele, pela mão saudadosa da memória, o arrepio fácil que fora o seu. De rasgar de novo as cicatrizes fechadas para imaginar que quem as levou também as tem.



Só pela sua mão viveria de novo essa felicidade ida quem já partiu. E gostava de ver as pessoas felizes. Por isso agradecia a vida que teve. Essa que carregava no corpo e na voz. E que fazia tudo mais leve.

Ela


Imaginou-a ali na sala. Entrou em casa molhado das bátegas furiosas do vento e quis tê-la por perto. Quis que ela estivesse lá para lhe segurar o corpo nos braços pequenos. Para lhe ouvir em silêncio tudo o que não tinha voz mas que existia.

Havia uma janela enorme ao fundo da sala. Imaginou-a ali quieta vendo a cidade dormir e a fumar. Chegou devagarinho e surpreendeu-a. Agarrou-a pela cintura e colou o corpo molhado ao dela. Ela arrepiou-se. Ele sussurou qualquer coisa aos seus ouvidos. E semeou-lhe beijos pequenos no pescoço alto, colhendo dela o cheiro suave.

Agarrou-a com força. Via nos olhos dela a luz espelhada da noite. E ela virou-se para ele. Tudo o que ele queria eram aqueles olhos a verem dentro dele. Os olhos dela a pedirem que ele ficasse.

Sentia um ímpeto tão forte no corpo que não sabia onde pôr os olhos e a boca. As mãos tinha-as no cabelo dela descendo, às vezes, pelos ombros até ao fundo as costas. Ela ouvia-lhe o coração e ele ouvia-lhe o corpo a incendiar-se devagar para depois ser a expiação de todos os seus males.

Ela despiu-lhe o dia molhado do corpo. E com um silêncio de gestos beijou os cansaços da sua pele. Escutou-lhe os segredos e fez-se dele nos braços compridos do seu amor.

Ele olhava-a sempre com aquele amor do estômago a que se chama desejo. Sentiu que nada mais falava para além da vontade acesa de ficar ali nos braços dela. De ver adormecer as formas do corpo dela com o sabor dele na pele.

Ela agarrou-o, encaixou-se no peito dele e dormiu. Ele já não estava cansado. Olhou-a a dormir e cobriu-lhe o corpo com o seu. Sentia o ar dela bater-lhe ao de leve na pele.

Sabia que a amava. E tinha vontade de caber inteiro no fundo dos seus olhos castanhos.

Adormeceu. E amou-a mais por saber que se encontrariam em sonhos.

*imagem do filme: "Le Fabuleux Destin d' Amélie Poulain"

O rio


Encheu a casa de gente. As janelas abertas, os corpos estendidos e espalhados ali por perto. Tinha posto alegria na tona dos dias. As vozes eram alegres e nos seus ritmos e sentires, acreditou que a vida seguia. Mas de todas as vozes que ouvia, a que falava mais alto era a da ausência. A voz perfeitamente vazia e calada que os passos que não vêm só agudizam mais.

Tinha corpos perto. Mas nenhum lhe falava de todo um passado juntos - daqueles sonhos que o amor dos outros tinha posto no seu coração para desejar.

Há uma música que toca e o seu embalo ouve-o a noite que parece adormecer mais fundo.

Continuava a ouvir o som feliz que lhe gravara a memória. Só nunca pensou ficar feliz mas já não ter aquilo. Eis que percebeu que não podia, então, ficar feliz. Que, de facto, não ficava mais feliz ao lembrar o que os dias não trazem no bolso.

E nos bolsos pode guardar-se toda uma vida. Coisas pequenas, geralmente as mais importantes, e que enfiamos no bolso para continuar o caminho.

Olhou a noite. Lá em baixo, o rio largo e imenso como um oceano de calma. Boiavam luzes e a cidade dormia serena. Imaginou que pudesse estar por perto. Que estaria por perto, na mesma cidade. Apeteceu-lhe dizer que viesse para que não se perdessem mais.

E disse-o, em silêncio, o seu olhar preso no desenho das ruas.

Pensou que a calma do rio pudesse ser aparente. Que talvez no fundo que ninguém ouve clamasse ele por navios que já não voltam.

Saiu sem que ninguém desse conta. Escondeu na noite o corpo para não ter que esconder nada. A saudade que tinha encheu as ruas. E no sono da cidade houve duas pessoas que se encontraram. Não sabia se as cidades sonhavam ou não.

Fechou os olhos e tudo o que quis foi não ter que acordar.



sábado, 17 de janeiro de 2009

Na cidade


Encontrou a cidade deserta e passeou o corpo assim sozinho pelas ruas de ninguém. Passeou no corpo daquela cidade tão sua e dobrou as esquinas, mais uma vez. Lembram-lhe as fachadas das casas e dos prédios enxovalhados isso que foi entregar a sua vida a alguém que também passou por ali.

Sabia-lhe a cidade à memória de um fogo que arde já sem queimar. À memória que resiste sem ódios, de repente, toda feita de uma saudade feliz. E embora soubesse ter já acreditado tanto e perdido quase tudo, de cada uma das vezes, nos braços daquelas ruas sabia também que elas lhe trariam, de novo, algo em que acreditar.

Era um amor sólido o deles. A cidade e o seu corpo a que ele se habituara eram a certeza de que algo não mudava. Que talvez conseguisse ele próprio ficar igual depois de olhar as mesmas grades de ferro e as portas entreabertas das esquinas e elas continuarem lá. Tinha esperança de se ter convertido ele também num caminho a que alguém soubesse sempre reconhecer o corpo e devotar-lhe o amor calmo de passos seguros e firmes.

Sabia que chegariam outros para palmilhar as ruas que foram suas. Sabia existirem outras vidas paralelas mas, a cada passada no escuro da noite, ele sabia que a cidade lhe dava os braços como a ninguém.

Por isso a procurava tanto. Nos momentos felizes para se exibir inteiro e sentir que tinha de onde vir e para onde ir - isso de outras vidas ligadas à sua e a dar-lhe a sensação de uma existência muito maior.

Nos momentos menos bons para encontrar o colo e o conforto mórbido de lhe terem ouvido as paredes, e ele a sabê-lo com uma certeza de pedra, todas e cada uma das promessas.

Ela tinha estado sempre lá. A dar a luz perfeita em que ele tinha descoberto na vida de outros motivos para ficar. Em que ele tinha descoberto na sua motivos para não deixar que não ficassem.

Aprendeu a confiar que ela lhe daria as esquinas para encontrar e descobriu que nelas também podia perder. E perdeu. Mas ele amou-a. Amou-a uns dias com um amor fácil e inteiro do corpo ser leve; noutros com essa ponta de ressentimento que só sente quem sempre ama, depois de perceber que é amor o que fica depois da digestão da perda. Ela ensinou-lhe a imaginar o amor sem procurar no escuro que não veio ainda o que amar. Ensinou-lhe o amor como uma porta entreaberta das suas que alguém decide espreitar. E ele percebeu que havia sempre medo.

Mas que, tal como com eles os dois, o amor é um longo caminho que começa em sítios pouco prováveis para acabar em lugares mais improváveis ainda. E que só ama verdadeiramente quem põe a mesma fé e devoção no amor, mesmo que ele o leve a sítios que nunca quis ou esperou. O Amor é uma abnegação da vontade.

Por isso ele a amava. Àquela cidade de temperamento marcado. Por ter sido nela e no seu corpo onde ele mora que amar fez sempre sentido. Um sentido que de sentido só tinha esse gigante silencioso nas veias a que chamamos esperança. E isso, como o nevoeiro que, de repente, caíra lembrava-lhe que quem ama volta sempre, de qualquer maneira. E isso era tudo o que ele precisava. E ela sabia-o, mais uma vez.

Os Amigos


"Os amigos. Entrariam por uma casa em chamas para nos salvarem. Mentem por nós à nossa própria mãe. Sabem de nós mais do que somos capazes de lhes dizer. Jurariam que à hora do crime estávamos a tomar chá com eles. Mesmo que a polícia nos encontrasse com as mãos cheias de sangue. "São rosas, senhores. Andei com ela toda a tarde a cortar rosas, senhores. Sangue de espinhos, senhores."

Eles exigem-nos coisas de nada. As nossas lágrimas. O nosso lenço de assoar. A pele dos nossos inimigos. As batatas fritas do nosso bife. A nossa melhor roupa, por uma noite. Exigem-nos tudo o que nos dão. É preciso regá-los constantemente: é nos ombros deles que cai toda a água dos nossos olhos. Eles espevitam-nos o sentido de humor quando menos nos apetece. E depois ficam connosco quando as luzes se apagam e toda a gente se foi embora. Só aos amigos é dado o espectáculo da nossa miséria."


Inês Pedrosa in "A Instrução dos Amantes"

Regresso

Devolve-me os teus olhos
E contigo traz também minha vida
Assim num rasgo, num grito, num sopro
Todas as palavras, os silêncios, as dúvidas
Que me dizia teu corpo
E me apagava tua alma na minha
Traz a loucura no sangue
Nas noites a nascerem dos dias
No céu infinito da lembrança
Que aqui me visita
Cai com a chuva do céu
Rega minha pele
Escorre nos meus braços inteira
E vem devolver aos meus lábios a vida
No beijo molhado do regresso.

Ricardo Pinto Mesquita

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carmeiro

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

"Fica"

Confesso ter andado a pensar no que é isto de se ser viciado em gente. Assim mesmo: vício e gente.

Carrega a palavra "vício" essa dose (ironia feliz, esta) de medo, de sombra como se a tinta que a escreve, a não absorvesse totalmente o papel. Significa amputarem-nos o inteiro; o haver fora de nós o apelo irresístivel de nos cumprirmos. E há muito que sei que nos pode correr nas veias uma necessidade absoluta de nelas metermos nomes, vidas inteiras, promessas e deixá-las chegar ao coração.

E carrega "gente" o mundo inteiro. Carrega-nos a todos nos ombros esta palavra com som de mãos a passarem em paredes ásperas. Carrega todos os rostos e peles; toda a luz e a sombra de que somos feitos.

E faltar-nos algo que anda aí escondido no jogo das vidas a ajustarem-se na medida exacta para ver o Mundo, não é fácil. Há quem chegue e fique. Fique logo, como o raio de luz mais audaz. Mesmo que o não admitamos. E há aqueles amores difíceis, os mais improváveis e feitos dessa vontade de nos amarmos em lados opostos da vida e do Mundo.

Amar o modo desajeitado com o que o Mundo nos põe no caminho uns dos outros é perceber que os olhos foram feitos para ver mais fundo. Aceitar que o mesmo Mundo nos leve aqueles que já nos sabem distinguir pelos nossos passos dentro deles, é perceber que o amor pelos outros pode ser também uma vela que mantemos acesa e que arderá sempre connosco.
Eis que só assim o teatro da vida fica completo: quando estamos com os outros como estamos sós. Nesse esquecer na presença de alguém tudo o que já foi só dele, para o fazermos nosso e lhe reconhecermos a nossa pele. E cedo descobrimos que, na verdade, ninguém condiz com ninguém, em absoluto. Nem nós tão pouco condizemos connosco. E, por isso, porque precisamos ou porque queremos simplesmente ter alguém por perto, acendemos a tal vela da esperança. Do acreditar que a promessa das nossas vidas umas nas outras e os corpos bem por perto, vai resistir ao Mundo, ao tempo e, sobretudo, a nós mesmos.
E é bom agarrar o compromisso de alguém contra a noite da vida. Dormir melhor depois de alguém acreditar connosco. E se chegar o dia em que o medo, a dor, as palavras imundas parecem apagar o lume que o olhar de alguém acendeu, é sempre bom lembrar que o Sol continua lá, apesar das nuvens, como me disseram um dia. E que as palavras trocadas estão gravadas numa página que queríamos ganhasse o pó do tempo.
E podemos sempre voltar a esse ponto. Quando a nossa memória passar pelo mesmo sítio. Pode a vida ser vivida mesmo de trás para a frente. Ou de todas as maneiras em que procuramos encontrar forma de ouvir a nossa voz, sem perder a dos outros.
E é isso que acaba sempre resistindo: a memória dos tempos que têm a nossa esperança gravada. O som de tempos felizes que nos acaba sempre visitando. Desses tempos em que acreditamos que o sempre seria nosso, depois das falhas, para lá do medo. E uma vez chegados aí, tudo é possível. Porque nunca se perdeu. Tudo sempre esteve ali, pronto para ser recomeçado depois de um abraço que diz: "Fica. Desta vez, fica."
Porque, sim, o avesso do Amor é tantas vezes o Amor mais forte.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Bruno e Lucifer*















*"What saves the day, today?"

Abre comigo a porta do amanhã
Fitemos juntos de mãos fechadas
O mundo que nasce da noite
Em todas as vésperas rasgadas
Descubramos os dois
Na luz do caminho
Nossas almas imensas
Nossas vidas atadas.

Ricardo Pinto Mesquita

Entregar-te

Entregar-te de novo um dos meus beijos
E suspender aí minha vida
Teus lábios nos meus
Minha boca na tua
E falar sem voz
Do nosso amor de silêncio
Ouvindo no peito a vida correndo
Um mar de saliva
Um céu de suor
Dias infinitos
Horas de esplendor
Ricardo Pinto Mesquita

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Sob a luz

Não escondas de mim tuas falhas
Não ponhas longe e bem dentro
O cansaço da vida e das horas
Vem para junto de mim
E deita teu corpo agora
Na cama de silêncio
Nas horas mais vivas
Do teu corpo quieto assim
Sob luz de cetim.
Ricardo Pinto Mesquita

Next time

Maybe before you leave next time
You should look behind and see
The infinite sorrow that's mine
The lonely place that remains
When all that's left is me.

Ricardo Pinto Mesquita

Imagino

Imagino que venhas na manhã que nasce
Fora dos meus sonhos
Penso que não passará mais um dia
Sem que chegues tu
E contigo
A vida inteira nas horas
A mão quente
No corpo frio da noite.

Ricardo Pinto Mesquita

Caminhando

Caminhamos sozinhos
Todos nós sem remédio
É só nosso o ver por dentro
De nós e do nosso tédio

Não há mais ninguém tão preso como nós
Às vozes que falam cá dentro no fundo
Tão longe de tudo
Tão longe do Mundo

Só nós sabemos o segredo
Que nos conta nossa Vida no peito
E só nós lhe sabemos a voz
Que não é só ela
Que somos também nós.

Ricardo Pinto Mesquita

Crime

Foi meu único crime ter-te amado para lá deste corpo
Amar-te sem lhe ver fim ou distância
E foi minha pena
Condenar-me o mundo de novo
À prisão solitária da saudade.

Ricardo Pinto Mesquita

Velas

Foi meu peito vela
A que tu deste o vento
Foi teu corpo meu abrigo
Depois de dormir ao relento

Sem ti serei mar sem maré
Serei Deus sem ter fé
Vida sem ter quem a viva
Luz sem ter quem a brilhe

Serei corpo sem vida
Cinza perdida
Do fogo que ardeu
Saudade imensa de tudo o que se perdeu.

Ricardo Pinto Mesquita

Nos teus braços

Meu coração acredita e ouve
Nos teus braços e so neles
A voz quieta do silêncio
Que abafa fundo meu desgosto
Iluminado, de repente,
Pela luz celeste do teu rosto.
Ricardo Pinto Mesquita

Afago

Afago teus olhos
Que em mil noites me sonharam
Afago teus braços
Que em mil noites me salvaram
De mim e do Mundo
E aí fico seguro
E aí fico quieto
Corredor largo de um sentimento profundo.
Silêncio guardado de um amor secreto.


Ricardo Pinto Mesquita

Vida

Ouvi-te a vida em segredo
E guardei-a assim no meu peito
E só a mim me concedo
Fazê-la minha também por direito

Mesmo longe de mim
Chega aqui teu lamento
E a uma distância assim
Chamo eu de tormento

Visita-me em sonhos
E chora-me nos olhos
O medo de que o Mundo
Se faça de repente maior
Se faça de repente mais fundo.

Ricardo Pinto Mesquita


Medos

Tudo me fala de nós
E daqueles dias só nossos
Em que em nós, nus e sós
Não havia remorsos
Tudo é uma saudade maldita
Que na chuva que cai e magoa
É ausência que se ouve e que grita
E são todas minhas as dores e os medos
Que vim a saber
Eram teus
Que vim a saber
Também tinhas.

Ricardo Pinto Mesquita

No meu peito

A tua pele adivinhou-me o desejo
E no teu corpo apareceu
Com a noite que cai
O amor num lampejo

Ainda lembro teu rosto
Adormecido no cansaço vencido
Ainda lembro teu dormir
Nesse tempo perdido

Nasceram flores no teu olhar
Pus-te no peito meu nome
E foram tuas as mãos
Que o quiseram guardar

Na areia do tempo que some
Vem teu nome visitar-me
E fica de ti essa fome
Dentro do peito a devorar-me.

Ricardo Pinto Mesquita

Volúpia

Afogo a alma em pecado
Nesta vertigem louca de te amar
É este o meu fado
Onde te vens tu deitar

Trazes contigo a doçura na voz
Ficamos os dois apenas e sós
O corpo solto e os olhos abertos
Ficamos os dois cobertos

De volúpia e sonhos consumidos
De paz e verdade
Enrolados apenas em gritos perdidos
De um amor sem idade.

Ricardo Pinto Mesquita

Na estrada

Não volto ao caminho
Que me levou até ti
Esses dias que doeram
Eu já esqueci

Mas longe dessa estrada
Onde encontrei tua alma
Fica-me a Vida parada
Falta-me sonho
Foge-me a calma

Só então percebo
Que o que esqueci foi a dor
E que de ti só ficou
A lembrança doce do nosso amor.

Ricardo Pinto Mesquita

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Porta

Vejo as ruas do lado de lá do vidro
Imagino-te nas minhas costas
Talvez dormindo
Com o corpo todo do lado da paz
Ou ainda andando pela casa
E junto os pedaços de memórias
Que aquelas paredes viram acontecer
Demoro a encontrar-te
Mas penso que a porta nunca esteve fechada
Da próxima vez, se vieres, talvez a feche.

Se vieres, pela porta aberta
Que o meu coração não fechou.

Ricardo Pinto Mesquita

Voz

Que me aconteça estarmos sós de novo
E quererei ouvir a voz do teu coração
Para que ele me diga
Que foi verdade o que me viveu o sangue
E terei, então, o que chamar
Aos dias que tivemos
Queria chamar-lhe Vida
Para ser ela que fique
Na tua próxima partida.

Ricardo Pinto Mesquita

Rua

Vejo que as ruas são ainda ruas
As ruas de sempre
Na luz morna de sombras que se agitam
Vejo nelas a lembrança doce
Dos dias que me levaram até ti
E seguro hoje no peito
A certeza de que foi nelas
Algures
Que me perdi de ti.


Ricardo Pinto Mesquita

Na luz

Esmago a humidade que se quer infiltrar
Para me fazer menor o sonho
Esmago com os dentes cerrados
A pequenez nossa que chega
Em palavras àcidas, em dores que criamos
Àqueles que amamos.
Debaixo da fraca carne existe a promessa
De teu coração junto ao meu
E por me ser prometido teu nome
Luto para que seja sempre Sol meu amor
Para que seja sempre luz
Como a do dia que, enfim, se some.

Ricardo Pinto Mesquita

Em mim

Coube em mim um amor
De corpo infinito
E respirar intenso
Coube em mim uma vida
Maior do que o sangue e as veias
Maior do que o abismo
Do cansaço e da dúvida
Coube em mim um sonho
Maior do que o tempo
Maior do que os dias
Fez-se em mim maior do que tudo
O que queria para ti
E por ser para ti
Fiz minha vontade
Do tamanho do sonho
E sonhei para ti
A vida escrita devagar
Nas linhas do tempo.

Ricardo Pinto Mesquita

Chegada

Chega um dia
Resgata-me da distância
Para ficar perto de ti
Chega e traz de volta
O teu sorriso
Chega assim do nada
E reconhece-me depois do tempo
Fica comigo
E cumpre as promessas
Devolve-me a verdade em que acreditei.
Ricardo Pinto Mesquita

Calados

Podemos calar a dor tão fundo
Por-lhe por cima a mordaça do corpo
Que acabam esquecidas
As palavras que a dizem

Chegamos a querer na verdade
Que ela se esqueça de nós
Que se esqueça de doer
Na noite triste em que nos achamos sós

E quando nos sai do peito nas lágrimas que correm
A vertigem calada da tristeza
Tudo o que pedimos são uns braços abertos
O abrigo seguro da certeza.


Ricardo Pinto Mesquita

Vazio

Minha pele recebeu teu amor
Chegando assim na tua voz calma
Junto ao meu ouvido
E o som dele me entrou no sangue
Para ser loucura e ser cegueira
Para levar bem dentro de mim
O eco infinito da saudade
Que chega, bate e fica
Na cinza
Da paz assim feita ansiedade.



Ricardo Pinto Mesquita

Fogo

Foi meu peito fogo aceso
Onde ardeu o desejo de me fazer inteiro teu
De me fazer inteiro desta esperança cega
De que duraria toda uma vida
E até ao fim
O teu nome no meu ser
A tua vida
Junto a mim.

Ricardo Pinto Mesquita

Sós

Das almas que sofrem caladas
Ninguém lembra dores e pecados
E por andarem caladas assim
Finge-lhes o Mundo a paz desejada
Enche-lhes o vazio de um passado
Com alegrias que já não há
E se falam essas almas
É uma voz que se não ouve
É um grito surdo que morre
Debaixo da voz
Que vem e nos lembra
Que estamos perdidos
Que estamos sós.



Ricardo Pinto Mesquita

Farol

Ouviste à minha voz
Minhas penas
Em palavras agora serenas
E juraste fazer chegar o sol
Sempre mais fundo dentro de mim
E agora tudo o que ficou
Foi um fundo maior
Onde não chegas tu
Nem chega o Sol
E de mim tudo o que sou
É um barco sem remo
Um mar sem farol.


Ricardo Pinto Mesquita

Minh'alma

Fecho minh'alma
Debaixo do tempo que passa
À espera do tempo que falta
Para que chegues
E meu único pecado
Foi ter amado em todas as vezes
A paz serena da tua mão
Nos dias inteiros que já lá vão.

Ricardo Pinto Mesquita

Feito assim

Foi meu coração
Que me deu tua pele
Para me doer tua vida
E se agigantar meu peito
Sempre que é felicidade o que vivas
Foi meu coração que me fez assim
E fugindo dele
Fugiria de mim.

Ricardo Pinto Mesquita

Na noite

É na noite que corro nas ruas
Que ponho meu corpo a passar
Nas vielas estreitas do fundo do escuro
Para que me vendo teus olhos
Te pareça eu um recomeçar
Sem dor, sem distância
Somente um vulto
Somente alguém que veio
E quer ficar.

Ricardo Pinto Mesquita

Chão

Juntaram-se às minhas as lágrimas do céu
E nas ruas da cidade que percorro
Escorrem no chão dos passos que passam
Os silêncios feitos d' água
Os gritos abafados de socorro.

Ricardo Pinto Mesquita

Rasteja no pó meu coração
Com sede de ver chegar
Das portas fechadas por ti
O abraço apertado que me devolva
O coração que é meu e que esqueci.

Ricardo Pinto Mesquita

Dor

Haver dor
E se não verem as feridas
É como haver vida
E se não ver o corpo

E quando tudo o que dói
É essa vida sem corpo
Essas feridas sem voz
Fica a doer-nos o vazio
Que nos ouve o vento que passa.


Ricardo Pinto Mesquita

Solidão

Ser a solidão
Tudo o que nos deixam
Para nos acompanhar no caminho
É saber-nos a boca ao pó das juras
E não podermos cumpri-las sozinhos.

Ricardo Pinto Mesquita

Será?

Será ainda coragem o que resvala nestas lágrimas?
Será ainda sonho o que continua sem ti?
Será ainda esperança o que dói?
Ou o que é e o que fica
Já não é nada do que foi
Por ter morrido
Antes mesmo de ter sido tudo
Quanto podia
E o que fica
Ser o pouco
Que acaba não sendo nada.


Ricardo Pinto Mesquita

Lume

Encontro em fotos
Sorrisos que alguém me desenhou no rosto
E vejo neles uma luz
Que não há mais quem acenda
E enquanto se apaga tudo
Fica-me na pele e no papel
As cinzas do lume que ardeu.

Ricardo Pinto Mesquita

Noite

Olhei-te tantas vezes enquanto o dia não vinha
E quase pedi que a vida parasse
Aí no teu sono quieto
Aí no meu sonho acordado
Por temer que houvesse um dia
Que nos roubando a noite
Te roubasse de mim.
Ricardo Pinto Mesquita

Nos teus olhos

Saudade de reparar assim nos teus olhos
Sem que me vejas
Reparar neles por entre o ruído do Mundo
E lembrar-lhes o brilho que guardei nos meus sentidos
E deixar o meu amor por ti
Falar-me no meu peito
Que ninguém ouve.

Ricardo Pinto Mesquita

Esbulho

Queria roubar deste silêncio
As palavras que o vazio pede
E fazer delas os braços
Onde pudesse abandonar-me de cansaço

Queria calar o medo com a certeza
De que das cinzas viria a vida
Com os nossos sonhos combinados
Por mais um dia

Todos os dias.
Até ser dia.

Ricardo Pinto Mesquita

Restolho

"E a vida não é existir sem mais nada
A vida não é dia sim, dia não
É feita em cada entrega alucinada
Pra receber daquilo que aumenta o coração"

Mafalda Veiga

Ainda

Sou ainda eu, aqui
Vês como são ainda meus olhos
Como são ainda minhas mãos
Por baixo do peso do Mundo?

E serás sempre tu
Quem verei no meio da turba
Por mais que o Mundo pese
Por mais que a Vida passe.

Ricardo Pinto Mesquita

Na minha pele

Passa por mim devagar
Olha-me com cuidado
E pára em cada linha da minha pele
Demora em mim a tua mão
Com cuidado
Para não chamares o tempo
E ele nos vir roubar o sempre.

Ricardo Pinto Mesquita

Memórias*

"E se algum de dia me afastar de ti
E se algum dia me esquecer de nós
Vem procurar-me onde estiver
Não penses que sei ser sem ti
Sou apenas um aprendiz de viajante!"

*Obrigado Mariana por me teres dito isto um dia, há muito tempo, e fazer sempre sentido.

Sol

Querem os meus olhos ver de novo
Os dias inteiros caídos no horizonte
Quer minha pele ter de novo
Quem lhe conte
Que vem no amanhã a promessa
De que é pela tua mão na minha
Que o Sol sempre regressa.

Ricardo Pinto Mesquita

No vento

Veio no vento a tua lembrança
E quase te tive de novo
Tudo luz, tudo inteiro
Alma na carne
Tudo meu
E foi no vento que veio
O derradeiro sonho que não morreu.


Ricardo Pinto Mesquita

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Passos

Choro nas lágrimas as palavras mudas
E há no que choro a voz calada
Da vida feita dos passos
Num caminho que não é o meu.

Ricardo Pinto Mesquita

domingo, 11 de janeiro de 2009

Do que fica

Podem não me ter ensinado a viver as palavras que sonhei poder dizer e entregar como parte da minha alma; podem não me ter dado dias serenos e uma felicidade contente os sonhos que fiz do tamanho do céu, para lá caber uma vida maior do que a nossa; podem não me ter dado caminhos seguros as noites onde te quis sempre encontrar para te dar a mão; podem não me ter deixado de doer as ausências a que nunca aprendi o nome; podem continuar a doer os rostos que gravei na pedra da minha saudade; podem nunca ter sido inteiros os dias depois de neles ter posto a medida combinada dos teus sonhos nos meus e não mais terem as noites o mesmo brilho, depois de ter sido meu um olhar na noite mais funda que é, às vezes, a da Vida. Podem não mais ter parado as lágrimas depois de ter prometido que ficariam todos os que acabaram partindo e não mais terem acabado as noites solitárias depois de terem ensinado ao meu coração o ritmo de algumas vozes. Podem não ter-se realizado metade dos meus sonhos por tê-los feito para um Mundo que não há; podem os dias ter ficado menos meus porque os sonhei com outras vidas na minha.
Mas foi mais vida e foi mais meu o que me aconteceu do que seria alguma vez viver apenas do que poderia ter sido mas que não seria meu. Como acaba sempre sendo de uma estrela o brilho apagado contra o bréu.

Nas ondas

Só as ondas do mar
Ouvem, na noite, meu lamento
Só a elas conto como é
Como é o sentimento
De ser mar e ter a água
Mas não mais haver céu
Lá no alto
E ser apenas a sombra
Tudo o que vejo e é meu.
Ricardo Pinto Mesquita

Do que foi

Foi dos meus olhos
A luz quieta do teu corpo
E a calma suave do teu respirar
Junto ao meu peito

Foi dos meus braços
O tremor inseguro do teu medo
E das minhas mãos
Foi todo o cansaço da vida que vestes

Foi enfim sereno meu sono
Por mais nada ter que sonhar
E nascer a cada dia com o Sol
A promessa cumprida que eras tu.
Ricardo Pinto Mesquita

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

No silêncio, as palavras

Gosto de igrejas vazias. Gosto de sentir que há espaço para mim e para aquilo que carrego debaixo do silêncio; gosto de sentir que não há ninguém a roubar-me o ar de que preciso e que me falta no peito, tantas vezes.
Tenho ido a umas igrejas, dessas escondidas da poeira do mundo e da sua voz, para ouvir o silêncio. Para ouvir as perguntas, para não ter nada com que as abafar e elas sairem assim - nítidas e pela minha voz.
Estive muitas vezes sentado num desses bancos, a desenrolar a alma e as suas curvas, sem ter de levantar muito a voz, sem ter de a ouvir sequer. Houve rostos que vi com a vida pendurada por um fio àquela nesga de esperança que era a paz emprestada por uns segundos.
Perguntava-me o que lhes iria debaixo da pele; o que seria isso da vida sair ao contrário mas continuar a ser vida.
Provavelmente não mais verei os rostos daquela gente que, fora do umbral daquelas portas, se perderá de mim, sem volta.
Fui lá para ouvir a profundidade das ausências, para ver até onde iria o avesso dos sonhos. Para ouvir o que calamos tantas vezes à superfície, por debaixo de uma vida que continua e que gostamos de acreditar que acompanhamos sempre. O Mundo não pára connosco. E o sentirmos que há nesse movimento incessante uma fibra e uma força que nos falta, faz-nos recolher a todos, sem excepção, ao silêncio que nos devolve como resposta um silêncio com a calma do peso que saiu. Um silêncio que tem como resposta um silêncio calmo como um abraço fechado, onde se choram lágrimas que são palavras feitas água.
Não fui para falar. Não fui para ouvir respostas. Fui para ouvir em mim o que sempre falou. E não tive medo de palavras que não queria ouvir, de esbarrar com a incompreensão.
Devolveram-me as paredes a calma e o silêncio, onde pude ouvir a memória do que já não tenho e, onde me pôde visitar assim banhada por uma luz tenra, a saudade infinita, que chegara. Não me senti sozinho naquele banco.
Levantei-me, olhei para trás, para aquele mesmo banco de igreja. Não sei quando voltarei. Sei apenas que ali ficou de mim o silêncio que não quebrei mas que ouviu dizer da minha boca em silêncio, o que o Mundo não pode ouvir sem palavras.
Havia saudade. E fiquei feliz - por ser a saudade a prova que dói do amor que ainda temos por alguém. Que dói o amor. Mas que, mesmo com dor, é amor. Como alguém que sai pela porta de uma igreja sem saber quando volta. Mas que voltando, tem um banco onde a luz nos recebe como os braços de alguém que nos ama.

Depois do sonho

Sonhei-te por cima dos dias
Imaginei-te em tudo e com tudo
Chamando-te apenas esperança
Enquanto não vinhas

Engoli o medo e as dúvidas
E ignorei as sombras da solidão
Em dias em que o vazio
Era tudo o que tinha na mão

Não te pedi que ficasses
Mas agora apenas pergunto
O que fica depois do sonho
O que fica depois de teres vindo
E mais nada haver que sonhar.


Ricardo Pinto Mesquita