Rewind

sábado, 17 de janeiro de 2009

Na cidade


Encontrou a cidade deserta e passeou o corpo assim sozinho pelas ruas de ninguém. Passeou no corpo daquela cidade tão sua e dobrou as esquinas, mais uma vez. Lembram-lhe as fachadas das casas e dos prédios enxovalhados isso que foi entregar a sua vida a alguém que também passou por ali.

Sabia-lhe a cidade à memória de um fogo que arde já sem queimar. À memória que resiste sem ódios, de repente, toda feita de uma saudade feliz. E embora soubesse ter já acreditado tanto e perdido quase tudo, de cada uma das vezes, nos braços daquelas ruas sabia também que elas lhe trariam, de novo, algo em que acreditar.

Era um amor sólido o deles. A cidade e o seu corpo a que ele se habituara eram a certeza de que algo não mudava. Que talvez conseguisse ele próprio ficar igual depois de olhar as mesmas grades de ferro e as portas entreabertas das esquinas e elas continuarem lá. Tinha esperança de se ter convertido ele também num caminho a que alguém soubesse sempre reconhecer o corpo e devotar-lhe o amor calmo de passos seguros e firmes.

Sabia que chegariam outros para palmilhar as ruas que foram suas. Sabia existirem outras vidas paralelas mas, a cada passada no escuro da noite, ele sabia que a cidade lhe dava os braços como a ninguém.

Por isso a procurava tanto. Nos momentos felizes para se exibir inteiro e sentir que tinha de onde vir e para onde ir - isso de outras vidas ligadas à sua e a dar-lhe a sensação de uma existência muito maior.

Nos momentos menos bons para encontrar o colo e o conforto mórbido de lhe terem ouvido as paredes, e ele a sabê-lo com uma certeza de pedra, todas e cada uma das promessas.

Ela tinha estado sempre lá. A dar a luz perfeita em que ele tinha descoberto na vida de outros motivos para ficar. Em que ele tinha descoberto na sua motivos para não deixar que não ficassem.

Aprendeu a confiar que ela lhe daria as esquinas para encontrar e descobriu que nelas também podia perder. E perdeu. Mas ele amou-a. Amou-a uns dias com um amor fácil e inteiro do corpo ser leve; noutros com essa ponta de ressentimento que só sente quem sempre ama, depois de perceber que é amor o que fica depois da digestão da perda. Ela ensinou-lhe a imaginar o amor sem procurar no escuro que não veio ainda o que amar. Ensinou-lhe o amor como uma porta entreaberta das suas que alguém decide espreitar. E ele percebeu que havia sempre medo.

Mas que, tal como com eles os dois, o amor é um longo caminho que começa em sítios pouco prováveis para acabar em lugares mais improváveis ainda. E que só ama verdadeiramente quem põe a mesma fé e devoção no amor, mesmo que ele o leve a sítios que nunca quis ou esperou. O Amor é uma abnegação da vontade.

Por isso ele a amava. Àquela cidade de temperamento marcado. Por ter sido nela e no seu corpo onde ele mora que amar fez sempre sentido. Um sentido que de sentido só tinha esse gigante silencioso nas veias a que chamamos esperança. E isso, como o nevoeiro que, de repente, caíra lembrava-lhe que quem ama volta sempre, de qualquer maneira. E isso era tudo o que ele precisava. E ela sabia-o, mais uma vez.

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