Rewind

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

às vezes, esqueces-me,

às vezes, sei que quase me esqueces.
 
o meu nome é comprido, não sei como fazes.
 
mas esqueces.
 
o amor pode ser um lugar desarrumado, sabes?
 
talvez te falte espaço nas gavetas, deve ser isso.
 
ou talvez o vento tenha varrido todas as vezes que te fiz sorrir, se acaso a janela junto à cama ficou aberta.
 
[fecha a janela, peço-te]
 
preciso que lavres os enganos todos do meu peito, que arranjes uns olhos que me adivinhem sempre dentro do escuro e não se percam nunca de mim.
 
lembra-te, se puderes, de como fazíamos tremer soalhos, de como havia facas e fogo dentro dos ossos das minhas pernas atando nas tuas um segredo qualquer.
 
deita fora a lembrança das feridas, apaga todos os pontos finais de cada um dos livros que tenhas e põe-te a inventar um poema onde eu possa entrar.
 
a porta pode ficar encostada,
 
vá lá, 
 
trago na pele a textura da espera - prometo deixar secar a tinta inteira dos teus desejos, juro deixar até que me insultes com esse ar de quem quer um beijo sem ter que pedir.
 
sabes, amor, não devias queimar o arquivo.
 
senta-te e põe-te a lembrar.
 
os meus olhos todos cheios de ti, poemas que rasgam as margens do papel e versos que se atrasam para que o fim se esqueça sempre de nós.
 
lembra-te de como as estradas desapareciam sempre. sim, quem ama não tem sentido de orientação e, talvez por isso, não saiba como partir.
 
sabes, escrevi-te tantas coisas que não disse e disse-te tantas outras coisas que não escrevi.
 
procura nas sombras, na pele húmida dos azulejos onde respirámos juntos tantas vezes, na segunda gaveta da secretária, talvez. procura nas flores tristes da varanda, debaixo da tua almofada onde talvez ainda reste de mim um cheiro doce.
 
talvez o teu coração ensaie uma tentativa de saudade e eu regresse.
 
às vezes, tentas esquecer-me.
 
o meu nome é comprido. não sei como fazes.
 
e os meus braços são ainda maiores, os meus olhos acham-te sempre tão linda e o único talento dos meus dedos é desenhar-te nas linhas do corpo todas as razões para que fiques.
 
mesmo assim, és teimosa.
 
lembra-te de como aprendi a dançar por ti - dançar é ir atrás de ti e do teu cheiro enquanto a música toca e eu não sei que raio de letra tem.
 
os teus lábios, esses é que cantam.
 
esquece-te de mim, se quiseres.
 
mas não esqueças o amor que te deixei por dar no fundo da cama.
 
está frio, agora.
 
e eu sei como gostas que te aqueça devagar. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

into my arms,

não sei se foi o nick cave ou se foram os teus lábios.
 
sei, às tantas, que a saudade começou a doer como se esperar fosse conjugar as feridas todas da tua ausência.
 
esqueci-me de fazer a barba, os lençóis trazem solidão que é uma viagem demasiado perigosa para se fazer de noite e deixei de ligar o rádio de manhã todos os dias.
 
não sei, malandra, se foi o nick cave ou se foi isto tudo que deixaste para trás - às vezes, gasto os olhos no tecto alto do quarto, ponho-me a ver fotografias do tempo em que julgámos ser novos para toda a vida e sorrio.
 
sinto falta de te esperar aí em baixo encostado ao teu prédio. a tua rua é bonita, já reparaste?
 
os meus olhos espiando as sombras da tua janela - que vestido trarias, que perfume, que truque novo com a língua me mostrarias hoje?
 
acho que as árvores da tua rua ainda crescem graças aos bocados de sonho que lhes deixei e ainda tenho aqui o estupor do guarda-chuva que me deste.
 
és tolinho, estiveste este tempo todo à chuva?
 
sabes, há aqui um lugar para o carro. mesmo aqui, em frente à porta.
 
podias aparecer. passei a acreditar que sempre recuperamos o que nos pertence.
 
e tu dizias
 
és meu 
 
[como o guarda-chuva]
 
não sei se há poemas que falem de amor e guarda-chuvas. e eu nem gosto da porrinha dos guarda-chuvas.
 
mas, sabes, gosto das tuas mãos, gosto mesmo de te ver no fundo do mesmo espelho que eu. nus os dois e embaciados todos do desejo um pelo outro.  
 
e gosto da tua voz rouca a estender um cobertor por cima dos meus ossos frios da chuva e da espera.
 
olha malandra que às vezes me apetece ligar-te e dizer-te
 
deixei aí dois casacos, algumas t-shirts e os boxers que me roubavas para a preguiça dos domingos sem horas. deixei aí os filmes que legendaste com os beijos que a minha boca te deu.
 
que idioma era aquele? que idioma falam duas línguas abraçadas no silêncio?
 
quando se ama, as memórias são as coisas que se vão deixando para se saber encontrar, de novo, o caminho.
 
és minha
 
hoje liguei, sem querer, o rádio de manhã.
 
And I believe in Love
And I know that you do too
And I believe in some kind of path
That we can walk down, me and you
So keep your candles burning
And make her journey bright and pure
That she will keep returning
Always and evermore

Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms
 
havemos, amor, de encontrar dentro das gavetas umas quantas razões que nos lembrem do que fomos.
 
vem. nem que seja por causa do desgraçado do guarda-chuva.
 
já sabes, espero por ti o tempo que for preciso.
 
 esperaste este tempo todo à chuva?
 
sim, amor, esperei.
 
e, afinal, talvez possa haver um poema sobre nós e um guarda-chuva.
 
e esse ser um poema de amor.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

na solidão do lume,

na solidão do lume eu disse-te,
 
quero-te
 
e a minha pele derramou na tua poemas inteiros com rimas que dançavam nas sombras.
 
sabes, amor, nos confins da tua boca há duas mãos que me querem como se soubessem de cor o enigma inteiro do que sou.
 
rio-me quando penso que os teus lábios dão uma história - costumo escrevê-la nos lençóis enquanto trinco nas madrugadas o luar que o estuário do teu ventre tem guardado.
 
a tua boca foi o princípio de tudo - nela pousei os olhos como se fossem dedos e quis entrar. sorriste-me quando te disse,
 
podia perder-me dentro desses olhos e não me importar nadinha com isso.
 
a tua boca foram uns braços estendidos, a garganta apertada com a vontade de te dar coisas de que não sabia o nome, o olhar a querer romper inteira a névoa de todas as esperas.
 
na solidão do lume eu disse-te,
 
mata-me
 
o amor é um cavalo que caminha também enquanto durmo - sempre acabo encontrando os bocados de vida que faltou roubar ao declive longo da doçura das tuas pernas e a geografia do sonho passa-me, por entre os dedos, a areia toda da nossa história.
 
que bom rever-te a ti e a todas aquelas pequenas coisas onde o amor já estava e a solidão começou a morrer aos poucos.
 
lembro-me que te dei a mão e a memória é uma varanda de onde nos vejo, agora, atravessar a rua outra vez. os dois agarrados com a pele a cheirar aos sonhos um do outro. os dois saciados de uma fome antiga de infinito e maresia.
 
vem
 
que em todos os momentos o presente entre no futuro dentro dos nossos corpos de mãos dadas.
 
[por dentro]
 
entro sempre na vida pela porta do teu corpo, amor.
 
na solidão de todos os lumes,
 
na espessura muda de todas as esperas,
 
na saliva de todas as palavras adiadas,
 
lembra-me

lembra-me como se a demora fosse somente o tempo de inventar outros beijos, como se a demora servisse apenas para chegarmos a um tempo que nos sirva.
 
na solidão do lume eu disse-te,
 
amo-te 
 
e só estou mesmo à espera do sonho mais bonito para fugir contigo

e não acordar nunca.
    
 
 
 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

fizemos amor sem um deus,

fizemos amor sem um deus.
 
lembras-te?
 
[uns instantes dentro dos teus olhos e fui eterno.]
 
e a eternidade foi passear contigo e provar-te na boca o sabor do gelado, levar dentro do bolso do casaco cada um dos teus dedos e o coração. a eternidade foi cada uma das horas todas que podia passar com a minha boca esquecida de falar no silêncio das tuas pernas e todas as coisas do mundo que aconteceram por baixo da janela do quarto que sempre nos esquecemos de fechar.
 
tenho a certeza que perdemos a ternura das crianças que vieram cansar o corpo e inventar sonhos nas tardes de domingo. e os velhos cansados com os jornais que disfarçam a solidão com a ilusão da vida dos outros.
 
fomos egoístas.
 
lembras-te?
 
começámos a esquecer deus quando descobrimos que o amor podia existir na combinação preguiçosa dos nossos pijamas, nas mantas onde aconchegámos tantas vezes o cansaço da espera, o pânico da demora e uma gripe mais teimosa que te deixava na cara restos da criança que foste um dia.
 
eu e os filmes - um, mais um, mais outros tantos e os bilhetes de cinema amontoados na mesa de cabeceira - "eram dois bilhetes, por favor."
 
e como, de repente, dizer esta frase era uma forma doce de vaidade. todo o amor é exibicionista, sabes? E andamos com ele cravado nos olhos, nas rugas mais fundas de um sorriso que, sem notarmos, repetimos sem parar. o amor embacia-nos os olhos quase como acontece aos vidros de um carro onde dois corpos se querem abraçar com mais pressa do que vida, com mais fome do que os instintos todos de mãos dadas.
 
fizemos amor sem um deus.
 
[Ele está no meio de nós
 
não, não podia.
 
o teu amor encheu-me a boca de uma ladaínha de luz e os milagres foram todas as vezes que a minha pele não se esqueceu e começou a acreditar.
 
o amor existia quase como um fio de esperança debaixo do nome de tudo, debaixo de todas as coisas, dos lados de todas as ruas como um cheiro quente que nos lembra que temos que voltar.
 
cegaste-me os olhos com todas as coisas que eram bocados de nós - aprendi contigo a ver com as mãos, a contemplar-te o arrepio da pele depois das fintas ao desejo que as minhas mãos inventavam sempre.
 
comecei a amar-te quando fiquei contigo como se estivesse sozinho - as tuas pernas encaixadas nas minhas eram um cobertor de doçura, a tua boca encostada ao meu pescoço uma forma de apagar dos pesadelos o vazio de todos os abismos.

e o teu medo do escuro passou a ser outro - a cama passou a ser uma estrada demasiado curta para o desejo, os nossos olhos abriam-se antes de ser dia e queríamos entrar pela janela do sono um do outro e ficar à espera de que todos os rumores fossem de alguém que nos chama.

fizemos sempre amor sem um deus.

nunca tivemos medo de acabar. e acabar deixou de ser morrer.

porque acabar foi sempre começar de novo.

de repente, as facas estavam rombas, havia um filme que ia estrear daí a dias e as tuas mãos eram a companhia ideal. amar-te era, nesses dias, sair de casa sem gostar pontinha de ti e chegar à porta de tua casa a pensar que se demorasses um pouco mais eu não aguentava.

e lá vinhas tu - as desculpas estavam dentro dos punhos cerrados nos bolsos do meu casaco comprido.

e tu sabias onde ir buscá-las. eras rápida e havia o cinema, o tal do filme que eu te tinha dito que era bom.

"eram dois bilhetes, por favor."
 
talvez o cinema nos tivesse ensinado que o escuro só é solidão se nós quisermos.
 
[e perdoo-te as tuas ofensas, assim como tu me tens perdoado quando te tenho ofendido.]

fizemos sempre amor sem um deus.

talvez porque o único milagre que vivemos tenha tido sempre o cheiro da nossa pele misturado com o luar, a saudade e o infinito todo que nos coube no sangue.

talvez deus não se importasse que o nosso amor acontecesse sem ele.

quando me deito contigo, sinto os cantos da alma cheios de palavras que não conheço.

encosta-te a mim e talvez tu as entendas.

talvez encontres no escuro um altar e te pareça que o meu coração feliz se pôs, de repente, a rezar.

domingo, 19 de outubro de 2014

às vezes,

às vezes, calo-me como se não soubesse falar.
 
os olhos viram-se para dentro e as portas estalam como se começasse uma espera.
 
trago caídas nos poros cada uma das pétalas dos teus beijos e os meus dedos são as rochas onde os teus desejos encalharam para ficar.
 
às vezes, esforço-me para te escrever com o corpo lembranças doces e felizes. encosto-me a beber na tua boca a sombra que nos descansa deste lume e, logo depois, retomo a escrita como se apenas pelos meus dedos se pudesse acalmar o motim de luz que trazes dentro.
 
lembra-te, se puderes, dos meus olhos enfiando-te no ventre cada uma estrelas que há no céu, lembra-te, se quiseres, que era Agosto e o céu trazia escritas coisas que quis deixar-te guardadas junto aos lábios.
 
às vezes, calo-me como se a espera me relembrasse sempre de ti a parte mais bonita - a maresia do teu corpo deitado sobre o meu, os lençóis queimados no chão como se as cordas do vento nos ateassem na pele desejos maiores e mais perfeitos.
 
calar-me é como aprender a chamar-te outra vez - aprender, de novo, como a tua pele gosta que lhe digam que já é dia, aprender a dar-te a mão enquanto a minha boca te empurra devagar sobre o abismo de um beijo. às vezes, passo a língua no sonho derretido do passado e decido ficar.
 
calar-me é poder andar acordado dentro de um sonho - os teus braços como heras trepando-me as pernas, a tua boca como uma falésia que morde o mar, o provoca e o conquista.
 
às vezes, lembro-me das nossas conversas escondidos da vergonha debaixo dos lençóis e sorrio.  
 
talvez o silêncio seja uma árvore cheia de promessas que quero colher dentro das tuas mãos.
 
talvez o silêncio seja o Outono de onde caem as folhas mais bonitas do que fomos.
 
talvez seja mesmo isto, meu amor.
 
o silêncio sempre a varanda de onde te vejo chegar.
 
sobe, fica comigo.
 
[que esta sempre foi a forma mais sincera que encontrei de te dizer o nome].


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

no teu corpo ouve-se a chuva,

no teu corpo ouve-se a chuva.
 
e os meus olhos são uma vidraça a estalar, os meus ossos são madeira que geme quando tu me trepas como se tivesses, de súbito, que colher uma promessa maior do que a vida.
 
no teu corpo ouve-se a chuva.
 
e há, do lado de dentro da tua pele, o crepitar de encontros velhos, músicas espantando sombras, janelas esquecidas viradas para o longe e um cheiro húmido de nudez doce.

espreito-te com a língua como se o amor fosse uma arte de cegos - os dedos como gumes que rasgam o vento que trazes no ventre, as pernas empurrando-nos aos dois para um abismo todo de luz e de infinito.

no teu corpo ouve-se a chuva.

e os telhados desabam pesados de sonho - o céu oscila e as bátegas do teu peito arrastam uma maré de punhais que me desfaz, que me divide como se multiplicasse o espantoso acaso do nosso encontro.

e a chuva cai - na minha boca, na praça acesa do meu peito que tu invades como uma maré que levasse o mar ao cimento frio de cada um dos meus desertos.

depois da chuva, os dias acordam grávidos dessa luz leve que antecede todas as promessas - todos trazemos lágrimas que não podemos chorar sozinhos, todos desejamos acordar, um dia, acompanhados dentro de nós mesmos, quase como se a chave do que somos andasse perdida no bolso de alguém que, sem sabermos, nos espera.

[e por quem esperamos]

no teu corpo ouve-se a chuva.

e eu penduro-me no parapeito dos teus silêncios a inventar que eles dizem o meu nome, fico a contar as gotas que faltam para dizeres

anda cá,

toda a minha roupa desatada por dentro

[os teus dedos já cá estavam]

no teu corpo ouve-se a chuva que abriu a clareira dos meus braços, que foi o muro onde te pendurei o vestido e tive pressa, a chuva que foi a cortina em que todos os beijos foram deliciosos naufrágios.

no teu corpo ouve-se a chuva, meu amor.

e eu conto cada uma das gotas que demoram até dizeres

fica

as gotas que faltam para que o vidro se parta e frio entre devagar

os teus braços, subitamente, agasalhados comigo.   

tu e eu e um inverno que não devia acabar nunca.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

era bom que ficasses,

ia só dizer-te que era bom que ficasses.
 
as ruas estão calmas, o sol desenha-te nas costas promessas que podiam ser as minhas e a tua mala está desfeita toda nas gavetas do teu lado.
 
ia dizer-te que os teus vestidos quase recusaram as mãos que os fizeram inúteis. os meus dedos eram tesouras e havia vontade de te dizer o nome no escuro.
 
ia dizer-te que havia restos acesos da minha pele nos bolsos das tuas calças - quase um bilhete que dizia "eu volto, não vás embora."
 
ia dizer-te que os discos estão preguiçosos - trazem um vício de esperar por ti, de repetir para dentro da barriga quente das noites sem horas, os pedaços de sonho de que precisas.
 
ia dizer-te que sinto falta das tuas pernas todas escritas de arrepios e de ter na boca o sabor da luz molhada do teu desejo.
 
ia dizer-te que os teus livros trazem no pó das lombadas frias cada uma das horas da espera - diz que vens, que ao menos vens a tempo de devolver à paisagem uma razão para existir mesmo debaixo da nossa janela.
 
ia dizer-te que há fotografias nossas que trazem escritas datas de dias por vir - estás linda com esse sorriso a dizer que os meus braços te servem e eu pareço tolinho como se arremessasse contra o mundo todo a cal pura desse encontro.
 
ia dizer-te que os meus versos farejam o teu rasto - andam soltos e trazem fome e são um vento repetindo uma canção por entre as rochas.
 
ia dizer-te que o papel em branco escolhe somente palavras que te chamem: água porque o mar ainda se lembra dos teus olhos, silêncio como se em tudo se recusasse o adeus e outono para que o chão se cubra de folhas que escondam a distância.
 
ia dizer-te que vou fazer-te a cama por entre as linhas de toda a prosa que escreva - hei de inventar advérbios que pareçam verbos e verbos que pareçam nomes - tudo para acabar, por acaso, na esquina que o teu nome faz no meu.
 
ia dizer-te que ficou muito de mim no que de teu ainda existe nesta casa.
 
ia dizer-te mas talvez já não ouças.
 
era mesmo bom que ficasses.
 
só porque ainda há gavetas e estas ficam mesmo do meu lado.

domingo, 12 de outubro de 2014

a mão que te estendo,

ainda os teus dedos do lado de dentro de todas as portas. como se esperasses.
 
os meus olhos guiando o incêndio do fim do dia para dentro da tua pele, onde os meus dedos desenham pedaços de verdade por existir.
 
ainda me parece que a tua boca passeia o meu nome quase como se todos os voos cumpridos fossem um regresso, quase como se em todos os enganos se abrisse a clareira de um encontro.
 
sabes, a mão que te estendo ainda traz o vício do contorno dos teus lábios, ela ainda sabe dançar a escuridão arrepiada do lado de dentro dos teus sonhos como se a tua ausência fosse uma estrada demasiado longa para percorrer.
 
as mãos chegam sempre primeiro que as palavras - todos os poemas são feitos dos milagres que apenas o silêncio guarda, todas as rimas são vidros que embaciam o mundo para esconder que as horas acabam e vamos ter de ir.
 
as mãos chegam sempre primeiro que as palavras - entre ti e elas há um diálogo antigo em que tu lhes ensinas como negociar a vertigem de todas as ofertas, em que tu lhes ensinas a gramática inventada em que os verbos se conjugam do avesso como janelas que se abrem apesar do frio.
 
as mãos têm sempre pressa, meu amor. antes que a boca lamba as feridas, é delas a insistência, é delas a paisagem infinita do teu corpo, são elas o último autocarro onde é possível chegar ao fundo dos teus olhos e ficar.
 
as mãos dentro do teu vestido, as mãos cravadas inteiras num esquisso inacabado de eternidade, as mãos entrando devagar na luz que se solta dos teus braços como um beijo.
 
as mãos antes das palavras - a maré a subir antes do dia, a praia afogada toda e dentro de ti um naufrágio todo de luar e de saudade.
 
não sei, amor, porque hão de chegar sempre primeiro as mãos. talvez elas venham quebrar nas ondas a altivez do orgulho, talvez sejam elas quem rompe no labirinto da memória, o nome que as coisas tinham no princípio.
 
não sei, amor. talvez as palavras não guardem tanto do cheiro das pétalas do teu nome como as mãos que o morderam e se abraçaram a ele tantas vezes. talvez seja isso, mas não sei.
 
as mãos vão buscar o mar a que habituaste a janela dos meus olhos e o superlativo de tudo que a voz nunca soube aprender.
 
as mãos vão buscar-te a ti, meu amor. 
 
e o poema somos nós e o silêncio do mundo por cima de tudo.

domingo, 5 de outubro de 2014

faltou dizer-te,

faltou dizer-te que o Verão veio depois.
 
e, no terraço, as horas se atrasaram todas esquecidas de morrer.
 
faltou dizer-te que os canteiros se abriram todos como uma carta perdida há muito no correio e que ainda havia um perfume de pele viva dentro deles.
 
faltou dizer-te que o mar se lembrou de ti e nos braços quentes da água quis dançar-te ao luar por entre as rochas.
 
faltou dizer-te que as páginas do teu livro continuam marcadas na fenda da ausência dos teus dedos.
 
faltou dizer-te que tinha já escolhido a música, posto a mesa e começado a esperar por ti há muito tempo.
 
faltou dizer-te que o ar quente se arrasta nos muros e agita os arames da roupa ao teu encontro.
 
faltou dizer-te que as bicicletas se perderam e não sabem mais o caminho de volta a casa.
 
faltou dizer-te que ainda te chamo para dentro das divisões da casa com a repetição de um búzio que não esquece o mar.
 
faltou dizer-te que o poema escrito na parede branca das tuas coxas continua incompleto.
 
faltou dizer-te que todos os espelhos são agora grandes demais. tu já não vens compor-me as camisas e eu não tenho mais pretextos para te roubar um abraço antes de ir.
 
faltou dizer-te que ainda não tínhamos visto os filmes todos. sinto falta de pressentir o avanço das tuas mãos nas minhas pernas pelo lume que se acendia nos teus olhos.
 
faltou dizer-te desculpa mas o amor dói. faltou dizer-te que ainda ando a aprender a escrever o nome certo das coisas por cima dos riscos das tentativas que falharam.
 
faltou melhorar a caligrafia, eu sei.
 
faltou dizer-te está tudo bem.
 
faltou dizer-te vai ficar tudo bem.
 
faltou dizer-te que não sei dizer mas que te amo.
 
[o amor é, tantas vezes, eu e tu a dizermos a mesma palavra em línguas distintas.]
 
faltou dizer-te tanta coisa.
 
mas o Verão veio. por isso, volta.
 
uma praia inteira de saudade só pode querer dizer que te amo.     

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

fala-me de amor,

fala-me de amor como me falas de outras coisas.
 
e, sobretudo, sorri-me para dentro dos olhos como se fosses ficar para sempre comigo debaixo deste céu que é a caixa de todos os meus versos.
 
fala-me de amor como se pudesses deixar os lençóis embrulhados na memória feliz de cada uma das noites em que dia se levantou antes de nós.
 
fala-me de amor como se fosses dobrar todas as esperas nos braços vazios das camisas que guardam o meu cheiro.
 
fala-me de amor como se te esquecesses do casaco e eu pudesse pousar-te os braços devagar e fazer deles a metáfora ansiosa do desejo.
 
fala-me de amor como se fosses dançar-me dentro dos braços o vício de repetires o meu nome como se me chamasses, como se quisesses enterrar-me na carne húmida da língua que me espera.
 
fala-me de amor como se me ensinasses a procurar-te sempre nas veias do pescoço e me mostrasses nelas o caminho para casa, por entre os ossos.
 
fala-me de amor como se o teu cabelo tivesse ainda presos restos da fome que os meus dedos traziam por matar.  
 
fala-me de amor como se corresses nua pela casa e te esquecesses da tua sombra adormecida na varanda anoitecida dos meus braços.
 
fala-me de amor como se me desatasses dentro do peito os nós todos da espera que foi para te encontrar.
 
fala-me de amor como se não pudessem desbotar nunca as imagens que a tua boca engoliu na travessia da minha pele.
 
fala-me de amor como se fosses comigo atirar ao rio todas as pedras da distância e, depois de cansados, ainda pudéssemos dar um ao outro os sonhos que nos emprestou a madrugada.
 
fala-me de amor como se o meu corpo fosse a vírgula que te agarra antes que te percas sozinha num deserto.
 
fala-me de amor como se me falasses de outras coisas.
 
o amor é a tua voz.
 
o amor é cada uma das coisas de que falas

e o longe onde nunca deixo de te ouvir.