hoje vou esperar por ti, dizia o teu bilhete.
encontrei-o, por acaso, já sentado no comboio.
chovia muito, o dia ia triste e eu lembro-me de ter pensado como no amor sempre me despedi com a esperança de um regresso.
o papel trazia o perfume das tuas mãos, trazia também o teu sorriso e trazia, sobretudo, um abraço inesperado para o caminho.
vi-te dormir ainda durante um bocado antes de sair - tive vontade de respirar a tua pele só mais uma vez, de te deixar no corpo uma promessa em suspenso como os restos da noite nos lençóis vincados.
sorri sozinho no escuro várias vezes - como se me contassem um segredo demasiado grande para me caber no peito.
às vezes, acho mesmo que a saudade é um vício do coração - uma espécie de ritual em que, mais do que a nós, nos sentimos sempre a cumprir o outro, a repetir o outro, a gastar o outro como se com a memória se pudesse roer a distância e a ausência.
fazes-me falta.
quase senti que chegaste só para deixares os teus dedos pousados nos meus dentro do bolso das calças. quase senti que os teus dedos me pediam uma resposta,
não te preocupes amor, eu volto.
prometo.
na saudade todas as distâncias são como um vidro embaciado - por amor, deixamos de conseguir ver o quão longe estamos a ficar de onde nunca quisemos partir.
o pica apareceu cansado, o sono a amolecer-lhe a voz,
o bilhete, por favor, o bilhete.
lembro-me de que cheguei já muito tarde - tu dormias de novo.
a lareira estava acesa, o teu livro no chão e a mesa que ficou posta para dois.
lembro-me de me despir devagar e imaginar que também esse teu sonho, como um abraço, tinha que ser como a mesa - sempre posto para dois.
antes de adormecer, deixei-te este poema no espelho do quarto.
e quando formos todos feitos da noite
talvez possas lembrar-te, se tentares
como na escuridão as roupas nos caíram
e, se acaso, o teu sonho durar mais um pouco, amor
e tu não tiveres pressa de acordar
espera por mim, espera pelos meus lábios
espera, não fujas, por favor
faltou somente dizer-te isto, amor
sabes, há poemas feitos de silêncio
há poemas em que apenas a língua se cala
e a saliva e o sonho falam mais alto
lembras-te?
se acordasses primeiro, ias encontrar os meus dedos pousados no teu nome como sempre.
antes de adormecer, lembrei-me do pica,
o bilhete, por favor, o bilhete.
imaginei, por engano, que lhe dava o teu.
hoje vou esperar por ti, dizia.
pensei que o pica se riria muito, a voz, de repente, mais alegre a dizer
este é um bilhete de ida e volta, senhor.
pois é, amigo, pois é - sabe, quando se ama e se parte, há sempre a esperança de um regresso.