chegaste mais tarde, vieste atrasada.
trazias um daqueles vestidos que te põem o corpo a dançar no fundo dos meus olhos.
lembro-me de te ter fixado as mãos - compridas, doces, quase tão grandes como a vontade que tive de chegar perto de ti - como se a espera, de repente, me cortasse na garganta a urgência de um encontro.
e para ti, admito, quis logo uns braços que te rasgassem a pele, imaginei que a minha boca se demorava a cobrir de arrepios o silêncio do teu corpo e sorri ao ver-te sonhar junto à janela.
todos os amores são como uma vertigem - a única coisa sem uma causa e a mais bela de todas só por causa disso.
ama-se somente porque o outro nos arranha a solidão, apenas porque nos inclinamos todos em direcção ao futuro, julgando que nos chamam.
e não sei, até hoje, se a tua boca me chamou.
mas fui.
a minha voz quis desfazer-se toda em beijos, os meus dedos eram cordas que tremiam ao toque do teu riso e havia entre nós um silêncio a sibilar.
fui trocando de cadeira sem tu veres - o incerto é o princípio de quase toda a verdade e eu quis chegar perto e arrastar o corpo todo para dentro da luz desse galope.
foram os teus olhos os primeiros a dançar comigo naquela noite, dizias tu, rindo.
sabes, houve logo algo de incumprido nesse cruzamento de olhares, dizia-te eu.
e, sim, foi exactamente isso.
o amor nasce justamente da promessa que queremos cumprir sem que, alguma vez, tenhamos prometido coisa alguma.
acho que em todas as palavras te despi - havia pressa em saber o desenho exacto do teu corpo e eu queria dançar contigo, nus os dois, todos dentro dessa cegueira enorme que era luz.
coitados dos vizinhos, pensei eu.
a pressa de quem ama vem sempre da sensação de que, aos verdadeiros amores, sempre se chega com algum atraso.
talvez por isso tivesses que vir tarde. talvez por isso tivesses que chegar atrasada.
e talvez por isso, naquele dia, os teus dedos tenham convencido o fundo dos meus olhos.
e eles tenham dançado de mãos dadas toda a noite.
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