O céu era de novo o de Agosto - o sol ia alto como os desejos quando os corpos aprendem essa liberdade súbita do familiar e do reconhecido. E tudo retomava o seu lugar como se a vida nunca pudesse deixar de se demorar nas horas maiores desses dias das nossas vidas.
A casa era um ventre repleto de sombras frescas, com as árvores como andores em flor correndo para a luz. Tudo muito quieto, excepto o ar que trazia um leve rumor de vida que se apressa, o passo mais agitado que antecede todas as coisas que ficam.
E voltamos ao princípio - viver o absoluto da vida é para os bons contadores de histórias porque apenas esses sabem regressar do escuro da vida. Volto contigo, Avó, às janelas das vossas casas, às pedras das vossas ruas, ao verde do vosso horizonte. Volto ao cemitério imerso no silêncio, ainda dormindo no lençol fresco da manhã. E falo-te do meu Avô que ficou ali para ver o verde dos nossos campos que eram a sua forma mais funda de fé.
Ouço-te falar da tua Avó, dos teus Pais, dos teus Irmãos e Primos e vejo nos teus olhos que estar ali é continuar a esperar por eles, é não saber morar noutro lugar que não aquele em que alguma vez se foi feliz.
E contigo volto à missa - uma missa campal com um corpo de gente espalhado na enorme escadaria sobre o vale. Volto à fé de criança que via na luz das palavras um conforto maior do coração. E lembro a Gó que em todas as missas comigo e com o A. sofria com as nossas investidas malandras para a fazer rir. O riso das pessoas verdadeiramente boas como ela é como um traço fino na pele que nos marca para sempre.
Lembro-me de ir buscar ovos na bicicleta para o almoço, lembro-me dos cavalos soltos e preguiçosos na erva verde, lembro-me de passear com o Avô por entre o palco do vosso tempo. A romaria para mim é a possibilidade da vida ficar sempre assim; da vida ser sempre esta vida porque não quero outra para viver.
Vou à missa para agradecer mais um ano em que nos deixam juntos no caminho; para chamar ainda e sempre pelos meus sem que o barulho do mundo os tente apagar.
Sinto que vos cumpro nestes rituais - é bom voltar à pele do neto sem medo de vos perder, é bom fazer do aconchego da intimidade o pilar da vida.
Passeio sozinho por entre as árvores, visito o beiral e demoro os olhos no fundo do vale sereno. Ouço-te chamar o meu nome lá de dentro. E fico contente por sermos tão íntimos, por esta família me ter ensinado que amar é gostar tanto de alguém que não se pode querer que o outro seja perfeito. Ama-se somente quem faz do amor por nós, a razão da redenção, do perdão, da atenção extrema, do ver o que é invisível aos olhos.
Amar é inventar sempre mais uma possibilidade para o que não se quer perder. E é por vocês que volto ali - para sentir na repetição do chão e do céu que o tempo quase pode ser o mesmo, se nos nossos olhos continuar a morar essa entrega absoluta.
No céu escuro da noite, o fogo de artifício ilumina as casas com um abraço longo e terno. E neste ritual que se cumpre na noite que acaba, fica a certeza de que o amor que nos temos é sempre a vontade de mais um abraço que não podemos deixar de entregar.