Rewind

domingo, 20 de dezembro de 2015

postal,

lê-me em postais antigos, se puderes,

e recorda

não sei o que tinham as janelas a ver com as saudades

ou uma esquina, uma montra e as horas do fim da tarde

a ver contigo, connosco, mas o postal era para ti,

amor.


escrevi-te sempre como se apanhasse do chão bocados de ti

como se fosses sempre tu quem eu ia esperar em todos os bancos de jardim

para te sublinhar sempre nas páginas de cada um dos livros que levava,

amor.


lê-me em postais antigos, se puderes,

e recorda

pensa nas minhas palavras como em passos para casa

e espera-me do teu lado da cama

não mudes, por favor, o lugar onde fica a chave da porta,

amor

e espera.


lê-me em postais antigos, se puderes,

e recorda

passa pela minha pele como quem passa por uma esquina, uma montra

ao fim da tarde

e espera,

amor.


lê-me em postais antigos, se puderes,

passa pelo teu coração o meu sangue, uma vez mais,

amor

e abre todas as gavetas que encheste de mim


antes de deitares tudo fora repara,

- vou ficar contigo, dizia-te

e dava-te o futuro que ainda não tinha

- porque era teu.


lê-me em postais antigos, se puderes,

e espera-me do teu lado da cama,

amor

(desculpa)

vou encontrar a chave de casa

e ficar.


amanhã o carteiro não passa.

RM| XX-XII-MMXV

domingo, 22 de novembro de 2015

Avós,

Vim, Avós, mostrar-vos um poema.

Há uma estrofe em que quase não digo nada
-  as gargalhadas felizes que vocês me deram dão versos lindos
e o jardim florido traz nas pétalas a rima fácil do sol.

Vim, Avós, mostrar-vos um poema.

Há mais uma estrofe em que vamos no carro a caminho da Aparecida
- a Avó o co-piloto mais piloto do mundo
e a tua ternura, Avô, como se fosses sempre mostrar-me o caminho de casa.

Vim, Avós, mostrar-vos um poema.

Há uma estrofe cheia do açúcar dos doces da Gó
- no amor é sempre tempo de colheita
 e há sempre alguém que me chama "menino," outra vez.

Vim, Avós, mostrar-vos um poema.

Há mais uma estrofe com o retrato dos Pais
- aprendi a desenhar o amor com as palavras
já que o infinito da matemática não me serve de medida.

Vim, Avós, mostrar-vos um poema.
- no banco do jardim, a Avó abraça-me com força
e a estrofe acende-se mais quando lhe digo,

Amo-te muito, Milinha,

Cá dentro, os dois, sabemos que nos ouves, Avô,

e isso chega.

RM| XXII-XI-MMXV

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Mãe,

Esperaste-me, Mãe. 

no princípio, deste-me o nome e acendeste o escuro. 

Esperaste-me, Mãe. 

os bolsos tão cheios de sonhos, a porta de casa que nunca mais deixaste trancada. 

Esperaste-me, Mãe. 

e dançaste-me na barriga ao som dos vinis que ouvias à noite. 

Esperaste-me, Mãe. 

e foi a tua mão que me lavou da pele o medo, a saudade, a tristeza. 

Esperaste-me, Mãe. 

e escreveste-me os postais mais bonitos que já recebi. 

Esperaste-me, Mãe. 

e ensinaste-me a fé das palavras e a escrever como quem chama.

Esperaste-me, Mãe. 

e fumaste comigo todos os fins de tarde de Verão perto do mar.

Esperaste-me, Mãe. 

e viste beijos nas falhas e abraços nas ausências.

(desculpa)

Esperaste-me, Mãe. 

e percebi contigo que as Mães deixam com os filhos uma espécie de pergunta no mundo. 

Esperaste-me, Mãe. 

toda a vida, toda a noite, sempre no lugar onde começava o regresso. 

Esperaste-me, Mãe. 

a porta sempre aberta, 

a roupa, às vezes, suja dos enganos do mundo. 

e tu, sempre. sempre tu e os cigarros como se o mar estivesse por perto e houvesse luz. 

Esperaste-me, Mãe. 

e eu trouxe de ti a tal pergunta cravada no leito dos olhos. 

Esperaste-me, Mãe. 

(Obrigado.)

eu volto sempre a tempo de um cigarro e um beijo 

que é como quem diz, minha Mãe, que és tu a resposta que vim ao Mundo para aprender. 


RM | X.XI.MMXV. 

 


sábado, 10 de outubro de 2015

fuso horário,

quando penso em ti, Avô, não me servem os relógios.
 
fico deitado todo na poltrona enorme da memória e todas as portas sentem a minha espera.
 
quando penso em ti, nenhum pretérito é perfeito - que porra de língua esta que resolve chamar perfeito ao tempo em que a saudade se conjuga.
 
mas eu falo de ti muitas vezes no presente - as pessoas que me ouvem, pensam que estás vivo, que ainda ontem falámos até às quinhentas e que é por isso que eu sorrio tanto.
 
às vezes, apetece-me mesmo enganá-las, sabes?
 
só por uma vez que seja, dizer outra vez,
 
vou jantar aos meus avós.
 
e ser verdade que estás na cabeça da mesa, que obrigas a Vovó a comer mais,
 
Milinha, anda lá, come mais um bocadinho.
 
Sabem, A. e R., fui eu que ensinei a vossa Avó a comer!
 
e a Vovó poder protestar só porque pode, só porque quer, só porque sim.
 
parou-me o coração, nessa como em tantas outras horas - às vezes, penso que a tua morte aconteceu num outro fuso horário - como em todas as perdas, cá dentro, ainda falta tempo para acabar, ainda há tempo antes de começar a véspera do fim.
 
Cá dentro, o tempo é outro - em poucos anos, vivi contigo uma vida inteira.
 
(que não chega.)
 
Sabes, Avô, hoje é sexta e pousei o relógio.
 
era bom escapar-me para jantar convosco, não achas?
 
e no terraço, a aproveitar o bom tempo, antes que passe.
 
A Mãe sorri quando lhe digo estas coisas - ela sabe, porque me ensinou, este amor sem jet-lag, este amor em que os ponteiros são inúteis e ridículos.
 
Sabes, Avô, tenho saudades desse tempo sem gramática - o amor das crianças conjuga-se sem verbos; conjuga-se com gargalhadas, com aprender a chamar casa aos braços de alguém.
 
Hoje, mais do que tudo, queria ter ido para casa - os meus Pais, vocês, a Gó, o A.- e podermos, os dois, tu e eu, pousar os relógios.
 
(e ser dentro de nós, a mesma hora).  
 
Hoje, a saudade veio no sangue, acho eu.
 
Fui levar o lixo ao fim da tarde e vi algumas sombras no passeio.
 
e se uma delas pudesse ser a tua, só hoje?
 
Sabes, Avô, todos os dias digo à Avó que não tenha pressa.
 
E digo-lhe, a rir, que sem o meu chão, a vida será um deserto.
 
A minha família - nós, os que nos escolhemos uns aos outros, os que nos quisemos, nisso de nos vermos todos os dias, de estarmos perto, de não poder haver nenhum nome depois de nós - foi o meu milagre.
 
Por isso, Avô, lembra a estes sacaninhas que não tenham pressa.
 
Diz,
 
Milinha, não tenhas pressa, que os rapazes precisam de ti.
 
E aos meus Pais e ao A. também.
 
Quanto a ti, havemos de nos encontrar.
 
Digo à Avó,
 
Só me importa a vida aqui.
 
E, depois, para onde achas que vais?
 
Avó, que é que achas, malandra?

Hei de ir sempre para onde vocês estiverem.
 

domingo, 13 de setembro de 2015

da janela do meu quarto,

I.

da janela do meu quarto,

uma, duas ruas

e o coração sempre cheio de atalhos para chegar a casa


da janela do meu quarto,

o meu Avô ainda no meio do jardim

e a saudade assombrando o parapeito dos meus olhos


da janela do meu quarto,

uma, duas ruas

e sempre as mesmas palavras em lábios novos


da janela do meu quarto,

a minha Avó sempre à minha espera

e nós a guardarmos um do outro o milagre do nosso encontro


da janela do meu quarto,

uma, duas ruas

e a minha infância diabética de amor



da janela do meu quarto,

eu a dizer: "Vovó não morras, tá bem?"

e M. a dizer: "Sabes, pequeno, é por ti e pelo A. que estou viva."


da janela do meu quarto,

uma, duas ruas

e a promessa que fiz de que os sonhos teriam sempre este chão


da janela do meu quarto,

o medo de que o regresso não possa ser ao mesmo lugar

e o A. a dizer-me: Está tudo bem, R., está tudo bem."


II.


da janela do meu quarto,

a recém-felicidade sempre

e, no silêncio do meu sangue, a mímica dos vossos nomes



da janela do meu quarto,

o vestir-me de propósito para vos ir dizer: "amo-vos"

e nunca poder haver pretérito nos verbos com que vos chamo


da janela do meu quarto, no vidro embaciado,

uma criança escreve com os olhos,

Que fazes aí, R?

Agradeço, agradeço.

RM 

domingo, 16 de agosto de 2015

o vento sem mapa|

também o vento vem sem mapa, amor

e repete nos poros do caminho o teu nome

uma, duas, muitas, todas as vezes


olha o vento a fingir que é verão

se calhar, podíamos retomar o poema

que dizes,

de enfeitares, de novo, o cabelo

com a madrugada inteira do meu desejo


sabes, amor, a saudade é a espera entre sonhos

podias voltar a tempo de me leres baixinho -

é outra vez verão nessa página

desarrumemos a distância como as gavetas onde deixamos a roupa


amor, faz como o vento e passa por aqui outra vez

veste a minha camisa outra vez

e lê-me baixinho

pega num cigarro, se quiseres

eu deixo.


lê-me como se me esperasses

veste, se puderes, a camisa azul

e vê que o bolso traz o teu nome escrito


foi a saudade que o bordou

[do lado de dentro.]


RM

sábado, 1 de agosto de 2015

Avó,

como se passar pelos teus olhos fosse sempre como entrar em casa
as pernas tão habituadas aos degraus que demoram o nosso abraço
(mas ansiosas)
como se passar pelos teus olhos fosse sempre abrir a janela da infância e poder vir gritar ao terraço,

Vovó!

só para saber que estás aí e vieste deixar-me flores frescas junto ao peito.


como se passar pelos teus olhos fosse sempre não ter que mudar de roupa
a pele habituada ao conforto destas palavras amenas e amplas como uma brisa de verão
em que escolho agasalhar a nudez brincalhona da nossa intimidade.

como se passar pelos teus olhos fosse chumbar sempre a matemática
as pernas tão habituadas a aldrabar a espera do nosso encontro
e subir os degraus dois a dois fosse amar-te mais e com mais força.

porque passar pelos teus olhos foi sempre não precisar da chave da porta
as mãos habituadas a este amor-de-porta-no-trinco
o coração habituado a ter na tua voz o melhor miradouro de mim mesmo.

sabes, Avó, amo-te e passei para te dizer isso mesmo.

não bati a porta.

[volto logo para te ouvir a resposta e fazer batota ao subir os degraus]

RM

sábado, 18 de julho de 2015

Avô,

se pudesses, Avô, descer a escada do tempo

e encontrar-me cá em baixo no princípio

íamos os dois a tempo de um cigarro no jardim

íamos os dois a tempo de dizer um ao outro das saudades

que nos ficaram como frutos suspensos no lado de dentro dos braços


se pudesses, Avô, levar.me, de novo, no carro para a Aparecida

eu a ter que me sentar no banco de trás por ser pequeno

e tu a tempo de dizer,

Já não falta muito! E depois vens comigo aqui ao lado!

íamos os dois a tempo de regressar ao teu passado

e de ficar sentados na soleira da porta esquecidos de partir


se pudesses, Avô, ver como o A. se parece contigo

e como eu penso que nasceste nele de novo só para eu não ter que andar sozinho

íamos os dois a tempo de lhe dizer,

Gostamos muito de ti

e de ficar felizes por as palavras se poderem levar nos bolsos para toda a vida


se pudesses, Avô, ver como a Avó foi a escolha certa

e como continua mais bonita por causa do que lhe deixaste agarrado à pele

íamos os dois a tempo de lhe dizer,

Obrigado

e de ver a maré cheia dos olhos de quem se sabe amado para sempre


se puderes, Avô, ver como tudo ainda te espera

pede para voltares nem que seja para um cigarro no jardim

só para eu ir a tempo de te dizer,

Quando for grande quero ser como tu

(mais uma vez)

e, mesmo não fumando,

fumar contigo no jardim da nossa casa

as saudades que me ardem no silêncio que ficou.

RM

sábado, 4 de julho de 2015

Avó,

o rapaz aprendera a ver o céu nos olhos de M.

M. tinha o hábito de lhe sorrir como uma janela aberta num dia de sol

e o rapaz gostava disso.

disseram-lhe na escola,

o céu é azul, R.

e para sempre o céu havia de estar nos olhos de M.

porque aquele fora o azul mais bonito que ele vira.

porque esse era o lugar onde repousavam todos os que M. nunca deixou morrer.

porque esse era o caminho mais curto para casa.

(sempre.)

e o rapaz tinha tanta pressa de chegar a casa.

M. sorria-lhe todas as vezes como se a espera, finalmente, não fosse doer mais,

R, meu amor, como foi a escolinha?

R., antes das palavras, quis dizer com um abraço que confirmara que o céu sempre era azul.

azul-só-meu,

as crianças inventam sempre amores egoístas como se fossem levar no bolso dos calções curtos um segredo que o mundo guardou só para elas.

azul-para-sempre,

que o céu é o lugar das coisas que não morrem.

e R. quis passar todos os dias da vida dele com os olhos postos no céu

raio do garoto!

R. aprendera na escola o que o seu coração descobrira, muito antes, escrito no lado de dentro da pele

nos olhos de M. ficavam todas as coisas sem nome.

subir vinte escadas sem nunca se cansar só para dizer

Vovó!

descer vinte escadas sem nunca deixar de ter medo e olhar sempre para trás

só para dizer

Milinha gosto muito de ti, malandra!

Ouviste?

M. ouve no escuro, M. sabe que R. há de ser sempre o rapaz que descobriu o céu que havia nos olhos dela.

ao rapaz disseram na escola,

o céu é azul, R.

R. sorriu, feliz

e disse como se visse, mais uma vez, os olhos de M., sua Avó,

pois é, e o azul é a cor da esperança.

(Obrigado, Vovó.)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

para o né|

I.VI.MMXV
 
cada vez que faço anos, agradeço aos meus pais pelo meu irmão.
 
é verdade.
 
não sei como se diz obrigado vinte e tal anos de forma diferente, mas eu insisto.
 
dizem-nos que nascemos com cinco minutos de diferença.
 
e foi isto - desde o início, o Né esperou por mim.
 
e ter quem nos espere é do caraças - é ter um princípio de casa no arrepio de cada dúvida, é ter um miradouro de calma e riso sobre as desgracinhas que, de repente, quando alguém nos diz
 
está tudo bem
 
já não são nada, nunca foram nada - afinal, o meu irmão entende as várias línguas do meu silêncio.
 
tenho um irmão que é a minha cópia, é o que nos dizem.
 
eu nunca acreditei - o Né sou eu, mas os olhos dele são os do meu Avô, as mãos dele são mais compridas e o cabelo rapado só lhe fica bem a ele.
 
para mim, ficam os brincos e pouco mais.
 
e o Né percebe de carros como ninguém, usou uns sapatos Oxford aos treze anos como ninguém e organiza tudo como ninguém.
 
tenho um irmão do caraças, só vos digo.
 
o meu pai diz que o meu irmão lhe lembra do pai até quando discutem. sobretudo quando discutem.
 
e eu quero acreditar que o meu pai tem menos saudades do pai dele e isso é bom.
 
o meu irmão tem um abraço que é como uma porta que não se fecha à chave - assim, à moda antiga, antes do tempo dos ladrões de leste e coisas tristes.
 
costumo entrar e fico para ali esquecido de voltar - nesse lugar, onde todos os relógios são inúteis e onde esvazio os bolsos de toda a tristeza e desencanto.
 
só o meu irmão sabe quantas mulheres amei e como as amei.
 
(coitado, e nunca se riu do meu amor em que os olhos são quase sempre os dedos.)  
 
às meninas apetece-me dizer: o meu irmão é muito melhor do que eu.
 
a toda a gente, já agora. porque é verdade.
 
um irmão como o meu dá jeito quando for comprar o meu primeiro Aston Martin - eu só sei que o quero verde garrafa. ele já sabe tudo, já reviu tudo e escolhe sempre o melhor.
 
talvez o meu irmão seja assim - eu sonho com um carro verde garrafa e ele certifica-se que o meu carro verde garrafa é o melhor que há para mim.
 
ter um irmão assim não é para todos, não senhor.
 
estou velho e repito-me, está visto.  
 
quem ama, repete a verdade julgando com isso que a torna maior.
 
fazemos anos.
 
vinte e oito.
 
(e a mim a saltar-me a tampa com os amigos de lisboa: ah já são vinteeóóito.)
 
olho à minha volta:
 
uma Mãe que eu não merecia (check)
 
uma Avó malandra e com olhos do azul mais bonito que há (check)
 
um Pai que me ensinou que nas diferenças que temos também há muito amor (check)
 
uma Tia-Avó que foi a mãe da minha Mãe quando a dela morreu e que é um exemplo de bondade (check)
 
a saudade dos meus Avôs que se senta sempre comigo à mesa (check)
 
e a Gó ao telefone a dizer: Ricardinho e Dédé parabéns! e a chorar do outro lado (check)
 
ter um irmão como o meu e uma família assim é como receber um presente que, não sabemos como, às tantas, nos calhou na rifa por engano.

é que eu não me portei sempre bem nem nada.
 
mas eu não os devolvi.
 
(afinal, não tinham defeito e pode ser que se esqueçam de mos vir roubar). 

sábado, 16 de maio de 2015

verão,

às vezes, amor, há demasiado verão quando estamos juntos.
 
escuta, não te rias, que é verdade.
 
amar-te foi tirar aos olhos todos os limites, aprender em que verbos a minha língua me sabia mais a ti e, de repente, não ter onde ficar.
 
amar-te foi como sair de casa - assim, cheio de pressa, assim cheio de promessas como vésperas de dias que sabemos vão ser bons.
 
achei, amor, que os teus olhos seriam uma boa morada.
 
o meu nome num envelope e, como uma janela aberta onde a saudade não doa, os teus olhos - essa morada onde os espelhos me mostravam melhor.
 
depois, as tuas mãos sempre todas cheias de mim - da minha boca, dos bocados da minha pele em que ainda havia noite e os instantes eram perpétuos como sonhos.
 
ainda, o haver raios de sol nas palavras que antes eram apenas corpo, mãos e boca e olhos.
 
depois, haver um incêndio em todos os verbos que antes eram somente sílabas cosidas à espera de ti.
 
tens medo, dizes tu, que a tua pele não me chegue - sabes, amor, ponho sempre uma vírgula nas bordas do teu corpo e os versos que escrevo continuam e usam a minha pele como um rascunho de ti.
 
nisto, houve sempre verão ou tu não podias andar sempre nua e as janelas estarem sempre abertas e não precisarmos nunca de cobertores.
 
nisto, houve sempre verão ou eu não podia sair em calções à rua só para te ir buscar flores, arranjar alguma saudade e trazer quente a pele dos dedos todos que te dei.
 
ofereço-te os meus dedos como quem oferece umas flores que trazem nas pétalas suor e desejo.
 
tu rias-te e havia verão nesse sorriso também - era um sorriso como uma dança numa estrada deserta - como se viéssemos de mão dada do futuro.
 
nisto, houve sempre verão e o amor foi como uma boleia que apanhámos os dois.
 
sem o sabermos, no banco de trás de um acaso muito feliz, fizemos um desvio.
 
mas, amor, o verão acaba - por enquanto, não vás dançar para a estrada e fecha as janelas.
 
eu arrumei os calções na gaveta do meio e vou pôr um cobertor na cama.
 
vem, amor, que a minha pele não me chega e preciso de virgular em ti todos os meus versos.
 
anda lá.
 
eu prometo-te que, mesmo debaixo de um cobertor, há de haver verão.
 
senão não andávamos os dois nus
 
e os meus versos não trariam tanta luz.
 
RM

sábado, 2 de maio de 2015

Mãe,

se vieres ler isto, Mãe, traz um sorriso.

eu deixo-te aqui dessas flores que não murcham

(e são palavras)

vem colhê-las, anda lá.

e usa todas as jarras para guardar os beijos que nos faltam

as palavras que ainda não te disse 

e as frases que estão por vir.


se vieres ler isto, Mãe, tem paciência.

saí a correr e não me viste

(desculpa)

eu deixo-te aqui um livro a meio

lê, se puderes, a frase que sublinhei a pensar em ti

e acalma-te.


se vieres ler isto, Mãe, obrigado.
 
(vezes mil)
  
sobretudo por tudo o que não quis, não vi e não sabia

mas foi sempre tudo o que precisei.  
 

se vieres ler isto, Mãe, tenta ler a caligrafia

(amo-te)

liga-me e fica feliz, vá lá. 

e as flores, meu menino?

essas, minha Mãe, levo-as eu no coração. 


RM

domingo, 19 de abril de 2015

Milinha,

Ao Deus que inventou o azul dos teus olhos,

eu disse que não queria amor mais nenhum.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus sorrir mas continuei,

e falei-lhe dos nossos abraços como gavetas em que as nossas imperfeições nos uniram mais

e aproveitei para lhe lembrar que te prometi muita coisa que ainda não fiz só para haver futuro.


Ao Deus que não sabe o que nos chamar,

eu disse que não queria milagres.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus abanar a cabeça com doçura mas continuei,

e contei-lhe que não sei o que fazer com o verde da Aparecida, as palavras no meu peito e as mãos nervosas se tu não estás

e, já agora, mostrei-lhe as fotografias que vimos os dois outro dia, à noite.


Ao Deus que se esconde no lado de dentro das tuas mãos,

eu disse que não quero saber para onde vou.

[não é preciso

não sei se é próprio de um Deus encolher os ombros mas continuei,

e pus-me a ler todos os postais da minha infância que tu ainda guardas

e, já agora, ainda hoje se ouve o meu riso por baixo das palavras.


Ao Deus que sempre me disse que estás à minha espera

eu disse que não sei rezar.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus piscar um olho mas continuei,

e escrevi o teu nome mil vezes na espera irrequieta do meu sangue

e, sem saber, escrevi com ele também o meu.


Ao Deus que inventou a Primavera do teu jardim

eu agradeci cada uma das flores.

são todas para ti, Vovó.



não demores.

sábado, 11 de abril de 2015

se era amor, veio à paisana|

se era amor, veio à paisana, sabes?

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

ri-me muito contigo e o cheiro da tua pele foi uma maré cheia por cima de tudo.

depois, a tua boca ensinou-me a esperar.

havia silêncio e os teus olhos eram a luz no fundo dos meus.

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

depois, a saliva foi a tinta inventada para o papel-fogo da nossa pele

e quisemos despir-nos de luz acesa.

primeiro, fomos um poema ilegível.

depois, as linhas dos nossos braços rasgaram a noite

e ficou escrito que eras minha na diagonal do suor nas minhas costas.

primeiro, quis continuar a ir sozinho ao cinema ou ao café

depois, vi que já não era minha a sombra que vinha nos passeios

e telefonei-te três dias seguidos quando a luz do fim de tarde, de repente, me doeu.

primeiro, guardei a tua t-shirt branca na gaveta do fundo da cómoda sem pensar

depois, tive saudades tuas como quem espreita uma vizinha com uns olhos bonitos demais para se ficar longe

e voltei a telefonar-te.

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

depois, o escuro continuou a ser escuro

e a noite continuou a ser noite.

eu, era outro.

(porque era teu)

RM 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

no princípio,

no princípio, acho que foram os teus olhos.

o autocarro passou e era noite, de repente.

no princípio, foi tudo o que não me disseste.

(ainda)

e eu atrasei qualquer futuro que fosse nas rodas daquele autocarro e deixei-me ficar.

fomos andar para perto do mar.

hoje, percebo que o amor começa quando o que ainda não vemos do outro é tudo o que queremos ter.

disse-te

algumas pessoas decidem ficar a viver sempre na véspera do futuro.

riste-te ao pensar nessa vida de vésperas, nessa vida que fica sempre do lado de cá do nevoeiro, nessa vida de quem se esqueceu de sonhar.

tens razão. mas escolhes sempre não apanhar autocarros só porque o futuro tem que estar noutro lugar?

nessa altura, acendeste um cigarro e o vento era quente e vagaroso.

[não. não apanhei o autocarro porque senti que o futuro tinha que começar hoje.]

esta teria sido a minha resposta, se não tivesse descoberto que havia pele no fundo dos meus olhos e que tu a acordaste.

escondeste-te dentro do meu casaco - os teus braços à volta da minha cintura e o silêncio a deixar, de repente, de ser um lugar desabitado.

fizemos tantas vezes isto - falar, noite dentro, agasalhados no corpo um do outro e descobrir que o silêncio de quem ama nunca é silêncio - é outra coisa.

no princípio, o autocarro passou e não demos por nada.

rimos por causa de um filme qualquer e rimos por causa de tudo e de nada.

rimos porque o que ainda não víamos um do outro era o que queríamos ter.

no princípio, atrasei-me.

e habituei-me a ver-te fumar pendurada no parapeito das janelas, nas escadas do prédio ou no meu colo, na varanda.

naquele dia, não tive pressa - falei-te como se sempre me tivesses esperado, como se fossem todos teus os meus sorrisos naquele desvio e improviso em que começa o amor.

naquele dia, o autocarro levou a véspera do futuro com ele. o futuro começava ali - no lado de lá do nevoeiro para onde me levaste pela mão.

naquele dia, amor, atrasei-me.

e cheguei a horas.

sábado, 7 de março de 2015

Até sempre, Tia!

Tia,
 
Já há flores na varanda de sua casa, sabe?
 
Uma varanda como uma ferida verde na altura cinzenta dos prédios daquela rua do Porto.
 
Graças a ela, mesmo em pequeno, soube sempre onde morava - nessa casa tão cheia de memórias, de livros, de pintura e tão cheia da vossa história de amor.
 
Sabe, Tia, sempre achei que a sua história e do Tio Arnaldo foi, sobretudo, uma belíssima história de amor.
 
A Avó diz-me que começaram a namorar ainda muito novos. A Tia vinha do Porto passar os Verões à Aparecida e costumava passear muito com o primo que aprendeu a amar.
 
E eu aprendi a admirar o tamanho desse amor - a luz que ele teve pelo meio das trevas de tantas e tantas coisas difíceis, a verdade que ficou no abraço doce que a sua memória nos deixa.
 
Lembro-me da Gó me contar que o Tio lhe disse uma vez:
 
Sabe, Glória, eu quero morrer primeiro que a Maria Alcina. Nós somos como um casal de passarinhos e eu não saberia aprender a viver sem ela.
 
Até hoje, guardamos todos uma saudade imensa desse Tio que, como Homem, tem o tamanho de todas as vidas que vieram depois dele e que foram melhores por sua causa.
 
Dele guardo, sobretudo, a doçura de todos os encontros - a vontade que tinha, como me dizia, que "fizéssemos o futuro acontecer mais cedo."
 
Lembro-me de ficar com a Tia a olhar as pinturas horas a fio e de ficarmos a conversar no quarto com vista para a Ponte da Arrábida.
 
Lembro-me da Donzília, com a sua voz tão alegre, às compras na mercearia, em Miguel Bombarda:
 
Olá, olá, meninos! Então, queridos, como estão? - nela vi sempre a vossa Gó, essa espécie de família que a vida nos revela no coração de alguns.
 
Também eu gostava de ter vivido os Verões em que os meus Avós iam com os Tios e os filhos e primos todos até à casa com janelas em bico, na Foz.
 
Admiro os meus Avós por terem estado sempre do lado do futuro que era o vosso lado - olho a minha Avó com um respeito enorme quando me diz que nunca teve medo de ir visitar o Tio à cadeia; ou quando, ainda ontem, ao lembrar-se dos julgamentos chorou, uma vez mais.
 
Lembro-me do Nanau e de passear com ele e com o A., ao fim da tarde, depois da faculdade.
 
Lembro-me de ficar vaidoso quando a Tia dizia:
 
Estes meus sobrinhos também tiraram Direito como o Arnaldo.
 
Hei de lembrar-me sempre de si, Tia.
 
Deixo-lhe o poema que o Tio lhe dedicou quando fizeram 50 anos de casados, dia 17.04.2005.
 
Tenho o convite guardado até hoje.
 
Aqui vai:
 
Tu me foste
namorada,
noiva,
amante.
E Irmã,
Amiga,
Mãe,
Mulher.
É de
justo
que eu
te cante.
Que eu
me encante
até morrer.
E o faça,
e o faça
com prazer!
 
Arnaldo Mesquita, in Dispersos (diversos), p. 194.
 
Sei, hoje, que o Tio foi maior graças ao Amor que lhe guardou sempre.
 
Sei, também, que o seu coração se cansou de saudade.
 
A esta hora, que estejam todos juntos: a Tia, o Tio e o Nanau.
 
Sei que saberão encontrar-se, também desta vez.
 
Já há flores na sua varanda, querida Tia.
 
É a Primavera que vem aí.
 
E o Céu enche-se de pássaros que parecem querer voar juntos para sempre. 
 

Pai,

Para a Bárbara,
e às pessoas que nos deixam olhos no coração.
 
 
 
Pai,

Pensei que ia ter a vida toda para ser tua
Pensei que íamos ficar esquecidos de partir
Sentados os dois à mesa de uma noite feliz
Sem longe e sem medo

Pai,

Pensei que podia chamar-te mais mil vezes sem te gastar o nome
Pensei que na verdade não havia pressa
E que íamos morar os dois para sempre
Na pátria do sonho de onde viemos

Pai,

Pensei que a guitarra do nosso Fado nunca seria triste
Pensei que o nosso tempo seria somente o tempo todo
Quis, sabes, chegar sempre a casa apenas para te encontrar
E para acreditar contigo na doçura de todos os enganos

Mas, Pai,

Quero que saibas que estou a aprender com que letras se continua o Amor

Quero que saibas que o que somos, sei dizê-lo.

O poema que me foste, sei cantá-lo.

Dá-me tempo, Papá.
Dá-me tempo.

E eu vou aprender que o futuro será sempre o lugar onde terei, inteira, a verdade do que fomos.

[Dá um abraço ao Avô Adolfo por mim.]


RM

Parabéns, Gó.

06.03.
 
Gó,
 
Chego à porta de tua casa.
 
O dia está limpo e no jardim, do lado de dentro do portão, já há flores.

São camélias.
 
Decido chamar-te:
 
 
E tu vens logo, como sempre.
 
Trazes nos olhos uns braços que chegam ansiosos e dizem saudade.
 
Ricardinho, como está? Que saudades, Ricardinho!.
 
Quase posso jurar que ninguém me chama Ricardinho como tu, malandra.
 
Como ninguém cozinha bifes com ovo ao Domingo à noite como tu.
 
Ou ninguém tem uma fé com a luz e a verdade da tua.
 
Venho ver-te para que o tempo pare. Venho ver-te para falar do Avô com quem o conheceu tão bem.
 
Venho ver-te para nos rirmos das cócegas que eu e o A. te fazíamos na missa ou de quando nós os dois te pedíamos para ver uma galinha por dentro.
 
Venho ver-te porque é tão fácil e os teus braços têm sempre o tamanho do que me falta.
 
Dizes-me
 
Sabe o que me alegra muito, menino? Que seja sempre tão amigo dos seus Papás, das suas Avózinhas e do Dédé.
 
[Dédé para sempre.]
 
E teu, respondo-te.
 
Sim, e meu.
 
Conheces-me tão bem, penso eu.
 
O meu coração é como um portão fechado onde há um jardim com flores.
 
E, juntos, os meus Pais, os Avós, o A. e tu são uma promessa de Primavera no chão de tudo.
 
Gosto muito de ti, Gó.
 
Vim mesmo foi para te dizer
 
Obrigado.

mais uma vez.
 
E lembrar-me de como o Jesus era bonito na tua boca, de como agradeceste todas as nossas alegrias como se fossem as tuas e de como nos adoçaste as tristezas do caminho.
 
Venho porque me apetece ser criança outra vez - e correr nos terraços de casas onde os Avós não morrem, os Pais não envelhecem e as empregadas são do sangue que o nosso coração queria ter dentro.
 
[e tem]

Venho para gostar de perto - tu sabes que eu só gosto assim.

Venho, porque sim.

Venho por tudo.

E virei sempre.

Só para chamar

!

E caber inteiro no teu abraço.

(sabes, ou eu não cresci ou tu tens sempre o tamanho do que me falta.)

Parabéns, Gó!

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

o teu nome,

fecha os olhos.

vá lá,

deixa que te mostre, de novo, o nome de tudo.

aprende comigo que se diz noite com um sorriso.

depois, muito devagar, aprende o teu nome como eu o escrevo:



os teus lábios são as linhas onde a caligrafia se desmorona

as tuas mãos os cadernos onde os sonhos se confessam

e o teu corpo é a boca por onde o desejo, finalmente, se escapa.



fecha os olhos.

vá lá,

lembra-te, se puderes, que antes do encontro das nossas bocas havíamos esquecido todas as palavras

sei, apenas, que meti as mãos dentro do teu vestido e queimei a língua ao sublinhar-te muitas vezes.

lembras-te?



vem ver como em tudo sempre houve uma espera

sim, amor, tive até que arranjar mais sangue só para caberes cá dentro e te poder guardar inteira.



fecha os olhos.

vá lá,

prova-te nos cantos da minha boca, encontra-te nas sombras da minha pele

e diz que ficas.



vem ver, amor, como é o teu nome que eu escrevi.

aprende-me as letras e verás.

é o teu nome

à espera, toda a noite, que tu digas o meu.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

tão branco este silêncio,

o nosso silêncio era feito de paredes cansadas, lembras-te?

e eram nossas as sombras que nelas dançavam as horas rápidas da noite, lembras-te?

sabes, os meus olhos ainda procuram a janela onde deixaste a minha roupa.

não precisas dela, dizias.

e rias-te enquanto tudo o que eu vestia eram os teus dedos.

comecei a calar-me dentro dos teus braços - a minha língua queria era ler as letras trémulas do teu arrepio e tu trazias o mapa do meu corpo todo escrito no relento quente da pele.

hoje lembrei-me de ti - há uma solidão demasiado branca nas paredes desta casa, trago na boca um mastigar de espera que incomoda e continuo sem saber da roupa.

este sofá cheira às flores que te semeei no fundo da barriga e ainda há restos de ti no fundo dos espelhos do quarto.

sabes, há uma luz de primavera a inundar o chão e faltam os teus pés a mostrar-lhe o caminho para dentro do meu peito.

ontem à noite, dormi sem almofada - ainda havia nela a expectativa dos sonhos que inventei para ti; havia ainda, no avesso, promessas por cumprir.

ando sem roupa à procura da janela onde ias só para fumar um cigarro. e ando à procura do teu sorriso quando dizias

não vais precisar dela.

tenho o corpo à espera e um coração que tem pressa, amor.

ando à procura do verbo que te empurre.
 
sim, do verbo que te empurre para dentro de uma parede branca comigo.

outra vez, mais uma vez.

deixaste os cigarros na mesa da entrada.

volta nem que seja para os vires buscar.

vá lá, entra e tranca a porta.

onde estão as chaves?, perguntas.

não vais precisar delas, digo-te eu.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Parabéns, Vovó!

18.01.
 
O coração sabe que é a hora.
 
O telefone chama.
 
Tu não demoras a atender.
 
"- Muitos parabéns, querida Milinha!!"
 
Curioso que se diga que o telefone chama, como se o telefone estendesse a nossa voz até à outra ponta da saudade.
 
A minha Avó faz hoje anos e isto chega.
 
E eu quase quero que este texto seja isso mesmo - uma janela cheia de luz toda aberta para dentro da pele; cada um dos instantes imensos em que, num feliz engano, cremos que vamos ser esquecidos e deixados para sempre junto uns dos outros.
 
Quem escreve, chama.
 
E eu gosto sempre de chamar o nome da minha Avó, de andar pela casa, percorrer os corredores e saber que as minhas mãos sempre encontram quem as agarre; que, afinal, sempre há uma razão para sorrir apenas porque o azul dos seus olhos pode muito bem ser um poema escrito só para nós.
 
A minha avó foi um poema escrito para mim - as nossas vozes rimam, os nossos olhos abraçam-se e as palavras são presentes que abrimos juntos na intimidade do que somos.
 
A minha Avó é um poema que sei de cor - todo o amor é uma espécie de vício, todo o amor é uma espécie de sequestro feliz.
 
E a quem se agradece que o poema possa ter mais uma estrofe? A quem agradecer a infinita alegria de poder dizer mais uma vez:
 
"- Vovó gosto muito de ti. Sabes disso, não sabes?"
 
Eu agradeço uma vez e outra, mil vezes, todas as vezes em que o meu amor encontra do outro lado quem diga:
 
"- Eu sei, meu amor. Eu também."
 
O coração sabe que é a hora.
 
O coração escreve só para dizer que já tem saudades daquilo que sabe que podemos vir a ser, Avó.
 
Vovó, os maiores amores são aqueles em que o tempo se desalinha só para que seja possível o encontro.
 
Para ir ter contigo, eu chego sempre adiantado.
 
E rio-me ao pensar que, em todas as vezes que cheguei antes da hora, tu já lá estavas:
 
"- Estava à tua espera, Ricardinho!"
 
O coração sabe que é a hora.
 
E dentro dos nossos corações, felizmente, a hora será sempre a mesma.
 
Parabéns, Milinha!


quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Até sempre, Tia,

Tive uma família que nunca me ensinou a dizer adeus.
 
A vida foi sempre um ciclo sereno em que as saudades cresciam no intervalo entre as visitas, entre as vindimas, entre as férias de Verão que pareciam não acabar nunca.
 
Até hoje, dizer adeus não deixa de ser estranho - é quase ter que chamar vida à vida sem vindimas, sem Verões em Caldelas, sem lanches e almoços em dias de anos. Todos os anos, toda uma vida.
 
Temos saudades suas, Tia Ester.
 
Outro dia, lembrei-me das nossas conversas debaixo das árvores nas termas, de como conservou a sua serenidade de Professora durante toda a vida e de como gostava de falar comigo.
 
Lembro-me muito do Avô, desses Tios e Tias que foram parte da muralha em que a infância pôde ser o chão de uma casa.
 
A Avó fala-me muito de si, fala-me dos vossos tempos de amigas na escola, muito antes de serem cunhadas, fala-me como se não conseguisse deixar de a esperar nunca.
 
Ficámos os dois a ver fotografias até muito tarde - aprendi com ela esse vício de ocupar as ausências com a doçura do que vivemos, com a verdade do que fomos uns para os outros.
 
Ri-me muito ao lembrar-me da Tia a dizer:
 
"- Ricardinho, escolhe um carro para brincares que eu dou-to." 

Era o Verão de Caldelas, era o tempo das brincadeiras sem fim e sem medo.

E logo a Tia Né a correr muito:

"- Querido, escolhe dois que eu pago."

Aprendi que em todo o amor há uma espécie de rivalidade e habituei-me a ter um coração grande como um abraço generoso onde coubessem todos quantos gostavam de mim.

Acabei essa tarde com três carros para brincar e um saco de berlindes que guardo até hoje.

O carro que a Tia me deu, ofereci-o ao Tiago, filho do Pedro, este Natal.

Gostar das pessoas é repetir o bem que elas nos fizeram, é prolongar o afecto dos outros para lá do tempo que temos por aqui.

Lembro-me do parque das termas, de beber muita daquela água e de andar a dizer à família toda que a bebesse também para que tudo durasse para sempre.

Uma família é uma árvore perene com frutos que vão caindo.  

Tenho pena de serem cada vez menos os que me chamam:

"Ricardinho."

Como se tudo fosse ser sempre bom, como se em todas as curvas da vida sempre houvesse quem nos esperasse.

"Anda cá, querido, anda cá." 

Obrigado, Tia e até um dia.

Já sabe, é só chamar.

"Ricardinho!" 

E eu arranjo uma maneira de a encontrar.