Rewind

terça-feira, 28 de julho de 2009

As horas

E as horas pareciam, de súbito, enormes. O tempo chegava em vagas serenas como pequenas ondas num mar de paz. Ele boiava nelas, com o corpo num sossego morno e quente. O mundo parecia um murmúrio, nessa voz difusa de ecos longínquos. Às vezes, sabia bem estarmos no mundo mas deixarmos as coisas acontecerem apesar de nós.


Talvez gostasse de existir menos ou de poder acreditar, ainda que por uns instantes apenas, que o mundo existia para lá dele. Que a vida não se gastava ou não passava pelas mesmas ruas e sítios, uma vez mais. Desistir da vida como alguém que deixa a areia escapar por entre os dedos. Lavar o corpo no silêncio de horas sem nome e sem destino. Descobrir o tamanho dos desejos que os sulcos da pele guardam. E ficar a boiar no colo manso e terno das horas lentas e longas do que agora começa.


Viajar sem destino no leito do tempo. Poder demorar mais o olhar num pormenor da vida que vemos que, afinal, sempre ali esteve. E, mesmo demorando no caminho, sentir que cumprimos a jornada, onde quer que cheguemos.


O tempo para ele não era mais tempo. Era agora o espaço onde o corpo, os desejos e a vontade cabiam inteiros e tinham a exacta medida disso que se chama paz. Poder abrir na face do mundo o espaço onde podia permanecer. Continuar. Demorar. Verbos a que o tempo empresta o nome mas que continuam para lá dele. Como o mundo, num murmúrio distante.


sexta-feira, 17 de julho de 2009

No jardim

Encontrei-te num banco pintado de luz no jardim pequeno do fim da minha rua. Em baixo, o mar com o seu eco rouco de notas arrastadas pelo vento.
Estavas sentado muito quieto - os ombros murchos, com os músculos lassos. Aos teus pés um rafeiro pequeno com o pêlo num emaranhado amarelo de nós e frisados. O cão tinha um olhar dolente, certamente saboreando o calor dessa tarde de horas dilatadas.
Procurei os teus olhos, sem que me visses. O teu olhar era um olhar aceso - desses que se enamoram do mundo e com ele vivem um amor sentido. Tinhas a pele num desalinho de curvas e pequenas covas. O cabelo grisalho, pequeno, semeado numa cabeça bem redonda. Seguravas na mão um livro a que não pude adivinhar a trama. Tinhas as mãos pousadas no colo e aí repousava o livro entreaberto.
Não foste tu quem me despertou a atenção. Foi o teu livro a que não pude saber o nome. Procurei-o, então, nos teus olhos por ser neles que sempre se adivinha o brilho que as palavras acendem.
Chamei-te velho. Ou chama-te velho o nome que o mundo me ensinou a dar-te. Eu preferia não te chamar nada. Nos teus olhos vi uma vontade que o teu corpo não consente. Vi desejos que o teu corpo não cumpre mas que a tua fome não esquece. E continuaria a não te chamar nada.
O nome que te demos não é o que tu és. E fiquei a pensar nisso de os nomes não serem uma boa pele para as coisas. Ou serem talvez só isso: pele morta a que falta o sangue e o sonho nas veias.
O rafeiro mudou de posição e foi pousar o focinho no teu pé direito. Trocaram olhares e podia jurar que nos olhos do bicho se desenhou essa alegria sem fundo que o amor incondicional desperta e que a palavra rafeiro não diz.
Os livros ensinaram-te o verdadeiro nome das coisas. Talvez tu e o rafeiro de olhar tenro soubessem disso: os dois, assim, sendo muito mais do que aquilo que o nome que têm diz de vós.
Por isso, procuraste sempre os livros: neles as palavras tinham o oxigénio do sonho; a escala desmedida do que não se pode pedir e não tem nome. Porque as coisas ficam bem melhores assim: sendo apenas uma infinita possibilidade como essa que tu eras.
A vontade e o sonho acima da tua pele.
Viva, sob a luz do sol que se punha.

terça-feira, 14 de julho de 2009

O Amor "streetwear"

O Amor é tema que nunca se esgota. Talvez porque sem sabermos muito bem porquê somos todos atingidos por essa enorme vontade de andarmos nuns pés que não são os nossos.
O Amor está a mudar, meus senhores. O Amor dos dias de hoje é um amor streetwear.
Há uns dias passava eu numa dessas ruas perdidas no corpo da cidade, como uma dessas linhas que sempre descobrimos na palma de uma mão e eis que sou surpreendido por uma profunda declaração de amor: "Amuh-te Soraia." Confesso que fiquei a pensar naquilo de o amor ser aquilo: amor com letra grande ou letras grandes que talvez seja a mesma coisa (ou não.)
Estas letras garrafais ocupavam a face enegrecida de um desses prédios que deitam os olhos para as ruas cansadas da nossa cidade. E passam os dias e as palavras jazem ali como redutos invioláveis daquilo que fomos. E eis que as fachadas da nossa urbe se tornam repositórios da memória individual - essa que em tempos idos se não partilhava e ficava a amarelecer numa caixa escondida do mundo e dos seus revezes.
O Amor é um lugar estranho. E talvez, nos dias de hoje, os amores contrariados sejam mais explícitos - sem aquela dose de contenção que era hábito em tempos idos. Hoje o pai daquela menina muito amada chamada Soraia tem o amor estampado no prédio da frente, como um manifesto assumido e provocador. E talvez hoje os amantes não fujam mas simplesmente imponham o seu amor dentro de casa.
A verdade é que talvez Julieta e Romeu hoje se despedissem do mundo com Prozac e tivessem tido um filho que lhes era retirado para um refúgio longínquo perto do mar. E talvez nem se chegassem mesmo a matar. Talvez fossem para a televisão gritar que o filho era deles e, depois de uma quantas lágrimas, tudo ficasse bem. Uns anos depois o caso haveria de ser conhecido como o drama do "Menino da Lágrima" que é um nome que a gente não esquece e que cai bem melhor no estômago da memória do que Romeu e Juieta. O bom disto tudo é que talvez se tenham evitado umas quantas mortes.
Mas o amor continua o seu desfile pelas ruas. Hoje o amor cola-se na pele. Respira em cada um dos nossos poros. O amor hoje tatua-se. Bem, talvez seja melhor dizer que o amor não respira em cada um dos nossos poros.
É ver o amor estampado nos corpos. Chamas tatuadas perto do nome daquele ou daquela que juramos amar. Talvez esta seja a nova forma de compromisso. Depois de todas as palavras gastas e prostituídas e os gestos todos aprendidos em filmes de grande distribuição, o que resta ao amor é o palco dos nossos corpos.
Um dia, Soraia acordou com vontade de novos amores. Desatou num discussão violenta (virulenta não que "Sidas" ela não tem, Graças a Deus.) com o galã da pintura urbana. Ele chamou-lhe "Cobra!" e outros elogios igualmente intensos. E o amor acabou. Soraia estava, enfim, livre para o deleite de outras paixões. Havia, contudo, um senão: apesar de ser cobra não podia mudar de pele e deixar para trás o esqueleto daquelas palavras, agora vazias. (apesar de ainda terem muita carne (a dela)).
Hoje o laser é o melhor amigos destes amores eternos. Chega e apaga as nossas promessas. E os amantes sentem-se livres para começar de novo outro amor que "seja eterno enquanto dure", como diz um tal de Vinicius cuja sinceridade bateu o lirismo desse tal de Guilherme Shakespeare.
O Amor muda, meus senhores. E talvez não se ame menos, mas simplesmente de forma diferente.
Pego num livro de sempre. Pensei em escrever estas palavras:
"Amor é fogo que arde sem se ver;
Ferida que dói e não se sente"
Mas lembrei-me que o poeta desconhece que há chamas que ardem nas costas e nos braços e no corpo de quase todos os amantes do agora e que, depois, de tatuado, a ferida desse amor dói e vê-se bem.