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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

para que seja uma casa,

para que seja uma casa, mãe, 
que fiquemos os dois 

sempre os dois
nessa ausência completa de nomes
nesse tão honesto conforto do amor

eu, de t-shirt branca numa varanda qualquer
tu, com um cigarro que nos ouve aos dois noite dentro

para que seja uma casa, mãe, 
que fiquemos os dois

sempre os dois
nos sublinhados dos livros que trocamos
nas gavetas que enchemos de coisas nossas

eu, tantas vezes esquecido de te agradecer
tu, em todas elas, inventando abrigos nas ausências

para que seja uma casa, mãe, 
que fiquemos os dois

sempre os dois
nessa longa insónia de luz
nessas flores que persistem sem as regarmos

eu, cruzando-me contigo nas escadas e sorrindo
tu, acenando do lado de dentro da porta do prédio que se fecha

para que seja uma casa, mãe
que fiquemos os dois

sempre os dois

e, se ao cruzar-me contigo, não te disser que te amo, mãe
lembra-te que o bilhete do autocarro que trago no bolso dá para ir sempre até onde tu estiveres e espera por mim. 

Obrigado. 

RM| XIX-XII-MMXVI

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Mãe,

as tuas mãos nas minhas, Mãe
[sempre sem pressa]
nos cinzeiros de todos os encontros
o cigarro que arde tão depressa
quanto a paz que chega deslizando devagar

e os teus olhos a atravessar a rua rumo aos meus, Mãe
[sempre com pressa]
nos semáforos de todas as distâncias
o vermelho fechado que se ignora tão depressa
quanto o peito que me arde e que te chama

e o teu riso de vidraça aberto em infinito, Mãe 
[sempre sem pressa] 
nos poentes de todas as estradas
a curva que se engole tão depressa
quanto aos dois nos chamam as coisas tão sem nome

e de ti, Mãe, tudo quanto me diz que a poesia das flores de uma alameda inteira nunca chega 

no silêncio de todos os poemas que te faço -

há sempre tempo para um cigarro
um vermelho que se ignora num semáforo
uma vidraça que se abre devagar

e um obrigado por sempre te atrasares 
para que fosse eu quem chegasse sempre a tempo. 

Obrigado. 

Parabéns, Mamã. 

RM| X-XI-MMXVI

domingo, 16 de outubro de 2016

Mãe,

talvez, Mãe, o tempo se atrase um pouco 
e possamos, os dois, dançar na luz do que te digo, 
tu, como uma praia que me espera
e eu, como a maré que se enche para te chegar

talvez, Mãe, eu chegue mesmo antes de ser noite
e possamos, os dois, retomar o fôlego silencioso do amor
tu, fumando nos lábios o infinito quente do poente
e eu, dormindo inteiro na soleira do teu colo meigo

talvez, Mãe, ninguém nos ouça 
e possamos, afinal, inventar os dois uma língua do princípio
tu, com as sílabas imensas do perdão 
e eu, com a métrica irrequieta da saudade

talvez, Mãe, o tempo se atrase um pouco 
e o fim não comece nunca
talvez, Mãe, a maré durma na praia nessa noite


de manhã, a luz demora-se.
na praia, 
o mar conta um segredo devagar. 

RM| XVI-X-MMXVI 

  

domingo, 25 de setembro de 2016

Mãe,

MÃE, 

nunca estarei longe demais para voltar a casa. 

tu sabes, Mãe, que saio sempre a correr 

a carteira,
o relógio, 
um sms todos os dias que te diz,

amo-te muito

e é verdade que esse amor é sempre o melhor assento do autocarro, 
que a lembrança do teu abraço é o melhor casaco que tenho. 

sabes, Mãe,  

o telefone não to diz mas eu lembro-me, sabes?

juro que me lembro de todos os passeios na praia
de todas as vezes em que me perdoaste
e tudo continuou exactamente como antes:

o mesmo sorriso-de-areia-morna, 
a mesma voz de brisa-que-dança,
o mesmo coração-cheio-como-uma-gaveta-de-sonhos. 

parece, Mãe, que a verdade que sei 
é, tantas vezes, um segredo que não conto
mas, se puderes, lê isto: 

amo-te muito, 

e juro que me lembro de tudo. 

vem ter comigo perto do mar
no coração para toda a vida um sms que te diga,

amo-te muito

mesmo que, junto do mar, já haja frio 

eu serei, para toda a vida, 

o casaco de que precisas. 

RM| XXV-IX-MMXVI





sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Para a minha mãe,

um postal de improviso que diga apenas,
 
tenho saudades tuas, Mãe,
 
fumar um cigarro e esperar que o postal te leve a minha voz
 
e me devolva os teus braços
 
sempre.
 
 
engraçado isto de a minha saudade poder ser, para sempre, uma carta devolvida ao remetente
 
o carteiro a dizer,
 
oh senhor, caraças, as duas moradas são sempre iguais!
 
e eu sem saber muito bem se sou seu que sou a tua casa
 
ou se tu é que és a minha
 
[mas não interessa.]
 
 
talvez, então, te deixe o postal enquanto dormes
 
e te ouça no escuro quando, tarde, a noite nos abraçar aos dois
 
 
depois, ao sair do quarto,
 
o coração cheio e o postal quase vazio.
 
 
mas, Mãe, lê sobretudo o que não diz o postal
 
e que é tanto,
 
imagina que o postal é uma porta que deixo aberta
 
e entra
 
[sempre.]
 
 
sabes, acredito que o carteiro te levará, outro dia, uma outra carta,
 
por pouco que eu diga e que as moradas se repitam sempre
 
todos os carteiros tiveram mãe
 
e sabem que, muitas vezes, as cartas sem palavras
 
levavam os envelopes mais cheios de amor.
  
 
RM| XXVI-VIII-MMXVI

domingo, 12 de junho de 2016

Avô,

às vezes, a saudade é um lugar errado
onde fica tudo o que foi certo

descendo, devagar, vejo

a tua caneta parker
o teu porta moedas
e a tua boina no sofá

e a saudade é um lugar errado
debaixo de um poente repetido onde faltas tu

mas eu vejo, ainda

a tua primeira fotografia comigo quando nasci
no dia em que faço 29 anos,
olho-a de novo

que lugar tão cheio de coisas certas
que doem
que faltam
que falam

sabes,
às vezes, demoro-me nos lugares errados
pego-te na caneta parker e escrevo o teu nome

uma, duas, três
todas as vezes
e o teu nome é uma árvore ou um pretexto de sonho

e a tinta não me acaba nunca.

sabes,
às vezes, pego-te no porta moedas
e roubo-te uma moeda
só mais uma hora, senhora saudade, por favor

e o parquímetro pára de nos contar a distância.

sabes, nas vindimas pego-te na boina
e fico a olhar o verde da esperança que ter-te tido me deixou

e a boina, mesmo pequena, serve-me, outra vez.

serve-me a boina
há tinta na caneta
e uma moeda para mais uma hora nesse lugar errado
onde ficou a coisa mais certa da minha vida

que és tu.

[Saudades, Vovô.]

RM| XII -VI - MMXVI

domingo, 29 de maio de 2016

Né,

I.VI.
 
Quem nasceu primeiro?
 
o A., respondi, com gosto, toda a minha vida.
 
E toda a minha vida, cá dentro, soube que isso significou sempre que o engano da solidão não me tinha acontecido a mim.
 
O A. esperou-me desde o princípio - juntos, espreitámos sempre a vida um do outro como duas partes da mesma coisa que se olham, que se medem por uma medida ainda por inventar, toda feita dos silêncios em que apenas nos abrigámos sob a evidência morna dessa cumplicidade sem nome.

O A. sorriu-me da carteira no primeiro dia de escola - o mano estava lá, os óculos de massa, o brilho nos olhos e um aceno breve como quem diz meu sacana, isto vai correr bem.

Gosto de ouvir o meu nome na voz do meu irmão - o meu nome dito por ele é que é o meu, como se só ele guardasse de mim o retrato mais fiel e mais perfeito e, só assim, eu soubesse que é a mim que o mundo chama e abriga, que o mundo reconhece e cumprimenta.

Ricardo,
 
e eu, por cima do ombro, de repente, já sei que estou perto de casa, já sei que me vieram buscar ao avesso escuro dos enganos para me levarem de volta à morada que o A. tem escrita no envelope da pele dele.
 
Em mim, desde o princípio, nunca morei sozinho - se o meu coração fosse uma mesa, penso eu a sorrir, ela veio, desde o primeiro dia, posta para dois.
 
E o meu irmão mora em mim como o soalho velho que fala no escuro das noites das casas antigas - o chão chama por quem tem que cumprir uma espécie de promessa, por quem tem que, de alguma forma, ficar.
 
O meu irmão foi meu irmão por cima de tudo, primeiro que ele, em vez dele, contra ele, quando foi preciso.
 
Como se ser meu irmão lhe bastasse para, apesar de tudo, sorrir e dizer,
 
meu sacana, vai correr tudo bem.
 
Obrigado, Né, por todas as vezes em que a mesa estava posta e tu vieste e, mesmo quando não mereci, ficaste comigo nesse vício contente de repetir um prato de que se gosta muito, já sem saber porquê.
 
O palato do meu irmão, felizmente, nunca mudou.
 
Ele vem sempre sentar-se à minha mesa, pede muito pouco e vai ficando a ouvir-me com as mãos estendidas e os dedos grandes pousados como se ouvissem.
 
O A. ensinou-me, como numa aula da primária, como se escreve o perdão, como sempre se manda uma carta com uma morada para enviar resposta.
 
De todas as vezes, o meu irmão respondeu-me e perdoou.
 
De todas as vezes, o carteiro que a vida pôs a passar à nossa porta encontrou-nos remetente e destinatário do amor de que o outro precisou.
 
O meu irmão acende as partes mal iluminadas das ruas onde me perco e fica a sorrir-me como se apenas viesse para me dizer,
 
anda para casa, mano.
 
Agradeço à vida os cinco minutos que o meu irmão leva a mais do que eu. Graças a isto, nunca soube o que era a solidão e ando por aqui convencido de que, algures, alguém me espera.
 
29 anos e os cinco minutos em que o meu irmão já cá estava - desconfio, até hoje, que o A. arranjou maneira, já na altura, de me dizer, naquele primeiro dia, que íamos para casa.
 
e de sorrir, sempre.
 
O meu coração é uma mesa sempre posta para dois.
 
O mano vem e diz, sorrindo,
 
Ricardo,
 
Dentro de nós é sempre a mesma hora.
 
Os cinco minutos de avanço que ele leva, usa-os para pôr a mesa, compor tudo e ligar a música à espera, apenas, de poder ser o irmão que eu tenho mas, claramente, não mereço.
 
Obrigado.

RM| XXIX-V-MMXVI  

sábado, 30 de abril de 2016

ouvir-te ficar, Mãe,

Mãe,

ouvir-te ficar, Mãe -

o teu amor com passos doces e braços enormes como janelas

os teus olhos como parapeitos de luz e de esperança

e o silêncio em que te digo com a pele o que me falta


ouvir-te ficar, Mãe -

tu que entras sempre devagar

não sei bem como, mas arranjas sempre a chave

e vais entrando,

o amor, de repente, é um filme que vemos os dois no sofá

ou um café improvisado em que me dás a mão mesmo antes de eu sair para a rua,

os carros passam, Mãe,

tu ficas a sorrir-me do lado de dentro do vidro

e eu repito em todos os vidros de todos os cafés o nosso encontro

como num espelho.


ouvir-te ficar, Mãe -

e eu que sei que nem sempre o meu amor é como o teu

e tu continuas,

insistes,

não pedes nada, Mãe,

um fósforo, de repente, acende as letras do nome de tudo

tu sobes o vão da minha escada todas as vezes

só para me ensinares a soletrar esperança no vapor do vidro das janelas.


ouvir-te ficar, Mãe,

os teus dedos a agarrarem-se aos meus

mesmo antes de eu ir para rua

tu que ficas a sorrir-me do lado de dentro do vidro num café 

e eu que repito em todas as montras de todos os cafés o nosso encontro

só para saber qual o caminho,

que a casa é perto

e isso chega.


RM| XXX-IV-MMXVI

domingo, 6 de março de 2016

Gó,

06.03
 
Gózinha!,
 
Diga menino,
 
Parabéns!
 
toda a minha vida, a tua voz
 
toda a minha vida, os teus olhos marotos
 
e o teu sorriso como o número de porta que sabemos ser o da nossa casa.
 
Vim para te agradecer, Gó.
 
O Deus das missas onde eu e o A. te fazíamos cócegas
 
O Deus das tuas velinhas,
 
Oh menino, vai correr tudo bem, vai ver!,
 
[e a vela acesa, sempre por nós]
 
Vim para te abraçar e sorrir-te do portão
 
para poder não ter pressa, outra vez
 
e ficar para jantar,
 
Que querem jantar, meninos?,
 
Bife com ovo!, Gó, bife com ovo!
 
 
Vim para te dar a mão, Gó,
 
sei que já não tens que me levar à escolinha nem nada
 
mas dá-me a mão,
 
só porque sim
só porque podes
só porque queres
 
como se fosse a minha vez de te levar onde for preciso.
 
Vim para que me ouças, Gó,
 
tu que sabes o tamanho da minha saudade
tu que tens no coração os nossos nomes
e és também a minha casa,
 
acende uma vela, nesta hora, se puderes,
 
diz que ao Deus das missas-com-cócegas
 
que os Meninos precisam da Avó
 
(e de ti)
 
e dá.me um abraço,
 
Oh menino, vai correr tudo bem, vai ver!, 
 
Dentro dos teus braços, estou bem.
 
e o teu sorriso, como um número de porta,
 
diz-me que estou em casa
 
e isso chega.
 
RM| VI-III-MMXVI

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Avó,

R., meu amor, é bonito seres um homem com um coração de menino, sabes?
 
As coisas que só a minha Avó me diz.
 
A Avó dos olhos doces, a Avó que fez com que o regresso nunca fosse longe demais.
 
Obrigado, Milinha,
 
Sabes, Avó, vou ter contigo para salvar o meu coração,
 
Vou ter contigo para ser possível sonhar por cima da ruína do medo
 
e sorrir por ver o mar dos teus olhos encher-se todo de luz outra vez.
 
 
R, meu menino, temos que conversar!
 
Conta-me coisas da tua vida!
 
As coisas que eu te digo, Avó,
 
Como se por te chamar todos os dias
 
Tu possas lembrar-te da paz que te promete o teu jardim
 
e da nossa casa em que os relógios pararam há um mês à tua espera
 
 
Amo-te, Milinha,
 
E as flores que te levo são as minhas palavras,
 
os meus dedos a rimarem com os teus por dentro do tempo
 
a salvo do tempo,
 
para lá do tempo,
 
o tempo todo.
 
 
As coisas que só a minha Avó me diz
 
A falta que só ela me faz
 
A saudade que só tenho para ela
 
 
E a casa com o jardim muito quieto
 
E os relógios parados como se esperassem
 
 
Porque o amor é isto -
 
uma casa onde as flores esperam
e os relógios param
por quem sabem 
ter sempre que chegar
 
só para que a casa seja casa
e se possa viver tudo devagar.
 
 
RM| XXVII-II-MMXVI 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Avô,

13.02.
 
Quero pedir-te uma coisa, Vovô.
 
Diz pequeno,
 
Olha pela Vovó, sim?
 
 
Hoje, Avô, fui lembrar-me de ti para ao pé de quem mais te amou.
 
[Parabéns!]
 
E falei de ti a tarde toda - as mãos sempre dadas com a esperança que só o teu nome acende.
 
A Avó riu muito - o coração dela vive do que deixaste nele, sabes?
 
[Obrigado]
 
Hoje, Avô, queria muito pedir-te uma coisa, não te importas?
 
Olha pela Milinha, sim?
 
 
Peço-te a ti que foste o maior coração de todos,
 
que foste a minha casa, a minha voz, o meu amigo
 
que não deixes que a nossa Milinha tenha pressa.
 
 
Hoje, Avô, não houve festa, nem mesa comprida, nem bolo,
 
mas, mesmo num hospital, eu, o A., os Pais e a Vovó estivemos contigo
 
[porque estivemos juntos]
 
 
Hoje, Avô, fizeste anos
 
e eu peço-te, a ti, que sempre quiseste mais para nós do que para ti
 
que o azul dos olhos da Vovó continue a ser o céu para onde te mudaste.
 
 
Faz, Avô, o que puderes,
 
só tu que sabes a falta que vocês me fazem.
 
[Obrigado]
 
 
Nós por cá, não te esquecemos  
 
E, agarrados à luz que acendeste nas nossas vidas,
 
Havemos de chegar juntos ao outro lado do escuro.
 
Um beijo,
 
R. 
 

sábado, 16 de janeiro de 2016

Avó,

Porque a Avó faz anos na Segunda,
 
Avó,
 
Pudessem os teus olhos ser palavras e escreveria com eles o meu nome
devagar, como a luz tenra que desce no espelho da tarde sobre o mar
 
Pudessem os teus olhos ser uma carta e haveria para tudo uma resposta
devagar, como a esperança a acender no fundo do escuro o caminho
 
Pudessem os teus olhos ser dois pássaros e seríamos os dois brisa ao poente
devagar, como se de nós e das flores tivesse que sobrar apenas o perfume
 
Podiam os teus olhos ter sido um rio, Avó
mas os rios partem, continuam e não olham para trás.
 
e tu ficas

(e eu fico, Milinha.)

e tu olhas para trás.

e, graças a ti, eu sempre encontro uma forma de chegar a casa.
 
Obrigado.
 
RM| XVI-I-MMXVI