Rewind

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

2019|

«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin


2019 não foi fácil. 

2019 foi o ano em que muitos mais anos morreram - o futuro, tal como sempre o quis, morreu ou esteve perto disso, muitas vezes. 

Comecei este ano a dizer adeus ao meu Padrinho - a maior prova que tenho de que a família é quem, como somos, nos reconhece sempre. 

Este foi também o ano do, 

O seu Pai talvez não passe da hora de almoço,

E essa frase ser, até agora, como um veneno no sangue, uma lembrança crua de que todo o amor é um sonho sobre o abismo, de que há, de uma hora para a outra, que não deixar que o sangue passe num coração que dói. 

Só me lembro de que era Verão - de que, entre as idas ao IPO, em 2019, não fui nadar uma única vez, não mergulhei no mar, não houve sal na minha pele - só nos meus olhos. 

Foi com o meu Pai que aprendi a nadar e, nesse Verão em que, até à hora do almoço, o meu Pai podia estar morto, eu só me lembrava, 

Rica, nada sempre paralelamente à costa. Tens mesmo que saber boiar. Todos os nadadores sabem boiar para descansarem,

E eu a ser, de repente, atirado para fora de pé. 

2019 foi, também, o ano em que o meu Pai se salvou e em que eu fui, muitas vezes também, salvo. 

Salvou-me o meu irmão, 

O Papá, se morrer, não conhece os netos, A., 

E, de repente, o meu irmão ter-se tornado o pai do meu pai - que medicação tomar, como falar com o médico, como mostrar os dentes quando é preciso, como saber tudo sobre terapias, estatísticas, taxas de sobrevivência do cancro do pulmão, efeitos secundários, vitaminas, suplementos alimentares, botijas de oxigénio e tudo quanto fez do Né, uma vez mais, o melhor de nós os dois. 

Há dois anos que o meu irmão me poupa e, há dois anos, que é ele o meu colete salva vidas. 

Salvou-me, igualmente, a nossa Gó com a luz do seu amor. Em Novembro de 2019, não a pudemos salvar nós.

2019 foi, por isso, o ano em que voltei a ir espreitar o recreio da creche, a passar em frente ao muro que resta do que foi, outrora, a minha escola primária, 

Meninos!

E saber, com uma certeza de granito, que ela é mais minha do que muita da minha família e que, graças a ela, conheci um bem que não cabe nas palavras deste mundo. 

2019 foi o ano em que os telefones que tocaram me assustaram sempre. 

Passei a adorar um dia absolutamente banal, 

Que se passou?,

Nada

Em 2019, não fui uma única vez ao teatro, não matei finos com amigos, em frente ao mar e disse que não a demasiadas coisas que queria muito ter feito. 

Salvaram-me os livros e os filmes, claro. 

E salvaram-me os outros - amigos que, sem o saberem, me relembraram de que não estava esquecido, colegas que me perguntavam, 

Doutor, está tudo bem?,

2019 foi, aliás, o ano em que senti que há gente demais a tratar-me assim - devo aceitar que cresci?

Doutor uma ova! O meu nome é Ricardo!,

Salvaram-me a minha Avó e a minha Mãe - tecto, chão e luz da minha casa. 

E salvou-me, também, a dor dos outros - 2019 foi o ano em que alguns colegas - detesto a palavra, porra. - quase partiram. Tudo correu bem e estivemos juntos num jantar de natal em que, em silêncio, só pedi que cá estivessem todos comigo para o ano. 

Outros, infelizmente, não viverão em 2020 - para esses, onde quer que estejam, um abraço apertado e deles, para sempre, a lembrança dos abraços que recebi. 

2019 foi um ano de novas amizades e de reencontros. 

Tenho esperança em 2020 e de que Alguém saiba o que faz. 

2019 foi um ano de boas conversas, mas, sobretudo, de melhores silêncios.

Fui sempre atento aos outros - gosto demasiado de observar os outros e, por isso, fixo-os como a verdadeira paisagem do mundo.

Há uns anos, por graça, quando me perguntaram,

Vícios?

eu respondi, 

Gente

Em caso de dúvida, pergunto sempre e espero a resposta, 

Está tudo bem?

Mas nunca está tudo bem, minha gente. 

Cuidem dos vossos e

lancem-se para fora de pé, se puderem. 

Quem nos ama, jamais nos deixará náufragos e sozinhos. 

Um abraço, 

- R. 

RM|XXIV-XII-MMXIX

domingo, 10 de novembro de 2019

Porque a Mãe faz anos,

Mamã, 

És o destinatário cimeiro a quem o meu coração estará, até ao fim, endereçado. 

É que ele, sabes, teima sempre em alcançar-te - mesmo tendo de engolir a distância, de fintar os infinitos desaires e encruzilhadas do caminho, ele irá, eu sei, ter que repousar junto de ti. 

Só tu me decifras - há, por dentro dos corredores dos meus ossos, divisões de que apenas tu tens a chave, locais secretos onde somente tu sabes onde guardo as sombras absolutamente precisadas da luz infinita do teu amor. 

Tu moras-me cá dentro - é ouvir-te a afinar-me as cordas no peito, a correr o veludo pesado da dúvida, a abrir as janelas por onde há de entrar o abraço da esperança e de onde se verão, certamente, no horizonte, as primeiras pinceladas de um futuro que só pode ser bom. 

Dizes-me que aprendi a ler e a escrever sozinho e muito cedo. Que foi com a nossa agenda telefónica - a capa de couro castanho - Telefones, gravado a dourado -, o papel amarelado, as vossas caligrafias que eu procurei imitar e cujo significado, depois de entendido, eu copiava com a minha letra de puto minúsculo com cerca de quatro anos.  

Estive com ela, hoje, na mão. Reparei que, já naquela altura, o meu interesse foi todo para os nomes dos nossos - "Mamã" e "Papá" - os Avós -, "Casa" - a nossa casa - e, logo hoje,"Glória - casa".

[Será este o sinal que te pedi, Gózinha? Estarás, finalmente, em casa?

Apeteceu-me tanto ligar-te, sabes?]

Percebi que aprendi a escrever com as letras com que se escreveu, afinal e toda a minha vida, o amor. Acho que isso explica parte do que sou - o amor existia e, havendo um número para onde ligar, eu estaria bem - poderia chamar-vos, poderia, como num búzio, ouvir-vos a voz e saber que viriam.

Mãe, foste tu quem me ensinou a conjugar o amor - és professora, é verdade, e isso terá ajudado. Mas, cá por casa, o amor, por tua causa, existe em tempos e modos que não pertencem ao mundo das regras gramaticais.

Entre nós, por exemplo, o presente é sempre mais-que-perfeito. O condicional é uma embalagem esquecida, nunca aberta numa prateleira qualquer e, sim, o futuro, a existir, só pode ser na primeira pessoa do plural - nós - nosso, portanto. 

Toda a vida, trocámos cartas - mesmo dentro da mesma casa, éramos o carteiro um do outro e, no fim de contas, do que precisava absolutamente de ser dito. 

Havemos de voltar ao Estio de cal branca de Lagos e da Meia Praia que foi nosso toda a vida. Sentados os dois, ver-te-ei puxar de um cigarro e, juntos, desfrutaremos da nudez transparente das nossas intenções e da segurança funda que as nossas raízes, entrelaçadas, têm junto do mar - do mar, sempre.

Todos os dias falamos, todos os dias, 

Amo-te muito,

Ninguém nos ama como tu e crê, malandra, que ninguém te ama tanto como eu e o Né. 

Serás sempre a razão porque nunca desistirei - a bóia de que todos os náufragos precisam e, infelizmente, nem todos têm. 

És o bem num grau superlativo e absoluto - nem o sintético, nem o analítico me chegam - estás para lá disso.  

Celebro a tua vida e agradeço-te por me teres dado não somente a minha vida - mas esta vida. 

Quem aprendeu a escrever, como eu, pelos vossos nomes e quis decorar-vos logo o número de telefone, é alguém com o coração endereçado. 

A vida tem-nos sido um bom carteiro. 

Tu nunca te atrasas, um minuto que seja, a receber o que te destinei. 

E a enviar resposta - sempre o que quero e, sobretudo, sempre o que preciso. 

Obrigado por este amor sem estrada que o canse, ou tempo que o esgote. 

Obrigado, todos os dias, meu amor. 

Parabéns!

Beijos mil, 

R.

RM|| X-XI-MMXIX

sábado, 9 de novembro de 2019

Gó,

Meu amor, 

Escrevo-te, hoje, como sempre, na língua que o meu coração fala. Escrevo-te, como reconhecerás, na língua que ele aprendeu também contigo. 

Falam-te, debaixo da minha pele, 32 anos inteiros da mais absoluta entrega, do mais puro dos encontros, de um caminho todo de verdade, de devoção e da luz de um amor que nasceu para ser eterno. 

Serás sempre o mais perto que estive, alguma vez, de Deus - pela tua mão, sob a atenção doce dos teus olhos, embalado pela doçura morna da tua voz, eu fui testemunha do milagre que nos contemplou quando nos escolheste, sempre que permaneceste, nos amparaste e salvaste. 

Por ti, eu quis sempre ser bom - pendurado nos teus ombros, agarrado ao teu pescoço ou aconchegado no teu colo, eu soube-te a minha casa. 

O melhor de mim, tantas vezes vem, até hoje, de ti - há uma vela que a tua presença sempre foi, um caminho que, apesar de tudo, sempre descobri - porque te tinha, porque estavas lá, porque tudo tinha volta - e as voltas, fossem quais fossem, eram um regresso a ti, ao teu cuidado extremo, ao teu sorriso como um abraço, à porta no trinco que foi o teu jeito de nos amares. 

Ainda há pouco, em Agosto, eu e o A., no IPO, 

A., que sentido é que isto faz? Achas que, ao menos Deus, nos poderá salvar?,
R.,vais ver, o bem manifesta-se sempre. Isto não pode acabar aqui.,

O teu Dedé, o meu Né, o meu irmão-fortaleza que, há quase dois anos, me ajuda a perceber que os filhos nunca se perdem dos pais, que só o amor nos pode, de facto, salvar e que, em silêncio, sem queixas, sem hesitar um segundo sequer, me tenta poupar de tudo quanto seja mais sofrimento, mais dor ou medo.

Bom aluno, o teu Dedé, o meu Né, Gózinha, meu amor. 

Nesse preciso momento, o telefone tocar - tinhas que ser tu, só podias ser tu - aí vinha a minha resposta, 

Menino, já soube do Papá. Como é que vocês estão?, 
Estamos para aqui, Gó. Olha, fazes mais uma coisa por nós?, 
Diga, menino, diga.,  
Pedes ao teu Deus que salve o nosso Pai? Dizes-lhe que ainda é cedo?, 
Oh menino, claro que sim, por vocês faço tudo. Sempre., 
Oh Gó, gosto tanto de ti, sabes? Nunca te esqueças disso. Estás sempre no meu coração.,
Os meninos também. Gosto muito de vocês, 

Naquele corredor estreito para um mar bravo de angústia eu, por momentos, achei que Alguém, por nós, tinha estado por detrás da impressionante coincidência em que as tuas palavras nos chegaram - como um bálsamo, como um agasalho que se veste, um antídoto contra a solidão incerta da dúvida e do desconhecido. 

Devo-te tanto - tu, os Avós e os Pais são, para mim e para o A., uma espécie de santíssima trindade em que a carne se coseu no espírito, tudo se pôde sempre enfrentar porque havia um lugar onde sempre nos esperavam. 

Parte de mim, vai contigo - eu sempre fui o dos dias até ontem - esse que, por entre os desafios à verdade da tua fé, sempre se sentiu inteiro por descobrir, em ti, tanto do que me faltava saber. 

Vou amar-te sempre, vou chamar-te sempre. 

Esta semana, voltaste a casa dos Avós. Pediste que te trouxessem, 

Quero ver a Senhora, 

E voltaste à nossa casa, ao teu quarto, à nossa sala - voltaste ao sítio onde foste feliz. 

Soube hoje que disseste,

Minha Senhora, é a última vez que subo estas escadas

Foi cedo, demasiado cedo. Os nossos vão sempre de véspera. 

Arranja forma de me dizeres onde estás e que estás bem. 

Quando chegar a minha hora, chama, 

Menino

Estaremos juntos. 
Eu terei voltado a casa. 

Obrigado por tudo, Gó. 

Todos os beijos, 

R. 

RM|| IX|XI|MMXIX

domingo, 25 de agosto de 2019

24.08| Avô,

Meu querido, 

Ficámos teus desde o primeiro dia. 

Guardo-te, até hoje, como uma prova de que o amor pode existir para lá de qualquer medida e que, uma vez acesos os corações por onde ele passa, nada há que possa, jamais, apagá-los. 

Foste tudo para a Mãe - foi em ti que ela sempre encontrou o que lhe faltava, foi dentro dos teus braços que o abrigo foi mais fundo, mais sincero e, mais do que tudo, incondicional. 

Por isso, meu querido, nunca estarão ditas sobre ti ou usadas para descrever o que nos foste, todas as palavras.

Volto ao teu jardim - sento-me contigo enquanto os teus dedos longos desenham a paisagem, teimo em não esquecer a tua voz e, mais do que tudo, corro sempre em direcção ao teu sorriso doce que, até hoje, me chama.

Fala-me das tuas viagens, pedia-te. 

E tu, feliz, recordavas essas outras latitudes, esses outros mundos que te fizeram maior do que quaisquer circunstâncias que te limitassem.

Era um gosto ver-te no jardim com a Mãe - as mãos sempre dadas e os sorrisos postos nas vossas caras como uma toalha encorrilhada de uma mesa em festa que ninguém quer que termine. 

Vocês esqueciam-se um com o outro do mundo - um com o outro estavam inteiros. 

A tua nobreza ia muito para lá do teu sangue - és a árvore mais perene do coração da minha Mãe e, graças ao bem que lhe deixas, há sempre um perfume doce quando ela te lembra. 

Dançavam nos bailes do Palace com essa certeza de que, vivessem vocês mil anos, ninguém vos levaria para longe um do outro. 

Fazes-nos muita falta. 

Fazem falta as árvores perenes na nossa vida. 

Por isso, voltaremos sempre ao teu jardim. 

Como te dissemos em pequeninos, sentados, eu e o A., no cadeirão de couro em frente à lareira, 

Nunca vamos deixar de tomar conta da Mamã, Vovô

Era isso que tu quererias, é isso que ela nos merece. 

Talvez casemos no Palace, quem sabe. 

A Mãe nunca mais teve noites de baile como essas.
 - ela continua à tua espera. 

Estarás lá connosco, isso é certo.

Eu e o A. a tentarmos que, no nosso abraço, a Mãe sinta que a luz do teu nome nunca se apagará. 

Obrigado. 

Parabéns! 

Um beijo, 

R. 

XXV-VIII-MMXIX

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Vovó,

Milinha, 

Há cartas que a vida nos deixa escritas nos exemplos que encontramos pelo caminho. 

Desde pequeno que vivo maravilhado com tudo o que te diga respeito - o amor começa, conforme já disse, com o espanto. 

Que era isso que tu trazias dentro de ti, isso que tu não conseguias deixar de dar, que vontade infinita de bem era essa - a que te fez, sempre e sempre, maior do que tudo?

És a mais perfeita das cartas - há em ti, até hoje, uma caligrafia segura e firme, conheces uma gramática em que se conjuga a luz e o amor como ninguém e és sabedora de um idioma desconhecido das pessoas comuns, dos que apenas existem, dos que olhando, nunca vêem realmente. 

Mais tarde, pude perceber que eras uma carta dirigida a mim - que raio teria eu para que, todos os dias da minha vida, eu sentisse que me procuravas, me desejavas futuro, que me escolhias e querias ficar?

Até hoje, por tudo isso, só quero merecer-te. 

Penso em ti cada vez que o meu coração se aperta e, tal como tu, acredito que o passado não pode ser esquecido. 

A brincar, como te disse outro dia, somos duas casas assombradas - o passado, para nós, é a morada de todas as nossas certezas, o tempo em que as horas nada eram senão alegria e esperança no ventre doce da felicidade. 

No meio do escuro, o meu coração alegra-se quando me pedes,

Posso dormir em tua casa hoje?,

Tu sabes que sim - que, como te prometi, quando quiseres fugimos os dois - voltamos à Aparecida do Avô António e da Avó Maria do Carmo, do Avô Arnaldo e da Avó Maria da Conceição - quero, já te disse, que mos desvendes. 

E tu levas-me, pela mão, ao tempo que veio antes de mim.

Falamos sobre tudo - há, minha Milinha, uma nudez cómoda entre nós.

Fico ainda mais feliz quando me dizes, 

Tu e o teu irmão são as únicas pessoas em quem confio.

Vou amar-te sempre, minha luz.

Abro com um espanto imenso, até hoje, a carta que o teu amor me deixa.

Que carteiro te enviou para nós? - outro dia, o A. chamou-te "o nosso pequeno milagre."

Tu perguntaste-me,

Estás triste, meu amor?

E eu respondi-te, 

Milinha, quem pode estar triste com uma Avó como tu?,

Abraçaste-me longamente 
- e eu sou daí. 

Como uma carta. 

Como alguém que, finalmente, chega onde é esperado. 

Obrigado por tudo, em todas vezes. 

Beijos mil, 

R. 

XXIII-VIII-MMXIX

domingo, 2 de junho de 2019

Aos 32 anos,

Aos 32 anos, sei que o tempo não se deve contar. 

Outro dia, disse à minha Avó, 

Há pessoas que posso amar uma vida toda. E uma vida inteira não me chegaria. 

E é isto - aos meus, àqueles que me receberam neste caminho da vida, que, todos os dias, me escolhem, a minha vida inteira nunca lhes chegará. 

Nesta data, mais do que tudo, celebro aquilo que nunca poderá ter fim - este puzzle de afecto, de verdade, de perdão em que, nenhum de nós, prescinde do outro, se esquece do outro, avança, enfim, sem olhar para trás - estamos todos?

Nunca gostei de viajar sozinho - e, bem vistas as coisas, fui sempre uma casa habitada. 

O seu domicílio fiscal, faz favor?, 

Entendessem as finanças de amor, responderia, 

A minha família

Facto é, que é a verdade. Se é um facto tributário ou não, isso é coisa que não cabe aqui. 

Celebro o milagre de, por eles, ter uma vontade infinita de que o bem aconteça - de que, mesmo errando, ser, para eles, tudo o que garanta que ficamos juntos, que nos encontramos, que nunca nos perderemos uns dos outros. 

Aos 32 anos, ainda não aprendi outro amor que não seja este - o de amar-ao-perto. 

A eles, por mais óculos que a oftalmologia invente, nunca gostarei de os ver ao longe. 

Todo o coração que ama, vê mal ao longe, está claro. 

Dizia que, por aqui, não se conta o tempo. 

Aos 32 anos, senti-me, já, várias vezes, eterno e julguei, outras tantas, que morreria se, por acaso, não encontrasse a minha casa e, nela, cada um destes pedaços de mim, no seu lugar. 

Por isso, que eles caibam sempre todos no abraço que lhes ofereço. 

Estamos todos?, pergunta o meu coração. 

Naquele momento, julgo-nos eternos. 

Aos que já cá não estão, não deixo nunca de os esperar. 

Haverá sempre um lugar na minha mesa para eles. 

Essa mesa sou eu. 

Há 32 anos, sentaram-se todos para nos receberem. 

Eu não direi nunca que a festa já acabou. 

Obrigado.

Um beijo, 

R. 

RM|II-VI-MMXIX

sábado, 4 de maio de 2019

mãe,

dizem-me que é próprio das mães ficarem com certos dias
a minha, pelo contrário, visita-me, antes, de noite
traz com ela o agasalho da pele, o amor que veda as torneiras onde pinga a tristeza
traz com ela toda a terra que prolonga as estradas e evita os abismos e as faltas
senta-se comigo no escuro fundo e mobilado apenas pelo abraço das nossas sombras
ambos a ouvirmos o mar no gira discos da praia ao fundo

podia, eu sei, dizer que a amo - e isso é verdade
mas isso só assim é uma frase muito curta, quase como um post-it 
e eu, pelo contrário, gosto de prolongar o amor em vez de dizê-lo: 
ter pressa em dizer que se ama esvazia o peito de ar
e um peito que ama, como um balão cheio, só quer o céu 

compro-lhe, antes, uma data de livros, 
dou-lhe a mão quando vamos no passeio, 
sei exactamente como gosta do café
e digo-lhe que as flores de todos os jardins são para ela 

isso é um amor que dura mais
que traz mais cola que um post-it -
as flores ainda lá que ninguém as arranca
[são da mãe]
e ambos a querermos somente
que não nos faltem ruas onde dar a mão 
vontade de um café numa esplanada qualquer
ou de trocarmos livros como quem sublinha no papel as saudades que trazemos

o sulco é fundo, mãe,

tenho saudades tuas

vem ver-me de noite
talvez não diga que te amo - mas isso é a verdade
a noite traz o mar no gira discos da praia ao fundo

a verdade não a quero gastar, sabes?

que o amor se prolongue 
que as flores existam 
e haja ruas e sempre as nossas mãos

que o amor, dizia-te, se prolongue
que como o gira discos que roda as ondas na praia onde te abraço
se ouça o silêncio encher-se de luz
e do que não tem ainda um nome que lhe baste


RM| IV-V-MMXIX

sábado, 23 de março de 2019

21.03| Avós,

Milinha e Bininho, 
meus queridos,

Dizem-me que foi um dia feliz. 

Tu e o Avô, aliás, sempre me falaram de amor - foi isso que vos juntou, foi isso que vos reconciliou, foi isso que, tantas vezes, vos salvou. 

73 anos depois, essa luz perdura - a força do vosso encontro, a verdade da vossa entrega, a intensidade com que se quiseram ilumina, ainda hoje, as sombras maiores e os abismos mais fundos.

Começa a primavera, pensei todo o dia. 

Nem todos, ainda assim, lançam à terra tamanha promessa e tão funda, anseiam, sequer, por essa coisa sem nome e sem medida que foi o amor que vocês fizeram acontecer diante dos meus olhos e que me infiltrou a pele como uma chuva de esperança e de orgulho. 

Ainda hoje, 

Porque sorri, menino?

E, toda a minha vida, dentro de mim, houve essa luz, uma fé indestrutível no elo que nos une. Por isso, por mais afiado que seja o gume do sofrimento, por mais densa que seja, por vezes, a névoa do desalento, eu reacendo o farol que é o nosso amor - há uma casa onde me quiseram, onde me amaram e, em mim, esse mapa é eterno. 

Eu sou daí - dessa primavera de 1946 que vos uniu e me trouxe, mais adiante, no leito dessa história. 

Também vos disse sempre e para sempre, 

Sim, aceito. - e amar-vos-ei por tudo o que foram e que eu, por mais que tente, nunca conseguirei igualar, retribuir ou merecer. 

A minha Avó diz-me, rindo-se,

Tu sabes os meus segredos todos

E, todas as vezes, decidimos os dois que esse dia pode ser também o de hoje - pode amar-se com a mesma ânsia de futuro, pode querer-se o outro como se tudo fosse ser eterno - e sou eu quem a leva pela mão ao altar da memória, sou eu quem lhe lembra que palavras lhe disseram o Avô António e a Avó Maria do Carmo, quem lhe aponta nas inúmeras fotografias todos os que são os nossos e que somos nós. 

Quando os Avós se mudaram para Paços, um ano depois, dizem-me que o Avô António foi visto a chorar quando os criados arrancaram com as coisas e os Avós se puseram ao caminho. 

Encontro-me com o meu bisavô nessas lágrimas - para quem ama os nossos como nós, é sempre primavera. E nunca, nunca, os nossos rebentos podem ir para longe de nós. 

Vocês, todavia, voltaram, toda a vida, a casa. 

A minha Avó sabe que eu e o A. decidimos ficar. De que serve um coração que não consegue consumar aquilo por que vive?

Há 73 anos, acendia-se uma luz - e eu comecei também aí. Volto a essa igreja inúmeras vezes, imagino a minha família espalhada por ali e orgulho-me do que os meus Avós fizeram nascer no coração um do outro. 

Essa Primavera teve mais força do que todas as outras - foi, no fim de contas, a que me permitiu uma felicidade sem tecto, a que me ilumina o olhar e me faz trazer um sorriso debaixo da pele. 

Porque sorri, menino?

Apanhavam-me imensas vezes imerso inteiro nas recordações de tudo quanto tive, quase como se, num salto de olhos fechados, eu mergulhasse de cabeça nos mares que sempre conheci.

Obrigado, Milinha e Bininho, por toda a luz do meu caminho.

Vocês são o meu farol.

Hoje começou mais uma primavera. 

Todos os dias, porém, eu escolho viver perto da árvore onde pertenço. 

Se o Avô António me visse, saberia que a ideia de não estarmos juntos também me tira o chão. 

Por isso, em todas e cada uma das vezes, eu voltarei sempre. 

Cá dentro, o menino guarda a centelha que lhe iluminou o caminho. 

Porque há uma casa

porque tem sempre que haver um regresso. 

Um beijo, 

R. 

RM|XXIII-III-MMXIX

sábado, 2 de março de 2019

06.03|Gó,

Minha Gó, 

Como te lembrarás, nas coisas do amor, eu tive sempre pressa. Hoje, vendo bem, o amor soou-me sempre à possibilidade de uma chegada ou de um encontro, a uma promessa que se cumpriria, a uma carta que viveria para nos ficar nos bolsos, depois de recebida, a vida inteira. 

Contigo, minha malandra, foi sempre assim - estás comigo desde que me lembro, houve, bem o sei, no tamanho generoso dos teus braços, uma casa que me serviu, todas as vezes,  no corpo. E, mais do que tudo, também tu me ensinaste o nome do que fica para lá das palavras ou, antes, sempre e sempre, além delas e do tempo. 

Fazes 81 anos e, enquanto vi o mar de fotografias em que a corrente da vida seguiu o seu caminho, reparo que nenhuma maré te levou jamais para longe de nós. 

Fomos todos tão mais felizes por tua causa, sabes?

Não vai haver nunca ninguém que me chame como tu, 

Menino

Ou que acenda velas porque eu e o A. tínhamos que ter sorte, tudo tinha que se compor, a felicidade tinha mesmo que acontecer. 

E nessas velas, digo-te, eu acreditei sempre - nunca deixei de sentir, até hoje, que há luzes que nunca se apagam. 

Um dia, 

Gó, porque usas tu aliança? Tu não és solteira? 
Casaste com Deus, foi?

Sim. Vê como o menino sabe?, 

Até aceito isso, menina! Casa-te com quem quiseres, desde que homem nenhum te leve daqui de casa, está bem?, 

Tu rias-te - eu, malandro, respirava de alívio por esse teu marido ausente te deixar andar pela nossa casa sem, aparentemente, se importar muito e isso, para mim, ser da máxima conveniência.

Hoje e, porque sei que talvez a ideia de casais a morarem em casas separadas fosse demasiado moderna para ti, percebo que Deus tenha morado sempre connosco na dádiva que foste para nós e em todo o bem que nos fizeste. 

Eu exclamava da mesa, 

Na minha casa, Gózinha, também não hei de impor sacramentos, sabes?, 

"Estapor-de-moço-dum-raio", que eu era, 

Quando morrer vou para o limbo, é, por não ser baptizado? Isso parece-me bem melhor do que ir para o meio de pessoas com asas e túnicas brancas ou para o inferno que não tem ar condicionado. E, sabes que mais, se eu for para o limbo, nunca mais nos encontramos, percebes? Tu vais de certeza para o Céu!, 

Lembro-me de, ao dizer isto, o coração me doer fundo. A ideia de nunca mais nos vermos atingiu-me como um raio. E disse, 

Tu vais lá buscar-me, não vais, Gó? Deus tem-te em boa conta e sabe que vou precisar sempre de ti!, 

E é isto - o amor como a promessa de um encontro, a vinda de alguém que nos resgata, que nos liberta, que nos alivia o coração. 

Um dia, vislumbrei em ti uma futura causídica digna de nota, 

Sr. Mesquita, nas coisas do amor ninguém manda! Eu gosto destes dois meninos mais do que tudo na vida! Para mim, ninguém se compara a eles, 

O meu Avô sorriu, acenou como quem concordava e, nesse dia, eu e o A. fundámos o clube-de-fãs-da-Gó-que-adora-os-gémeos-mais-do-que-ninguém-que-por-acaso-e-só-mesmo-por-acaso-são-eles-próprios.

Que bom que, às crianças, ninguém exige coerência.

O mais engraçado de tudo - ainda hoje, o clube está de saúde e, já agora, que nenhuma alminha peça, alguma vez, ao amor que seja coerente. 

Amor e coerência são um oxímoro, diz aqui o génio. 

Nunca quiseste comer connosco nas mesas das salas grandes. Ficavas sempre pela mesa da cozinha, apesar da insistência. 

Um dia em que estávamos só eu e tu, 

Ai é, não comes comigo na mesa da sala? Então espera lá que já vais ver. Vou eu ter contigo! Tu és católica, mas quando a montanha não vai a Maomé, filhinha, Maomé tem que ir à montanha!, 

E jantei contigo na cozinha com a felicidade imensa de estarmos juntos e isso me chegar. 

Vou amar-te enquanto viver - também eu aprendi que, para os que amo, nunca há um limbo. Só pode haver uma vida que os salve sempre, os encontre sempre, os eternize meus.

Oh Gó, sabes o que sou? Sou a criança mais feliz da rotunda!

Há felicidade na Praça da República ou noutro lugar qualquer. 

Basta que o meu coração receba uma carta que diga, 

Menino

que ninguém lhe ponha uma data

e a luz, nunca, nunca se apague. 

Um beijo do teu, 

R. 

RM| II-III-MMXIX