Rewind

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Dúvida

Morde-me em socos
Uma raiva súbita
De não haver no Mundo
Nada que seja certo
Dói-me que não haja na vida
Isso da vida sempre perto
Não me bastam as àrvores
E os caminhos sabidos
Quero sonhos despidos
Quero os dias perdidos
Não sei a quem peça
Que fiquem
Que fiquem de mim
Meus afectos
Só sei que os dias assim
São tão grandes desertos.
Ricardo Pinto Mesquita

Passos

Vejo-me há uns tempos
Passeando nas ruas do agora
Lembrando caras que vi
E deixei ir embora
Havia sombra e desgosto
Havia solidão e desalento
E eu seguia feliz
Seguro do meu próprio intento
Nas feridas que adivinhei naqueles peitos
Estava eu adiado
E hoje que me vejo nas ruas
Sou eu a isso condenado.
Ricardo Pinto Mesquita

Esquecimento

Pena de quem só ama e cuida
O que vê, o que está perto
Pena dos que dão passos para longe
E não as mãos
Quando o coração se estreita
Sob o peso de um corpo cansado
Pena de quem ergue paredes
Fecha portas e sobe muros
Para que fique de fora
A súplica, o pedido, a saudade
Cuidando que assim
Não mais existe quem sofre
Não mais se lembra o lamento
Não mais existe ninguém
Mas pena também
Ou talvez não
Que somente isso se possa apagar
Do fundo de uns olhos que já não veêm
Mas se não possa apagar também
A culpa, essa, que não esquece ninguém.


Ricardo Pinto Mesquita


Se um dia

Estivesses tu como estou
Faltasses tu à tua vida como eu
Pedisses tu como peço
Pelo que foi de mim
E estaria lá eu
Todo feito, de novo, esperança
Todo feito, de novo, defesa
Força, mão e corpo
Estivesses tu tão longe do que precisas
Como eu
E do longe pela minha mão
Se faria perto
Se te desabasse o mundo nas lágrimas
Secaria eu a tua dor com a areia da minha vida
Se um dia fores tu e a tua pele
Viagem que se fez sem ti
Estarei lá eu
Porque já terei estado assim
Mas eu não fujo dos meus
Como não fujo de mim.

Ricardo Pinto Mesquita

Vi no mar

Vi no mar uma raiva solitária
Escureceu-se-lhe o génio
E vieram as nuvens à sua mente
Enquanto bramia seus gritos de chofre nas rochas
Vi no mar a mesma revolta que a minha
Também em mim havia nuvens
Mas só as rochas as não havia
Vi no mar a mesma face de sempre
Reconheci-lhe o gesto magoado e cansado
E perdoei-lhe as ondas revoltas
Porque vi nele a mesma fenda que em mim
Uma dessas fendas que nos separa assim
Do Mundo que fica longe de nós
Quando o que esperavamos dele
Era a praia deserta onde
Depois dos gritos
Ficasse ela connosco nos braços abertos
Molhada das lágrimas nossas
Marcada da espuma da raiva
Que fez sua.

Ricardo Pinto Mesquita

Nas ruas

Conto à noite
Em segredo por essas ruas
O filme agora mudo da memória
Confio-lhes o manto de dúvida
E de cansaços
E nas janelas onde havia Sol
Nasce nas vidraças uma sombra opaca
Não assomam os rostos de outrora
Não há abrigo nem calma
E enganam-se meus passos
À procura do que já não há
Há o silêncio de portas fechadas e ruas estreitas
Onde não chega a luz
Como se só no escuro
Eu visse o que há de igual dentro de mim
Lugares onde não chega nada
Ruas onde só passo eu
Onde só passa do que fui
A sombra engolida pelas pedras da calçada.

Ricardo Pinto Mesquita

Parou

Parou-me a vida no tempo em que havia
Sonhos para sonhar
Parou-me a vida no tempo em que havia
Horas inteiras para arrasar
Parou-me a vida no tempo em que havia
Tanto de mim para dar
Parou-me a vida no tempo em que havia
Pedras nas estradas e lampiões no caminho
E a vontade de os chutar
Por saber que nesse tempo em que a vida parou
Não havia o medo de me perder
Por saber que mesmo perdido de mim
Que mesmo perdido do mundo
Haveria tua mão na minha
Segura em mim
Com o suor do encontro.

Ricardo Pinto Mesquita

Nas ondas

Olhei os fios de Sol no mar
E foi o teu sorriso que vi nascer da luz das ondas
Vi-te na pele nascer
O sulco da corrente e o salitre
Dar sabor ao teu corpo
Que imaginei deitado no embalo das ondas
Com o calor derretido do Sol no ventre
Imaginei-te um sono calmo
Um sono azul dourado
Com o embalo da ladaínha do vento
A arrepiar a candura terna da tua pele
Imaginei-te algas no cabelo
E o peito cheio de ar
Os olhos cerrados com aquela quase luz e sombra
Tão quieta e tão leve
Que te pedi na próxima onda
E vieste ao de leve, devagar
Passear teus cabelos no meu corpo
E deixar na minha alma para ficar
O recorte fino da areia molhada
Pelo teu doce balanço.

Ricardo Pinto Mesquita

Esperança

Tenho um mar de esperança no peito
Uma esperança que não confesso
E não conto nem navego
Que trago assim embrulhada no silêncio
Mas sinto-lhe os passos
Sinto-a a querer existir
Já amanhã fora de mim
Tenho um mar de esperança no peito
Mas dói-me o medo de que não chegue a ser minha
Que a maré me não traga da névoa
A luz do teu farol
O abrigo dos teus braços
Há no meu mar de esperança
Um regato de medo
Com passos de gigante
O medo de que não venhas na corrente
O medo de que o que venha
Seja a corrente que te levou de mim

Ricardo Pinto Mesquita

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Mar de vento

Lembras-te da areia que pisamos só os dois
E quando percorreste com a língua
O que restava da espuma no meu corpo
Lembras-te de como a minha alma
Se expandiu e se estendeu
Frente ao fogo aceso do teu olhar, no escuro
Lembras-te do vento que levantou o teu cabelo
Que segurei nas mãos como um mar de seda
Lembras-te do céu mais alto e mais fundo
Como a viela de onde me resgataste
Lembras-te das promessas que o meu coração ouviu
E fez rocha que o tempo não engole
Lembras-te da fé que puseste no milagre
De toda uma vida assim juntos
Até sermos todos do pó
Inteiros misturados no pó do caminho
No caminho onde o vento passa
E traz o cheiro a mar
E a memória dos passos que foram os nossos.

Ricardo Pinto Mesquita

Porque não?

Porque não me abres tu a porta
Para juntos esperarmos o dia
Nesse sono vazio de sonhos
Por já te ter ali na noite da vida.
Porque não me estendes tu a mão
Para comigo segurares o meu peso
O peso do silêncio que grita
Porque não apareces tu numa esquina
Para me ajudares a endireitar as dobras da vida
Porque não me lembras o nome
Por entre a saudade e procuras a minha voz
Porque não ocupas o silêncio
Ou sequer calas o ruído de memórias felizes
Porque não vens e prometes ficar
Ou não prometes e ficas
Depois de entrares pela porta que deixo aberta.
Abri uma janela para o vento levar a saudade
Abri mas ela não vai.
Abri mas ela não passa.

Ricardo Pinto Mesquita

Faz-me falta

Falta-me a tua mão
Faltam-me as tuas palavras
E a tua gargalhada para me rir
Quando só me apetece chorar
Falta-me a tua voz
Para de novo a guardar no peito
Falta-me o teu caminho para andar
Falta-me o sonho para ser luz na escuridão
Faltam-me os teus ouvidos
Para te falar do Mundo
Faltam-me os teus olhos
Para que vejas e me vejas
Quando me não vejo eu
Falta-me a tua lembrança a chamar por ti
E tu a vires
Falta minha certeza de ti
Para calar o mar da dúvida
Falta a carne para que o sonho continue
Falta tudo onde só cabe
A saudade
Que é um chão aberto
No tecto onde já estive e já cheguei.

Ricardo Pinto Mesquita

Os outros

Sei que os outros
Me são as perguntas
Com a resposta contrária
Sei que os outros
Me são o agir
Em caminhos que não são os meus
Sei que os outros
Me fizeram mais
Pelos passos nessas estradas
Sei que os outros
Me deram voz
Às palavras do que não aconteceu na minha vida
Mas vivi.
Sei que os outros me deram pele
Para nela se abrirem feridas
Que não eram minhas
Ou que deles as tomei
Para as fazer minhas
Sei que os outros me deram a vida
Para a agarrar nos abraços quentes
Sei que os outros me esvaziaram os sonhos
Por se fazerem reais.
Sei que os outros me deram vidas
Nas horas mortas em que me visitou
A saudade
Sei que os outros me roubaram a solidão segura
E se roubaram de mim
Para que ela voltasse.
Mas não mais fiquei sozinho
Em mim ficaram as cinzas do calor
E as marcas dos passos e do pó do caminho
Em minha pele se me gravaram os pleitos
E quando a solidão aperta
Faço meus esses caminhos
Que de novo abro e ressuscito
Na areia da memória
E sempre há a voz da vida que já foi
E que acaba chegando de mansinho.

Ricardo Pinto Mesquita
"De madrugada se parte dançando com o amigo maior cada um em seu lado da estrada poeirenta"
Mário Cláudio

Hallelujah by Jeff Buckley


Hallelujah - Rufus Wainwright

Tanto

Tanta vida se finge por cima da pele
Tanta coisa se diz por cima da voz
Tanta lágrima se abafa por baixo do riso
Tanto sonho se adia por baixo do que fica
Tanto pedir se finge por baixo do ter
Tanto depender se finge por baixo do ser livre
Tanto medo se cala por baixo da esperança
Tanto infinito se esconde por baixo das palavras
Tanta saudade se esconde por baixo do que se agarra
Tanto do que foi se cala por baixo do que é
Tanto do que queremos morre sob o que podemos
Tanto nos fica debaixo
Que é tão pouco nosso
Isso que vem, se vê e se vive
Como a um céu de que ninguém ainda
Tivesse avistado o fundo.

Ricardo Pinto Mesquita

Aflorem sorrisos

Porque não nascem flores mais alegres
E nos rostos se não desenham sorrisos mais soltos
Sem medo, sem nada, só o sorriso
E essa alegria solta
De haver flores mais alegres
E sorrisos mais soltos
Que brotam como flores na face
Numa face de repente mais alegre e mais solta
Com a leveza infinita
De pétalas com som de vida.

Ricardo Pinto Mesquita

Onde quer que estejas

Onde quer que te encontres
Serão teus meus pensamentos
Onde quer que te encontres
Serão tuas minhas preces
Onde quer que te encontres
Serão tuas minhas palavras meigas
Onde quer que te encontres
Serão teus meus braços
Onde quer que te encontres
Será tua minha companhia
Onde quer que te encontres
Serão teus meus abraços
Onde quer que te encontres
Será tua minha lembrança
E onde quer que me encontre
De meu tenho a voz que me conta
Que há uma saudade que se agiganta
Pelas palavras que seriam tuas
E que não ouço.

Ricardo Pinto Mesquita

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A melhor mensagem de Natal*

" E às vezes, sabe, era a gente dar uma música ou uma carta... e ficava tudo bem".

Este foi o desabafo do Senhor Antunes quando me levou ontem ao Edifício onde vivem os boletins, as declarações e os impressos de letra pequenina e traiçoeira.
Na verdade, eu não sei se o taxista se chamava Senhor Antunes, mas aquele ar bonacheirão pediu-me que o baptizasse assim.

" - A senhora é a última passageira do meu ano. - disse o A.

- (eu, que ainda fico meio atordoada com o "senhora", e colada na papelada que tinha entre mãos para entregar numa qualquer Segurança Social da cidade, devo ter dado uma semi-resposta diplomática)

- (Num desprezo total pela minha preocupação com a papelada da Segurança Social) : `tá um frio do raio, não `tá?

- (achei impossível oferecer resistência àquele espontâneo "frio do raio"): É verdade. Olhe que comprava esta cidade por mais quente do que é na realidade.

Note-se que eu estava literalmente a referir-me aos graus térmicos. A minha vontade de saltar por cima dos carros e aterrar directamente no destino, seguida da vontade de saltar as filas da Segurança Social , impedia-me de qualquer raciocínio metafórico que procurasse aludir à "falta de aconchego" da cidade Lisboeta. Eu não estava nem aí, Senhor Antunes.

Mas o taxista, habituado a ouvir dizer mal da hostilidade dos seus conterrâneos, achou que sim, que eu tinha acabado de lançar a bela da metáfora. Posto isto, começou a discursar com a volúpia que lhe era possível ter no trajecto congestionado de véspera de Natal que nos acompanhava até à Avenida da República.

Expirou a saudade da filha que estava na Suiça, e da família da Beira Alta.
Falou não sei quê da perda, da solidão da casa, da companhia do carro.
Da nostalgia de quando jogava futebol nas ruas do Bairro da Graça, que à data não eram atravessadas por eléctricos.
Da Lisboa que está cada vez mais bonita, só que é feita de gente que vai e vem e não deixa raízes, "daí o sentimento da falta de proximidade reinante, de que muitos turistas e emigrantes se queixam".
Da vontade de brincar com os netos sem lhes dar brinquedos.
Do aperto por saber que dois grandes amigos seus não se falam há mais de dez anos..."os amigos com que jogava "o futebol do Bairro da Graça". Um que é guarda redes, o outro que era avançado.

"Agora, os dois à defesa"... - pensei eu, finalmente envolvida na empreitada das metáforas.

- "Uma estupidez, menina (num tão curto trajecto, eu passei felizmente de senhora a menina enquanto o diabo esfrega um olho)...
Andam praí na casmurrice do vira-a-cara e desta vida só vão levar a casmurrice.
Palermas um bocado como esta gente toda que anda histérica de centro comercial em centro comercial porque ainda faz falta comprar o milésimo jogo de computador para o décimo sobrinho. E é assim, minha senhora (nem faço comentários a esta inesperada mudança de tratamento).
E às vezes, sabe, era a gente dar uma música ou uma carta... e ficava tudo bem".


Por isso, meus muito queridos amigos, acho que está perfeitamente ao meu alcance concretizar esta tão sábia "antunice".
Aqui fica a carta. E aqui segue
a música com que acordei no dia de hoje.
É o meu presente de Natal... "para que fique tudo bem".

Um grande beijinho da amiga

Joana Trigueiros Reis


*Obrigado Joana

Aquém

Porque chamam pelo Mundo
Todos e cada um dos meus poros?
Porque me anseiam as veias
Por um absoluto que as revolva?
Porque procuram a sombra
Meus passos neste caminho?
Porque me sonha a alma
Um horizonte mais largo?
Porque sempre me quer o fogo
Para me consumir
Enquanto se consome?
Porque me não basta o chão
Se não vejo o ar?
Porque me deram fome
E me ensinaram o infinito?
Porque me deram o tempo
E me ensinaram o sempre?
Porque me deram o egoísmo
E me ensinaram a saudade?
Porque me deram pele
E ela não me chega com o meu nome?
Porque me ensinaram o silêncio
E o calaram as vozes?
Porque me deram mãos vazias
Mas lhes deram fundo?
Porque me disseram que nos serviria
Isto de sermos só nós
E tudo o que sei
É que tenho apenas parte
E que tudo o que quero é o que me falta
Como se quisesse o sonho
Em vez da vida
Porque é vida
Esse tudo onde nunca estou
Mas onde sempre me ponho.

Ricardo Pinto Mesquita

Por ti

Apaguei teus fogos
Para queimar minha pele
Bebi tuas lágrimas
Para matar minha sede
Acalmei tuas iras
Para derrubar o mundo
Iluminei as tuas sombras
Para alcançar meu caminho
Despi tuas roupas
Para vestir-me da vida
Guardei a tua gargalhada
Para calar o silêncio
Roubei os teus sonhos
Para me sentir na carne que era a minha
Compus a tua alma nas minhas mãos
Para agarrar o chão
Li-te as palavras cansadas
E vergou-se-me o sonho
Senti-te as mágoas
E ergui-te nos braços
Fiz os dias mais longos
Para uma vida demasiado curta
E não cabia em toda uma vida
O desejo de que me durasses no peito
Fiz maior o sonho
Fi-lo maior do que eu
Para que pelo menos o sonho meu
Tivesse todo o tamanho que é teu.

Ricardo Pinto Mesquita




Misread by Kings of Convenience

If you wanna be my friend
You want us to get along
Please do not expect me to
Wrap it up and keep it there
The observation I am doing could
Easily be understood
As cynical demeanour
But one of us misread...
And what do you know
It happened again


A friend is not a means
You utilize to get somewhere
Somehow I didn't noticefriendship is an end
What do you know
It happened again

How come no-one told me
All throughout history
The loneliest people
Were the ones who always spoke the truth
The ones who made a difference
By withstanding the indifference
I guess it's up to me now
Should I take that risk or just smile?

What do you know
It happened again
What do you know











Misread - Kings Of Convenience

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Singularmente plurais

Tenho percebido que a vida do português é muito singular. Sim senhor, singular, assim sem mais. E literalmente também. Vivemos no país em que se tem "um sapato bonito"; em que se oferece à canalha um "calção" que é um máximo; um país que usa "cueca" tanga, segundo se consta pois então. Somos o país (pobres do escoceses) em que os homens, e muito bem, usam sempre uma "calça" que deixa ver o "boxer", embora isto já não esteja tão bem, se calhar.
Há nos portugueses males da vista com cada vez mais frequência e então o português adorna agora a sua figura com o belo do "óculo", a dar ares de quem pelo menos já (parece) saber ler na diagonal - magistral arte que se diz remonta ao tempo em que, coitados, não tínhamos tempo de ler na horizontal para expulsar essa cambada funesta dos árabes. É o que se diz, não sei.
Portugal é o país onde mulheres se reúnem histéricas em torno do "grupinho de fãs do pé de gesso", tudo para que o homem que é o seu e das suas vidas para sempre (enquanto dure) continue a calçar a bela da "meia" bráánca. E para que tudo fique a fazer um pandam bonito de se ver e que pareça bem, há que calçar aos estupores que Deus, apesar de não constar que tenha participado no acto, se diz ter posto no Mundo com o belo do "téni" Nikes, igualmente bránco.
Os Portugueses andam com fome, é o que é. E devoram os "s" como se não houvesse amanhã (e se calhar não há que isto está só para quem pode e só Deus (mais uma vez) é que sabe). Mas o que reparei com uma curiosidade maior é que os Portugueses comem sem mastigar, engolem a bela da letra, assim "zás" sem pensar (pois) e depois ruminam e regurgitam-nas uns momentos depois.
Repare-se nos moçoilos que tentam apanhar o autocarro a arfar, prestes a morrer precocemente de uma apoplexia debaixo do peso bruto de quase seiscentos quilos de manuais escolares (terão um óptimo curriculum, se sobreviverem. Há riscos que valem a pena, certo?) que, como dizia, correm, correm em cima dos Nikes bráncos e acabam por ver a merda do veículo levar-lhes a esperança e o resto do ar, assim sem qualquer misericórdia ou piedade.
Eis que se ouve logo um coleguinha a gritar a plenos pulmões (cheiinhos de nicotina que a gerinha num tolera aqui tonos da merda): "Ei, oh Balter já fostessssssssssssssss!" E ei-lo aqui. O "s" ingerido horas e dias antes, no acolhedor ambiente da família em que muito assim se cunbersa, vomitado assim como na maior das verborreias.
E é isso: os portugueses fazem a digestão do Mundo através da bela da língua que nos calhou na sina.
O Balter tem uma casa e uma família, sim, aquela que atrás dissemos que muito cunbersa enquanto digere, o Mundo e a refeiçom, e todos eles se juntam a assistir ao espectáculo triste daquilo a que num tempo muito distante, se diz ter chamado telejornal. O pai de "óculo", a mãe que calçou o belo do "chinelo" para onde lhe fugiu o pé (e não só) e o Balter no máximo da partilha e da troca de experiências.
Eis que a mánhe solta do mais fundo que há em si (e a senhora parece de todas as vezes e a cada troada cada vez mais funda): "Bistéis aquilo? O gaijo está-se a cagar pró segredo de justiça." Note-se que talvez nenhum dos três tenha verdadeiramente percebido qual era o segredo que essa tal de Justiça tinha e porque é que o homem barrigudo de fato se estava a "cagar" para ele, segundo se tinha "escuitado".
A mánhe do Bálter diz que tinha ideia de ter ouvido falar de uma mulher meia tolinha e ceguinha, coitada, que andava com uma balança sempre na mão. Mas támenhe já ninguém a bia e sabia dela há muito". Se a mãe do Balter escrevesse ou pudesse escrever o que diz aposto que morfava, passo a expressão, ali o "h" também. Há muitos assim. (Eu não como. Não me apetece um "h" e já lá vai o tempo da sopinha de letras.)
As notícias continuam. O Balter hoje fez merda da grossa la na "iscola". (Como narrador estou só a citar, perdoem-me a rudeza do palavreado)
Sim, o Balter tinha esbofeteado a professora, vulgo " a Belha do ca...." depois dela coitada lhe ter pedido para se calar. ( É assim eu aqui, como narrador, se calhar não muito bom, tenho para mim que ela lhe devia ter dito para "fechar a matraca", "calar o bico" e afins do mesmo calibre, e tenho a certeza que o jovem pupilo de 22 anos e no quinto ano (diz que agora não se chumba) ia certamente perceber que a querida da "belha" só queria que ele mantivesse os lábios semi-cerrados durante o tempo lectivo. Devia ter ido para professor, é o que é. Toda a gente diz que tenho "jeito" que, em Portugal é ter tudo, mesmo que não se saiba o que se tem.)
Como dizia, o Balter mandou "ganda galheta à Profe" e como se não bastasse "amandou-lhe cua mesa à tromba, bem no meio daquela fronha que parece papel amarrotado" (O narrador pede que se registe que está condoído e desiste do sonho de ser professor, dizendo que o melhor mesmo é aprender ele a fechar o bico).
E a mánhe só diz: "O que é que fizestessssssssssss, Balter Joshua?" "Porque é que batessesssss no raio da mulher, ca..........lho?" (Ora bem, cá está a bela da progenitora às tantas não tão pedagógica como a "Belha", mas seguramente mais persuasiva no auge do seu "mostrar como é que é." Que pena que não lhe demonstrou como é que tudo devia ter sido desde início.)
"- Óh mánhe ela mandou-me amostrar o têpêcê e eu num tinha percebido nada e num fiz e a culpa é dela que num sabe eixplicare... óh mánhe é berdade, juro. Oilha tu aichas que eu te minto?"
E a mãe depois de ter espetado duas lambadas na cara da cria quase obesa mas sempre mórbida, teve um súbito achaque e aliou-se no complot contra a "Belha". (Cá para mim a mãe não sabia o que era isso do "têpêcê" e deve ter achado demais para o seu queridinho. Diz que se falou em processo contra a professora e que umas psicólogas "quaisqueres" juraram que era verdade que o menino iria sofrer de "stress pós-traumático". A mãe não percebeu nada, mas eram médicas e estavam do lado do golias do filhote e isso "chigava".)
Com tudo isto que se contou (esquecendo o pé de gesso, literalmente, da professora) fiquei a pensar que, a propósito da digestão que alguns de nós fazem ao falar, é mesmo preciso ter estômago. Ou quatro estômagos, assim no plural, como as vacas. Desta maneira sempre se compreende muita coisa. Ou nada, que talvez seja melhor.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Leaves

Fosse a minha saudade
As folhas que o vento leva e arranca
E seriam teus todos os passos
Dos que pisam e passam
E não sabem
Que o que fica
É tudo que já foi
Como as folhas
Pequenas e mudas
Debaixo do peso no Mundo.
Ricardo Pinto Mesquita


domingo, 14 de dezembro de 2008

Maybe tomorrow- Stereophonics


Maybe Tomorrow - Stereophonics

Houve um tempo

Houve um tempo de ruas largas
Dos passos leves sem memórias amargas
Houve um tempo de céu ameno
De palavras com falar sereno
Houve um tempo da felicidade absoluta
De firme vontade e resoluta
Houve um tempo de corpo inteiro
Sem nada que falasse primeiro
Houve um tempo de lágrimas felizes
O tempo do Sol e das suas matizes
Houve um tempo de segredos revelados
E de olhares assim guardados
Houve um tempo de dor embalada
E de mágoa assim apagada
Houve um tempo de voz aquecida
De uma felicidade assim prometida
Houve um tempo de feridas abertas
De falhas assim cobertas
Houve um tempo de juras imortais
De gestos e conversas banais
Houve um tempo de sorrisos fundos
Em que eram meus todos os segundos
Houve um tempo de vida que nascia
E de dor que assim fugia
Houve um tempo de fome engolida
E de sede assim sacudida
Houve um tempo de noites quentes
E de corpos nela dormentes
Houve um tempo de trânsito na cidade
E de sonhos sem idade
Houve um tempo de um mar de saudade
Seco à mão de uma verdade

Há o tempo mas vem só
E tudo o que vem do que foi
É memória feita pó.

Ricardo Pinto Mesquita

Os outros somos nós

Quanto cabe do contrário do que queremos na nossa Vida pelo amor que temos aos outros? Pergunto-me até onde irá a nossa capacidade de deixar de sentir a Vida como nossa se não assumirmos como nossos, por momentos e sempre que preciso, os caminhos de outros.
Quando gostamos e para nosso infortúnio (ou não) as pessoas nos roubam a identidade e forjam em nós partes delas que se misturam com os nossos tecidos, não havendo rejeição, até onde vai a nossa capacidade de cumprirmos essa nossa parte? Essa parte que é darmos de nós para nos termos; essa parte que é correr riscos pelos outros na nossa pele, como nossos.
E quanto aceitamos do contrário do que merecemos, quanto aceitamos do injusto e do doloroso porque justamente tudo se reconduz a esse grande manto suavizante do Amor?
Quanto em nós aceitamos que se perca para ganharmos? E serena e convictamente aceitarmos as perdas como um nada perante a vitória mais absoluta dos outros dentro de nós.
Deixar entrar gente na nossa Vida é aceitar lutas que não são nossas e vestir-lhes a pele. Na verdade, quanto da vida dos outros nos sabe e nos falta como a nossa? Quanto da sua dor nos dói como ferrões bem no fundo? Quanto da sua alegria nos contagia ao ponto de não sermos alegres pelos outros, mas alegres nós mesmos - como se nascesse cá de dentro e não fosse aqui posto, por contágio.
Quanta distância toleramos sem que sintamos que parte de nós se nos evadiu?
Quantas excepções admitimos às nossas regras para fazermos todos os dias o amor à medida de alguém, para que sempre se ache envolvido na mais absoluta das protecções?
Quanto dos nossos sonhos deixamos que sejam passos dos outros no nosso escuro?
Quanto dos outros precisamos para nos sentirmos inteiros?
Quanto do Mundo se diminui e se concentra na face daqueles que amamos?
Quanto de nós deixa de ser nosso para que sejamos mais?
Quanto é que somos?
Quanto é que queremos ser?
Quero ser eu. Com os outros, sempre. E por sê-los, ser-me sempre mais.

Tento-me

Tentei despir o teu corpo do meu
Tentei descolar a tua saliva do meu suor
Tentei ficar só eu
Com a imagem minha de mim
Tentei vestir-me de novo
Só de mim
E ter os meus olhos de novo
Só para mim
E ter as minhas mãos de novo
Só de mim
Tentei arrancar a memória doce
Que era a da minha pele
Só de ti
Tentei salvar-me de ti
Só para mim
Tentei apagar a luz
Do teu quarto dentro de mim
E tê-lo
Só para mim
Tentei desfazer os lençóis com o um mar de cheiro
Só de ti
Tentei tudo
Só por mim
Tentei-me depois de ti
Só depois percebi que
Depois de me tentar contigo
Tudo o que fica de meu é a minha tentativa
De mim
Depois de ti.

Ricardo Pinto Mesquita

Nonsense jurídico

Ocorreu-me pensar numa novela para jovens juristas chamada: "Revel way."

Quid Iuris?

"Os preconceitos tiram-nos algum trabalho?"

Outro dia em conversa, uma amiga disse-me "Meu querido, os preconceitos tiram-nos algum trabalho." Fiquei a pensar naquilo. Asseguro-vos que a amiga não é uma indigente, tão pouco alguém a quem o mundo por ser diferente faça espécie. Salva a reputação do elemento que me é tão caro, seguiu-se uma série de pensamentos não muito esclarecedores acerca de tão lapidar juízo.
Dei comigo a pensar que, sim, talvez os preconceitos sejam uma forma de defesa. Uma forma gregária e primitiva de chegar ao real. Normalmente assenta na falta de conhecimento, mas o pensamento humano é mesmo assim - poucas vezes se detém na substância e agarra-se à forma como uma aparência certa daquilo que vai encontrar.
E tiram-nos o trabalho. Talvez. Mas o que nos roubam mais? O que é que fica perdido e esmagado debaixo desses menires portentosos que são o conhecimento e a certeza antes deles mesmos?
Estranho como fica de fora deles toda a individualidade, toda a singela surpresa e revelação da diferença, do que aconteceu de forma diferente. Mas o preconceito aparece sempre. É uma tristeza, mas lá vem ele a dar-nos a certeza orgulhosa e cega de que acabamos de detectar um elemento de uma praga, um alvo a abater e que alinhamos pelo lado correcto.
Talvez isto nos venha de eras de conflitos. De o ser humano querer sentir que o que escolhe está certo e que sem essa certeza, deixa de ser e passa a ser humano, só.
Vai demorar a superaração destes traumas - todos estamos traumatizados pela inferioridade de uma qualquer outra facção. E o preconceito faz melhorar o Mundo? Não sei. Com isto de querermos esmagar o outro, esse tal que nos parece (mas é) um alvo a abater, não estamos senão a encostar-nos a matilha que nos cobre as costas, ao maralhal de gente que parece (e é) como nós.
Também nos metemos em trabalhos graças aos preconceitos - um trabalho inglório de criar linhas intransponíveis para agarrar uma certeza estéril de verdade.
No fundo, nem aqueles a que nos encostamos conhecemos. Apenas nos parecem "cá dos nossos" e com base nesse companheirismo do parecer vamos sendo e sabendo ser cada vez menos.
Por isso, é assim meus caros, quando sentirem que o preconceito apareceu sem ser convidado ( é um diabo de um penetra) digam-lhe assim: "Pára aí meu menino!" E conheçam. Abandonem a matilha dos instintos e a segurança podre. E talvez se venham a meter em trabalhos. Sim, mas os trabalhos com outros são sempre melhores do que uma solidão triste, estéril e pobre.
O preconceito acontece-me infinitas vezes. Não devo ter um ar ameaçador é o que é, e o gajo lá aparece sempre sem ser convidado. Mas não o alimento. E ele parte a descobrir outros terrenos para prosperar.
E sempre que me meti em trabalhos preferi-os porque eram trabalhos comigo mesmo. O trabalho de conhecer, de dar um passo à frente. E hoje estou mais no meio de outros "conceitos" do que na turba a que instintivamente julgava pertencer.
Acontecem-me os trabalhos. Mas é um trabalho bem melhor o dos "pós-conceitos", esse que nos faz perceber que forma a mais só deforma.

Quando a vida não nos serve

Há dias em que a vida não nos serve. Sim, há dias que não têm o nosso tamanho. As horas sabem a mais um passo a caminho do que se perdeu. Há horas mortas. Horas que passam por nós e onde apenas pomos um silêncio quieto e surdo de incompletude.
A vida pode ficar-nos aquém da vontade, do sonho, dos desejos mais convictos. Se tanto dela não depender de nós. Ainda estou para perceber se as coisas duram mais se nelas pusermos um desejo com mais força. Ou se são essas as coisas a primeiro desabar sob o peso desse querer como um tiro no escuro.
Esses sonhos a que emprestamos a certeza e a carne são a nossa mão no escuro, a força motriz que nos faz atravessar pântanos de incerteza e jogos arriscados. Acontece que não a queremos de volta - a toda a certza que emprestamos ao nosso sonho com alguém, queremos que fique ali apenas à espera que os dias lhe cheguem connosco neles.
Não sei se acredito com força demais. Ou se espero que os dias sejam mesmo aquilo que pus neles e, quando isso não acontece, tenho apenas uma outra versão da vida que não tive tempo de aprender a amar; que não alimentei e fiz minha. Porque isso me acontece fora das minhas mãos.
Mais uma vez são as mãos de outros a mexer cá dentro. Sinto-lhes as mãos, já sem corpo, a despedaçar um sonho. E aí a Vida não nos serve. Fica pequenina como aquelas roupas que já não servem e se dão aos irmãos mais novos.
Tanto nosso já foi dos outros. E sobretudo o que não foi na nossa vida é deles. Desses que nos levam o sonho e deixam a ausência maior do que eles.
Há dias que não nos servem. Nesses dias, a mão vai no bolso. Com a manga curta que já não serve. E a mão apertada, a lembrar uma segurança que já não há.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Colors


Colors - Amos Lee

Um solitário

Conheci gente solitária. Gente que não partilhava o ar. Que o sugava inteiro para dentro dos seus pulmões. E o ar entrava e saía sem nenhum sobressalto, sem reavivar nada. Que felicidade, pensavam eles. O podermos segurar só o que é nosso, com o ar a passar sem se prender nas arestas dos sentimentos e sem ter que alimentar nada que não sejamos nós.
Gente segura, como rochas. Gente que dorme à noite sem a alma presa a alguém que se perde nas vielas azedas do Mundo. Gente que não carrega o peso de outros corpos. Corpos, que diabo, cansam-se, vacilam e apodrecem.
Gente contente e orgulhosa. Gente sempre una, sem divisão.
Gente que não almoça senão comida e que deixa na beira do prato os desgostos e as desgraças alheias.
Verdadeiras fortalezas. Não há vento dos afectos, nem o mar da discórdia.
Conheci gente solitária. E dividi com elas o meu ar. O meu ar prendeu-se nas rochas dos meus sentimentos por elas. Almocei-lhes o cansaço e deitei-lhes o corpo na minha casa, onde entram todos os ventos e há um mar que sempre encontra a sua praia. Não dormi pensando onde andariam os seus passos pequeninos e incertos.
Dividi-me em infinitas partes até minha ser só a milésima parte de mim. A solidão do outro lado da muralha dessas pessoas foi a única coisa que não entrou comigo. Porque sempre lá esteve. Esse fantasma maior que tudo, do tamanho de tudo.
E senti-me feliz. Nunca se deixa de ser verdadeiramente solitário. Feliz por ter mais uma vida na minha.
Dar o amor, assim sem mais como a mão que se estende sem que demos conta.
Dei e acreditei com a mesma força leve.
Espero pelo reencontro.
Há agora distância. Mas antes de partir olhei para trás e os olhos estavam húmidos.
E eis que a solidão não é mais o que nunca se teve mas a ausência do que já foi nosso.
Até um dia. (que vai chegar.)

Gostamos pelo que esperamos?

Não sei se gostamos das pessoas pelo que podemos esperar delas. Se com tudo o que vamos juntando delas em nós, o que fazemos é roubar os dias ao amanhã e imaginá-los cheios de coisas que são a nossa certeza sonhada acerca dos outros. Amamos também pelo que ainda não foi. Conscientes de que não podemos controlar o que nos acontece, os arbítrios da vida, vamos imaginando o nosso futuro um pouco menos incerto pela luz da esperança que temos nos outros.
Gostamos pelo heroísmo que lhes imaginamos, pelo amor quase incondicional que as fará dividir connosco o peso de certos dias. Imaginamos um carinho a nascer desse sítio onde nasceu o amor por nós. Gostamos porque as imaginamos a vestir-nos a pele e a saberem o quão são importantes para nós.
E quando isso não acontece? Talvez reste só o medo por detrás do cortinado espesso do resto dos dias. E toda a esperança se converta num estilhaço cruel do que não foi.
O ficarmos sós com esse sonho adiado e o mundo a doer custa muito. Custa não termos curtas-metragens de sol no nevoeiro da vida. Custa que ninguém nos rasgue a dor sem pedir e contarie o absoluto do sofrimento que nos aperta o peito.
Custa coleccionar os dias com espaços vazios que pertenceriam aos existires de outros. Porque amamos pelo futuro? Porque queremos a segurança do presente em todos os dias do resto do tempo? Porque é que o futuro quando acontece sem isso parece uma vida pela metade?
Talvez não devesse haver o céu lá no alto e o horizonte tão largo. E aí talvez não nascessem desejos de superação, talvez não me acontecesse a esperança.
A esperança quero-a por entre os medos. Para me encher esse grande vazio de incerteza. E faço-a de tudo o que se me infiltra, aqui se instala e prospera. Daquilo que me levam a acreditar que existe; do Sol que me levaram a acreditar nasceria da vontade de que houvesse luz. Mesmo quando eu não tivesse força para o desejar.
Vivemos a esperar a vida perdida? Vivemos de passar por cima dos sonhos e tantas vezes ignorar o que sonhamos como se fosse já carne?
Como superar o vazio que afinal foi tudo o que se concretizou?
Não sei. Aos sonhos que não se concretizam, guardo-os.
Como promessas que os outros me fizeram e em que acreditei. Promessas que talvez vivam agora da minha voz que as repisa e as ressuscita. Mas promessas.
E continuarei a imaginar a minha vida cheia da vida dos outros. E eu a viver inúmeros existires e vidas que o meu corpo assume como meus. E enquanto promessas se vão fazendo, é a vida que se cumpre e que é tudo o que temos. Como essa promessa que se cumpre todos os dias, enquanto se acredita.

As tuas palavras

As tuas palavras foram beijos.
As tuas palavras foram suor e sangue.
Foram força e alegria.
Foram memórias felizes, como vidas que se repetem com um prazer renovado.
Foram noite e deserto.
Foram roubo e esbulho.
Foram dor e luta; choque e saudade.
As tuas palavras foram silêncio e a vertigem alucinante de um urro bem fundo.
As tuas palavras foram arrepios que deslizaram nas minhas costas; foram a saliva que puseste no meu corpo.
As tuas palavras foram dádivas e o absoluto; foram apoio e abrigo, segurança e orgulho.
As tuas palavras foram música e reencontro e despedida.
Foram curvas na alma e pedras da calçada.
Foram água morna e gelo que rasgou as entranhas.
Foram segredos quentes no meu ouvido e festas mornas na minha face.
Foram vazio cheio de saudade e medo.
Foram viagens na noite e sono prolongado no colo dos dias.
Foram dentro e o mais fundo.
Foram abraço da vida contra a morte e uma ausência bem maior do que ela. A ausência de te perder, quando ainda te posso ter.
Foram desaire e ciúme e posse.
Foram carinho e ódio.
Foram mãos que quiseram agarrar o mundo.
Foram tentativa e frustração.
Foram choro contido e chama no peito.
Foram o mais perfeito dos luares e a mais altiva das ondas de prata.
Foram votos e promessas. Comida na mesa e a mais quente das camas.
Foram carne e espírito e a linha que os coseu.
Foram pesadelo e amargura. Foram leveza e ferro nos ossos. Foram expectativa e evocação.
Foram eu e tu e todas as vidas que nos cabiam na pele.
Foram nus e vestires transparentes, como a um véu.
Foram segredos desvendados e calados contra os olhos do Mundo.
Foram roda-viva e prisão.
Foram regatos e lodo.
Foram verde e gaivotas e o som delas nas conchas.
Foram estórias nas veias e tempestades no copo com os teus lábios lá marcados.
Foram páginas arrancadas e as que ficam com o pó do tenpo.
Foram o incontido e o desmesurado;
Foram a audácia e a comodidade
Foram partida e o que fica dela
Foram o fumo dos comboios nas gares
Foram aroma e o meu cheiro sem o teu
Foram os bancos vazios e estares sempre comigo
Foram tudo o que soubeste dizer por mim
Foram caligrafia falada
Foram refazer e desfazer
Foram perguntas e resposta
Foram nojo e repulsa e cansaço
Foram uma prisão em liberdade
Foram vielas e avenidas
Foram marcas e cicatrizes, chagas e rasgos fundos
Foram vapor de água que se infiltra
Foram cura e o fim do pranto
Foram refúgio e porta aberta
Foram telhados e janelas
Foram cantiga de embalar
Foram toque de anjo e garra
Foram rumores de folhas no caminho
Foram o lume aceso
Foram pedido e súplica
Foram orgulho cego
Foram partilha imensa
Foram pedras no bolso
Foram humildade e azar
Foram gargalhada imortal
Foram braços abertos
Foram religião, fé cega e ateísmo
Foram lágrimas de sangue
Foram pisares e repisares
Foram Sol e Lua
Foram naufrágio e salvação
Foram o bafo quente do Estio
Foram conspiração e tramóia
Foram ventos no peito
Foram horas sem tempo
Foram entrega
Foram desejo lançado às paredes
Foram dores que escorreram nas fachadas
Foram exílio e liberdade
Foram juventude e velhice
Foram branco caiado e negro escuro
Foram bofetadas e distâncias teimosas
Foram alucinação e tédio
Foram vozes de outros e solidão forçada
Foram espartilho e nudez revelada
Foram cegueira surda e as visões mais perfeitas
Foram passos e pontapés
Foram fendas e estilhaços
Foram guerras e cruzadas e a derrota mais humilhante
Foram perdão e remorso
Foram linhas da vida mais longas
Foram asfixia e o mais forte dos vendavais
Foram luzes no caminho
Foram estrelas e nuvens de algodão doce
Foram borracha no asfalto e o amarelo dos semáforos
Foram erva e montanhas
Foram lixo que se guardou
Foram baús e caixas de surpresas
Foram a tua boca desenhada
Foram um dedo apontado
Foram muros de desgosto
Foram portas entreabertas
Foram letras de um epitáfio
Foram ciprestes e margaridas
Foram luz e sombra
Foram belas e monstros
Foram língua e mãos
Foram amor ao contrário
Foram apostas e jogo
Foram risco e miséria
Foram noites ao relento
Foram companhia e cárcere
Foram discos gastos a lembrar acrobacias de corpos que já não há
Foram cartas não enviadas
Foram voltas ao Mundo sem sair de dentro
Foram fruto e flor
Foram apesares e porques
Foram chão e céu
Foram espasmos incontidos
Foram estrelas cadentes metidas no bolso
Foram azul roubado ao céu
Foram banhos de luar
Foram expiação e catárse
Foram bordados na minha pele
Foram rendas no meu cabelo
Foram rocha gasta
Foram tudo
Foram tudo e infinito
Foram tudo e nada
São memória do que fui
Contigo
E mais ninguém.
Ricardo Pinto Mesquita

A Gente vai continuar


A Gente Vai Continuar - Jorge Palma

Terra dos sonhos


Terra Dos Sonhos - Jorge Palma

Sonhos

Hoje à noite irei ter contigo aos teus sonhos. Vou decorá-los e fazê-los meus para que sejamos dois a querê-los com a manhã.

Terror de te amar

Terror de te amar num sitio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de Mello Breyner Andresen