Rewind

quarta-feira, 21 de abril de 2010

mistral.

O dia em que conheceu mistral chega-lhe à memória vestido de acaso - um acaso feliz, pensava ele. Recordava simplesmente a forma como as palavras, de repente, assim soltas contra um céu que entardecia, pareciam ocupar os lugares que um e outro sempre queriam ter tido para elas.

De mistral sempre lhe chega um sorriso - como uma janela muito aberta sobre uma paisagem onde o mar exista ou se ouça. Chegam-lhe a palavras escritas onde ele ausculta sempre a voz do primeiro dia - aquela que ele viu servir no espaço que queria para ela.

Mistral era um cenário calmo - os seus gestos sempre gravando linhas serenas. Mas em mistral morava um grito apaixonado que ela gostava de ouvir, sob o silêncio. Aprendera a observar-lhe o olhar - nele morava o brilho dessa paixão; nele morava todo o não dito, todo o vivido e guardado que ela punha dentro do peito para se defender da vida.

Encontravam-se muitas vezes em jardins - para verem a luz derreter-se no rio, ali ao fundo. E ele levava-a depois até casa. E as palavras que traziam nos bolsos, escondidas na baínha da pele junto ao corpo, apareciam. Ele via-os sempre parados junto a um muro velho - os livros em sacos como diários; como promessas que a faziam acreditar que no mundo algo ainda se cumpria.

Mistral mora hoje no coração de outra cidade - esse muro velho já não o visita tantas vezes. Mas para ele, quando a distância volta a uni-los nas suas pontas, esse muro lembra-lhe tudo o que mistral é - um longo fim de tarde com livros, palavras e o corpo a servir-nos.

Com ela aprendera o que o silêncio pode ser; que a distância pode não significar nada. Mistral veste as pessoas que ama com o silêncio e sorri - e quando sorri acende-se-lhe o olhar que lhe ilumina o rosto. E nessa luz vemos as palavras com que ela nos escreveu para nos guardar contra o tempo. Mistral grava-nos na pedra. Nessa vontade de pedra que tem de que fiquemos - como uma linha maravilhosa que envelhece no corpo de uma página de um livro qualquer.

E quando haja tristeza no olhar de mistral - ela regressa às palavras para as vestir de luz, de saudade e para que essa luz nos fique sempre a iluminar o gesto e o caminho. Mas não as diz - escreve-as, sozinha, na valsa de uma música em frente da janela da casa de onde se vê a cidade, mais calma ali.

Ela chama-nos com a caneta - chama-nos com as palavras. Para dizer aquilo que não esquece e que mora nos seus olhos - para que todos os dias sejam os dias de sol do minho em que avô chegue para ser o chão da vida dela. Mistral ama pelas palavras que não diz. Mas o seu amor mora na luz que acende na vida dos outros - assim serena e oblíqua para nos chegar aos cantos da vida - como uma janela em dia de sol.

Um dia de sol que esmorece junto a um muro de pedra - para que todos os dias sejam dias em que alguém faz o camnho connosco e nos leva até casa. Porque o coração da cidade onde mistral mora é, afinal, naquele que nos mora no peito.






"Dai-me Senhor, a perseverança das ondas do mar, que fazem de cada recuo um ponto de partida para um novo avanço" gabriela mistral.








domingo, 18 de abril de 2010

avó.

Volto com a imagem do sol a morrer no fundo azul dos teus olhos. Lembro-te o corpo quieto junto ao meu. A Gó por perto como o nosso amparo de sempre. O meu irmão connosco e o tempo a parecer vestir de novo um corpo leve - como uma janela com uma luz tão grande que varresse do chão qualquer sombra. Reparo nas tuas mãos e nas dobras que a pele tem ao longo dos teus dedos longos e finos e tento adivinhar que palavras o tempo nelas escreveu. Imagino que elas falam do amor: dessa matéria enorme, ruidosa, serena, espaçosa que ele é - o caminho da nossa pele que eles tantas vezes percorreram; as falhas que eles tentaram corrigir, o impacto de tantas dores que eles tentaram amortecer.
Falamos do avô. E noto que a saudade nos embacia a todos o olhar. Fizeste anos de casada no dia em que a Primavera começa.
Entretanto escondo o medo num sítio onde o não vejas. Encho de força um abraço como se isso fosse ser sempre o teu lugar para mim. Queria o tempo como esse ente ausente que te permitia ser toda minha. Hoje ele vem connosco e sou eu que o trago comigo.
Foi bom esse fim de tarde. Passo as minhas mãos nas tuas e prendo os meus dedos até os nós ficarem brancos da força que faço para que fiques. Reparo que os meus dedos começam a ter pequenas linhas, traços finos que serpenteiam os ossos. Eles falam do amor que te guardo. Levo-te para vermos os pássaros, como fazias comigo em pequeno. E ficamos a admirar as flores do jardim nas árvores que abrigaram a tua infância.
Tenho medo. Esse medo que não se confessa. Medo de que a Primavera chegue e as flores venham com ela mas não haja o brilho dos teus olhos como o mais perfeito dos mares onde o calor das tardes se apaga.
Vejo que a Gó e o meu irmão estão por ali. Como o tempo nos engradeceu os corpos. E, de repente, vejo que tudo mudou. Os corpos pesam. E nas histórias que nos contam vejo nas vossas palavras o que os meus olhos viram, em tempos. E fico a saber que as nossas vidas ficarão unidas.
Os vossos sorrisos temperam tudo. E enquanto o sol se põe com o som dos pássaros e as flores perfumadas no jardim há o calor que nunca desaparece. O das palavras. E o do amor que nos temos. Esse ficará guardado nas linhas que temos nas mãos. Que nos lembrarão a todos de cada um dos outros. Como se sempre houvesse Primavera e a casa se abrisse em festa - no dia em que fazes anos de casada. E todos os dias fossem dias para celebrar o amor.