Rewind

sábado, 30 de setembro de 2017

Carolina,

lembro-me de um corredor que era o de uma faculdade,

uma colega minha com quem, sem saber já bem porquê, comecei a falar.

até hoje, o som imenso da voz da Carolina - há pessoas que dão às palavras raízes mais fundas, dizem-nas com tal convicção que o sonho parece poder começar logo ali - e a Carolina é assim.

escrevo, hoje, a saber exactamente porque devo falar-lhe - devo-lhe, sem que se calhar ela o saiba, o que ela me ensinou todo este tempo.

há poucos que amem como a Carolina ama - a mãe, o pai, o irmão, o Rui, o Afonsinho, os gatos, a profissão, os amigos - e menos há, ainda, quem tenha na verdade desse amor uma alegria tão luminosa e uma gratidão tamanha. 

falo da Carolina com a falta de palavras que só existe quando as pessoas de quem queremos falar estão para lá de qualquer medida, de um círculo fechado, de uma linha que pare e as fixe no tempo. 

sei, porque a conheço, que a Carolina me vai continuar a surpreender - um telefonema que se prolonga, o conforto de uma mão que se estende, a ajuda que se tem sem se pedir. 

e a fé da Carolina - a cada soluço, a cada partida, a cada improviso que a vida lhe impõe, há sempre a luz que ela arranja forma de acender - pelos outros, primeiro e sempre, para que se não percam e depois por ela para que saibam como continuar - juntos, sempre. 

lembro-me de uma conversa que começou nos tempos da faculdade e dura até hoje - acho mesmo que a vida, por algum motivo, nos faz desatar o nó do silêncio para que a infinita alegria de certas entregas nos possa acontecer. 

por tudo, Carolina, obrigado. 

o sorriso da tua mãe naquele dia de romaria na Senhora da Aparecida - a alegria com que lhe pude ver o orgulho em ti estampado no rosto - vocês, as vossas mãos dadas e essa cumplicidade sem nome que vos levará para sempre juntas.

lembro-me da Carolina, da família dela, do orgulho que tenho no caminho que esta minha amiga fez e volto aos corredores da faculdade para agradecer a sorte deste encontro. 

C., o teu coração é como a casa que, finalmente, arranjaste - um lugar onde, seja de que maneira for, caberão sempre todos, se agarrarão sempre todos neste salto sem rede que é a vida. 

da Carolina e do seu coração sei que quem entra dificilmente sai. 

gosta-se de ficar na casa que é o coração da Carolina - uma porta sempre aberta, sempre o conforto de um abraço sincero, uma gargalhada doce e a luz de uma fé que é um esteio no meio dos desaires do mundo. 

querida Carolina, obrigado. 

o amor é uma casa que tem a medida dos que queremos por perto. 

por isso, na casa que é o coração da Carolina, haverá sempre a mãe dela. 

a voz imensa da Carolina que dirá ao Afonsinho, 

esta é a Avó, Afonso, 

ela acenderá a luz pelos que ama

e o sonho começará ali. 

RM| XXX-IX-MMXVII

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

mãe,

isto de ser voz tudo o que te guarda - 
os livros, os discos que me deste, as cartas, 
e poder neles ouvir-se do teu amor sempre a toada firme
quase como se o princípio de um abraço pudesse sempre começar
e no chão apontasse o pó o caminho para casa

isto de te ouvir passear dentro de mim - 
eu, a casa onde tu decidiste que havia de morar o amor
e, desde então, essa ferida que ajudas a curar sempre que as coisas me doem 
que o tempo não chega ou não existem palavras para calar-me as perguntas

chegas tu, mamã, 

arrumas-me o peito - com jeito, como num livro que conheces de cor -
abres a página certa, reabres as janelas, o ar fresco entra como se, de repente, se pudesse começar de novo, 
e eu, ao som da mesma música, descubro que se pode amar outras coisas, aprender outros nomes, 
dançar com outros corpos uma felicidade desconhecida

é isso, minha querida, 

decidiste, no momento em os nossos dedos se ataram, que eu havia de conhecer o amor. 

por isso, minha malandra, 

obrigado

fizeste de mim, ainda assim, uma casa grande - as divisões cheias de rumores de gente que, algures, deixei entrar; as gavetas repletas do cheiro dos enganos do mundo, restos de sonho, cartas que não enviei ou que ainda esperam, de alguém, a resposta merecida - e ser isso tudo, mesmo assim, o lugar onde persiste tanta coisa boa - o ter-se tentado, o ter-se errado, o ter-se emendado, a tempo, o que quisemos, sem dúvida, que permanecesse. 

ensinaste-me, mãe, o amor - o convidarmos alguém a pisar-nos o soalho dos ossos; o dizermos a alguém, com vontade, onde se esconde a chave do nosso coração e deixar tudo isso entrar. 

mas, mãe, as casas grandes desarrumam-se, às vezes, 

sabes, o correio não traz todas as respostas, 
as janelas precisam de quem as abra, 
e as gavetas de quem, finalmente, as feche

por isso, mãe, diz-me que, se eu precisar, tu vens e arrumas-me,

não me importo que os teus pés pequenos me pisem o soalho dos ossos, 
que as janelas se abram e se desenhem na parede, sob a luz da tarde, pegadas do tempo que passa
isso e que ponhas a tocar a música de sempre - 

gasta, repetida, decorada, ridícula - nossa. 

vem e fica. 

as mães ensinam aos filhos o que é o amor e só elas, que os conhecem como a uma casa, sabem onde se esconde, sob a pele deles, a chave suplente que lhes abre, de novo, o coração. 

Obrigado. 

RM| IV-IX-MMVII