Rewind

quinta-feira, 19 de março de 2020

06.03| Gó,

Gó, 

Se estivesses aqui quase posso adivinhar-te as palavras, 

Menino, que é essa tristeza que traz?, 

Eu provavelmente não te diria nada, os meus braços que se ancorariam na praia generosa dos teus ombros e assim ficariam até que o mundo doesse um pouco menos. 

Demorei-te nas palavras, meu amor, não foi? Tu saberás que só não quero chegar às palavras que pronunciem ou insinuem, de forma alguma, a tua ausência, que te desdigam, que te ultrapassem, que te façam menos minha e menos perene. 

A tua morte impôs-me ao coração uma quarentena, minha malandra, foi o que foi - os caminhos, outrora tão fáceis, tão planos e serenos são, nesta hora, uma geografia desabrigada, ventosa e sombria. Havia, sei bem, na palma da tua mão a bússola que sempre me apontou o caminho certo, havia no bolso da bata do teu uniforme as chaves de nossa casa. Por tua causa, nunca me perdi. 

E, sabes, os corações em quarentena ocupam-se, muitas vezes, a recordar. E eu recordei-te - nos álbuns que, um depois do outro, não resisti em ver e rever, fui encontrar-te sorridente - a nossa felicidade iluminava-te o rosto inteiro e, tu, com esse teu coração capaz de um amor que dicionário algum jamais alcançará, agradecias ao teu Deus a bênção que os outros recebiam. 

Só porque os outros éramos nós - os teus, os teus meninos. 

Acho que nos cozinhaste a vida de uma forma incomparável - amor com fartura, açúcar em doses generosas, paciência infinita, compreensão e afecto que não encontro em nenhuma mercearia e um toque que era só teu e que levaste contigo. 

Tu, sim, tinhas mão na receita da minha vida, sabes? Foste tu, em parte, obreira daquilo em que me tornei e, por ti, tinha sempre vontade de ser bom. 

O teu menino, um herege não baptizado desde a primeira hora, testava-te, testava a solidez da tua fé, 

Gó, detesto aquela parte em que esta brigada de papa-hóstias me quer beijar. Tens a certeza de que estas bélhas - assim mesmo, bélhas -  puseram cola que chegue nas placas? Achas que elas fazem ideia do que significa "hosana nas alturas"? É que as caras delas dizem-me mesmo que não!

Olha lá e que é isto de se pagarem missas? Estás tolinha, por acaso? O dinheiro não te custa a ganhar? Não sei se sabes mas o Vaticano tem um banco! Um banco, Gó!, 

Achas que devo continuar a estudar para lá da quarta classe? É que a Nossa Senhora só  dá em aparecer a pastores e assim não vou poder chegar a vê-la! E achas mesmo que a Irmã Lúcia sabia guardar segredos? Ela devia confiar pouco nos seus instintos, senão não se enclausurava num convento, não te parece?,

Sabes que a Lei do Protocolo de Estado foi revista e, finalmente, os teus amiguinhos de batina não terão mais lugar de destaque em cerimónias de Estado, não sabes?,

Eu fui essa pessoinha - sim, esse fedelho e jovem insuportável que, no fundo, tudo o que queria era que o mundo não te doesse e que, apesar de tudo, nenhum mal te pudesse levar para longe de mim. 

Fui também a criança que, ao ver na televisão as velas acesas, em vários 13 de maio, se emocionava quando sabia que, algures naquela multidão, estarias tu e a tua vela "acesa por causa dos meninos." 

Ainda agora, aqui, tu a dizeres-me, 

Menino, é a porca da vida!, 

E eu a rir-me e a achar que o Coppola se esqueceu de ti e do teu potencial para integrares um filme dele. 

Tenho saudades tuas todos os dias. E precisava que tu, tão mais sabedora que eu nos mistérios insondáveis da fé, estivesses cá só para o caso de termos todos que voltar ao IPO onde, da última vez, a tua voz nos emprestou o ar que nos faltava para crermos que o meu Pai iria sair, daquela vez, de lá. 

Tal como nos tempos da escola, preciso da tua mão-bússola para encontrar o caminho para casa. Tal como nos tempos da escola preciso de te contar que, desta vez, as lições são mais duras de aprender e que, sim, talvez precisasse de uma cunha tua com o vizinho do andar de cima. 

Foi a primeira vez que não te dei os parabéns, foi a primeira vez em que, sentado na minha cama, olhei para o telefone e não pude ligar-te e ir a correr ter contigo. 

82 anos, menina!, diria, 

Aos poucos, Gózinha, tento furar a quarentena. 

Aos poucos, tento relembrar-me da receita com que só tu nos compunhas as vidas. 

Aos poucos, por ti, lembro-me de que ingredientes quiseste que o meu coração sempre tivesse. 

Tu foste "a padroeira da minha vida!", como te dizia a rir-me. 

Não entendo muito da tua religião, sabes? 

Mas, no coração, sei o suficiente para reconhecer que a luz do milagre que tu és acenderá o escuro de todas as minhas noites. 

Tu celebravas o 13 de maio.

Eu, em todos os 06 de março, acenderei uma vela.

Gó!, 

Diga menino, diga! 

e tudo ficará, finalmente, bem. 

Parabéns!

Um beijo, 

- R. 

RM|XIX-III-MMXX

domingo, 23 de fevereiro de 2020

13.02| Avô,

Meu querido, 

Este ano demorei, não foi? 

Sei que, mesmo assim, tu ouvirás que sempre te chamo. Trago, Vô, os bolsos atolados de coisas que só te queria dizer a ti e, os meus olhos, no deserto de certas horas, sonham uma porta por onde me venhas buscar, 

Pequeno, vem cá

E haver um banco de um jardim qualquer onde nos sentássemos os dois - acho que ia querer fumar um cigarro contigo - eu a pedir-te alguma esperança emprestada. 

Não irias emprestar-ma, meu velho, irias dar-ma, eu sei - o teu coração que foi sempre a mais completa, inteira e generosa das promessas que a minha vida teve. E tem, até hoje. 

Pergunto-me, muitas vezes, se me reconhecerias - o mesmo neto que se abriga, até agora, na certeza do teu amor. Gosto de acreditar que sim e que me reencontro contigo nos rituais que cumpro para lembrar o mundo do teu nome.

Cá de dentro, deste lugar onde a vista para ti é privilegiada, continua a ver-se tudo, continua a mesa posta, continua a conhecer-se o caminho para o verde da Aparecida, continua a colheita do que vem do chão que tu seguraste para e por nós - a estrada, eu sei, a apontar o futuro. 

E a tua mestria em derrotares o medo, 

Pequeno, ou matas o medo, ou o medo mata-te a ti!

Mas, Vô, o medo veio depois - nessa altura, não o conhecia, sabes? Nesses anos de luz acesa, de janelas escancaradas, de horas soalheiras, de terraços para correr, de partidas de dominó e gargalhadas fáceis, eu, ao teu lado, nada temia. 

Uso-te, ainda assim, orgulhosamente como um triunfo definitivo sobre o mal do mundo - nunca deixarás de ser meu e de serem minhas e por minha causa tantas das coisas que, até agora, me aquecem os ossos, me apontam o caminho e me amanhecem a tristeza mais funda.

Vales-me a vida toda - por ti, valeu a pena ter vivido - para te abraçar e poder demorar-me, para descobrir que língua falam os corações como o teu - uma língua sem tamanho, repleta de tanta coisa sem nome, um mar infinito de bondade que vem, sobretudo nas horas densas da noite, trazer-me o eco doce da tua voz. 

Lembro-te cada vez mais, meu querido. Quanto mais conheço do mundo, aliás, mais sinto ser impossível consentir, alguma vez, na tua ausência.

Pega na carta que te escrevi e que levaste contigo, para esse lado, há 20 anos. 

Mudou a caligrafia, Vô, e agora há mais medo. 

Pede que te deixem vir ter comigo para um abraço e um cigarro. 

Abraçar-te seria toda a esperança de que preciso. 

20 anos depois, apenas os meus braços seriam maiores que os teus. 

O teu coração, para sempre, o maior que conheci. 

Obrigado por tudo. 

Um beijo, 

- R. 

Parabéns! 

RM| XXIII-II-MMXX

sábado, 18 de janeiro de 2020

18.01|PELOS TEUS 96 ANOS,

Vóvó,

Milinha, meu amor, 

Corria o ano de 1924 e, neste dia, há 96 anos, sei que foste esperada com um abraço. 

Houve uma infância dourada em que recebias convites das amigas para irem tomar chá e baptizarem as bonecas, houve pele e verdade suficientes para que não amares os teus fosse uma impossibilidade absoluta. 

Anos mais tarde, em junho de 1987, dar-se-ia o nosso encontro. Disseram-me que o teu coração tremeu com o medo de que os teus gémeos - prematuros - não vingassem. 

Quando, em pequeno, me contaram isto disse-te, 

Milinha, por isso é que vou cuidar do teu coração a vida toda!

Ver-te feliz com os teus olhos azuis-abrigo acesos de alegria foi, em todas as horas, a minha vontade mais funda. 

Estavámos em 1998 e o país ardia com o primeiro referendo à IVG. Eu, na altura com onze anos e, em boa verdade, já avesso à neutralidade, quis pôr o assunto em cima da mesa. 

Era um dia quente - jantava-se no terraço, 

Então meus amigos, já decidiram como vão votar? Eu ainda não posso fazê-lo, por isso, façam-no bem, faz favor. 

E expus o meu ponto de vista - pessoalmente, se soubesse que seria Pai, quereria conhecer os meus filhos. E disse mais - ninguém é a favor do aborto. Mas não podiam continuar a condenar mulheres como se queimassem bruxas.

O A. estava comigo e os Pais e vocês ouviam atentamente.

Até que eu lancei para o ar, 

E o que sabemos nós verdadeiramente das vidas dos outros?

Defendia que se acabasse com a hipocrisia que, como sempre sucede, vitimava mais as mulheres pobres - essas que não sabiam onde ficava Londres e as clínicas onde os mais hipócritas de todos emendavam as "asneiras". 

Falámos todos muito, nessa noite - tu, o Avô e os Pais concordaram comigo e com A. 

Anos mais tarde, em 2007, fomos votar cedo. 

Cruzei-me contigo e disse-te, 

Diz que sim, não é, Milinha?, piscando-te o olho,  

Aquela conversa sempre na minha cabeça e o fim da hipocrisia que, em família, escolhíamos. 

Outra conversa, também no terraço, 

Vovó, Vovô, no vosso tempo, que métodos contraceptivos usavam?,

O Avô muito prontamente explicou-me e, em jeito de brincadeira, atirou, 

Nunca confies nesse engodo das temperaturas! Dá asneira!

E eu, 

Oh Vô, se calhar vocês aqueceram foi demais!

Todos se riram. 

Hoje, eu com 32 anos, tu com 96, o Avô que faria 100 este ano e esta conversa não ter tempo. Vocês foram sempre o futuro. 

Uma vez disse-te, 

Vó, nem parece que nasceste em 1924!, 

Pequeno, nós não somos do tempo em que nascemos, devemos ser do tempo em que vivemos

O amor começa, como sempre digo, com o espanto.

Não estava condenado a amá-los - amo-os porque não há outra coisa que me mereçam. Mais - o meu amor não será nunca retribuição suficiente para o milagre que foi o chão do meu caminho. 

Não acredito no amor sem carne - devo ter quase deslocado, umas quinhentas vezes, no mínimo, as clavículas dos que amo. Se é para abraçar, seguro-os inteiros. Toda a vida, eu a dizer, 

A ternura dói!

Eu tenho os olhos nas mãos, está visto. 

A minha Avó ria-se imenso das minhas investidas junto da nossa Gó, 

Oh Gó, mas porque é que os pobres não se zangam mais? Se não fosses católica, eras mais refilona, sabes?, 

Oh menino, o menino não sabe que os santos foram pessoas como nós? Que a vida deles nos pode servir de exemplo?, 

Olha, já sei qual seria - Maria Madalena! Essa, ao menos, segundo consta, teve direito a algum regabofe antes de ser santa!, 

Tive sempre uma gratidão imensa pela liberdade com que me educaram - quanto mais livre me deixavam ser, mais refém ficava de tudo isto. 

É com a liberdade que se prende para sempre e em definitivo. 

Diz a nossa Agustina que toda a família é uma forma de sequestro. Eu, até hoje, sofro de Síndrome de Estocolmo, coitadinho. E pior, desejo ardentemente que se esqueçam de nós para aqui - todos juntos, todos mais livres para voarmos porque o chão é de uma pedra que não quebra. 

Outro dia, 

Olhe, doutor, quando a sua Avó morrer, vai-me deixar saudades, diz-me a funcionária que lá temos agora. Depois da Gó, essa uma de nós, serão todas só isso. 

[Wrong choice of words, pá, pensei]

Devo ter fulminado a criatura quinhentas vezes, enquanto, por cima do ombro dela, intuí que a minha Avó poderia ter ouvido a pérola. 

Apresso-me a sentar-me junto dela, 

Já viste esta, Milinha? Está cheia de pressa para receber o último salário que levará desta casa, ao falar assim de ti. Nem para ela é boa, coitada!

A minha Avó aperta-me a mão no sofá, sorrindo.

Amparo a minha Avó e, com isso, amparo a minha vida.

Tiro o meu fio de prata - o meu "guizo" - como lhe chama o meu irmão. 

E digo à minha Avó que aquela corrente somos nós - a cruz que a minha Mãe me deu, a cruz que ela me deu, a medalha que foi do irmão mais velho dela e uma medalha da Senhora do Carmo que comprei, num dia 30 de agosto, só para dizer à minha Avó que a mãe dela, Maria do Carmo, não estava esquecida. Ela que faria anos nesse dia. 

O fio dá-me sorte, como eles me deram.

Em pequeno pedi à minha Avó, 

Fala-me do mal

O que o meu coração queria saber era como se supera o lixo do mundo, como se emendam os erros, como nos salvamos nós, apesar de tudo. 

Aprendi a viver mas, também, a sofrer com a minha Avó.

Ao ouvir, muito cedo, das falhas do mundo, preparei-me para elas. E descobri que o amor salva. Aliás, que só o amor salva. 

A minha Avó salva-me todos os dias,

Pequeno, só quero que um dia um neto teu te ame como só tu me amas. 

Toda a vida me perguntaram, 

De onde raio te vem tanta alegria?

Daqui. - um dedo que aponta para o coração e um coração que apontará, em todas as horas, o caminho de casa. 

Obrigado, meu amor! 

Parabéns! 


RM|XVIII-I-MMXX