Rewind

terça-feira, 21 de outubro de 2014

fizemos amor sem um deus,

fizemos amor sem um deus.
 
lembras-te?
 
[uns instantes dentro dos teus olhos e fui eterno.]
 
e a eternidade foi passear contigo e provar-te na boca o sabor do gelado, levar dentro do bolso do casaco cada um dos teus dedos e o coração. a eternidade foi cada uma das horas todas que podia passar com a minha boca esquecida de falar no silêncio das tuas pernas e todas as coisas do mundo que aconteceram por baixo da janela do quarto que sempre nos esquecemos de fechar.
 
tenho a certeza que perdemos a ternura das crianças que vieram cansar o corpo e inventar sonhos nas tardes de domingo. e os velhos cansados com os jornais que disfarçam a solidão com a ilusão da vida dos outros.
 
fomos egoístas.
 
lembras-te?
 
começámos a esquecer deus quando descobrimos que o amor podia existir na combinação preguiçosa dos nossos pijamas, nas mantas onde aconchegámos tantas vezes o cansaço da espera, o pânico da demora e uma gripe mais teimosa que te deixava na cara restos da criança que foste um dia.
 
eu e os filmes - um, mais um, mais outros tantos e os bilhetes de cinema amontoados na mesa de cabeceira - "eram dois bilhetes, por favor."
 
e como, de repente, dizer esta frase era uma forma doce de vaidade. todo o amor é exibicionista, sabes? E andamos com ele cravado nos olhos, nas rugas mais fundas de um sorriso que, sem notarmos, repetimos sem parar. o amor embacia-nos os olhos quase como acontece aos vidros de um carro onde dois corpos se querem abraçar com mais pressa do que vida, com mais fome do que os instintos todos de mãos dadas.
 
fizemos amor sem um deus.
 
[Ele está no meio de nós
 
não, não podia.
 
o teu amor encheu-me a boca de uma ladaínha de luz e os milagres foram todas as vezes que a minha pele não se esqueceu e começou a acreditar.
 
o amor existia quase como um fio de esperança debaixo do nome de tudo, debaixo de todas as coisas, dos lados de todas as ruas como um cheiro quente que nos lembra que temos que voltar.
 
cegaste-me os olhos com todas as coisas que eram bocados de nós - aprendi contigo a ver com as mãos, a contemplar-te o arrepio da pele depois das fintas ao desejo que as minhas mãos inventavam sempre.
 
comecei a amar-te quando fiquei contigo como se estivesse sozinho - as tuas pernas encaixadas nas minhas eram um cobertor de doçura, a tua boca encostada ao meu pescoço uma forma de apagar dos pesadelos o vazio de todos os abismos.

e o teu medo do escuro passou a ser outro - a cama passou a ser uma estrada demasiado curta para o desejo, os nossos olhos abriam-se antes de ser dia e queríamos entrar pela janela do sono um do outro e ficar à espera de que todos os rumores fossem de alguém que nos chama.

fizemos sempre amor sem um deus.

nunca tivemos medo de acabar. e acabar deixou de ser morrer.

porque acabar foi sempre começar de novo.

de repente, as facas estavam rombas, havia um filme que ia estrear daí a dias e as tuas mãos eram a companhia ideal. amar-te era, nesses dias, sair de casa sem gostar pontinha de ti e chegar à porta de tua casa a pensar que se demorasses um pouco mais eu não aguentava.

e lá vinhas tu - as desculpas estavam dentro dos punhos cerrados nos bolsos do meu casaco comprido.

e tu sabias onde ir buscá-las. eras rápida e havia o cinema, o tal do filme que eu te tinha dito que era bom.

"eram dois bilhetes, por favor."
 
talvez o cinema nos tivesse ensinado que o escuro só é solidão se nós quisermos.
 
[e perdoo-te as tuas ofensas, assim como tu me tens perdoado quando te tenho ofendido.]

fizemos sempre amor sem um deus.

talvez porque o único milagre que vivemos tenha tido sempre o cheiro da nossa pele misturado com o luar, a saudade e o infinito todo que nos coube no sangue.

talvez deus não se importasse que o nosso amor acontecesse sem ele.

quando me deito contigo, sinto os cantos da alma cheios de palavras que não conheço.

encosta-te a mim e talvez tu as entendas.

talvez encontres no escuro um altar e te pareça que o meu coração feliz se pôs, de repente, a rezar.

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