Rewind

quarta-feira, 27 de maio de 2009

No rádio

"Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir"

A música tocava no rádio. E ele, sim, lembrava o seu nome.

domingo, 24 de maio de 2009

Eterno retorno

Chegara de noite à cidade para o enterro do amigo. Envolvia o corpo duro dos edifícios o sono pesado de uma noite escura de Inverno. Havia largos anos que não via aquela que fora a sua cidade. Reconhecia-lhe vagamente o traço fino. Pelo vidro do carro apressado os seus olhos tentavam perceber onde tinha o tempo deixado marcas mais fundas.
Viu duas crianças com o corpo pequeno e ágil que brincavam no pátio de um prédio que dava para rua. Em tempos havia sido deles esse espaço sem tempo que é a juventude.
Pediu ao taxista que o levasse a uma rua que ansiava agora, mais que tudo, ver de novo.
Quando chegou viu o velho bairro pobre onde crescera transformado num corpo sem alma. Os ventres das casas expostos e vazios; as árvores solitárias e magras em passeios de cimento gasto e estalado.
Mas ainda estava ali a casa onde crescera. E logo ao lado a do amigo que o vira um dia partir. Assim postas lado a lado - vazias, escuras e esquecidas as casas eram como que a imagem do que foram os seus caminhos. Como se uma delas tivesse ficado no mesmo sítio esperando pela gente do lado que não veio mais.
Sentiu um aperto no peito. De repente, sentiu que o amigo tinha emprestado a sua vida à promessa que lhe fizera de que esperaria por ele. E agora, assim velho, sentiu falta dessa verdadeira segurança que é a de termos sempre quem nos queira e nos aceite e saiba sempre o nosso nome.
(O táxi seguiu.)
Entrou na casa e aproximou-se de uma janela. Em baixo, o mar silvava nas rochas. Ao longe, a cidade dormia sobre o leito do presente e acordaria nos braços do futuro. Só ele revisitava o passado. Não sentia que tivesse ganho nada. Ou talvez nada do que tivesse ganho, lhe trouxesse aquilo que havia perdido.
Já nada poderia dizer ao amigo. Olhava o corpo fixo da cidade como que esperando que fosse pela sua voz que ele soubesse o que esconde a areia do tempo. A cidade nada disse. Talvez já não visse nele o miúdo com a gargalhada funda e os olhos vivos de vigor.
Demorou o olhar pela praia magra que repousava no fundo da encosta. Desceu por umas escadas estreitas que descobriu ainda permanecerem por ali.
Sozinho e imerso na noite percebera o que era isso da saudade. Ficar-nos na memória a intensidade exacta do que fomos e nela bem presa a vontade que tivesse durado para sempre.
Era agora a sua vez de continuar sem o amigo. Esse amigo que voltava agora no silêncio quieto de uma noite de Inverno. Voltava como sempre volta quem nos quer.
Só então percebeu que tudo fora um reencontro. Um reencontro com aquilo que nos fica por cima dos corpos.
"Obrigado", pensou.
E, de repente, pareceu-lhe ouvir uma gargalhada feliz e infantil que vinha da casa.

Cinema Paradiso final theme by Ennio Morricone

Na noite que chega

Ainda outro dia fiquei a ver-te dormir. O teu corpo quieto com os braços perdidos no mar suave dos lençóis que deixei a cobrir-te. Era tudo silêncio. Na rua apenas os corpos de sombras a vaguearem. Eu acordado depois do calor das tuas mãos e do lume dos teus olhos.
Dormias serena no ar fresco da noite. Deitei-me devagar bem perto de ti. Via-te no rosto o abandono que só recebe quem se ama. Não estavas ali tu. Ou antes, estavas ali toda tu - sem os esboços falhados de felicidade que o mundo espera de nós; sem a expectativa de ninguém cravada nas costas. Apenas tu - assim nua e com o direito ou antes a liberdade de nada fazer; de nada ter que dar para que te queiram. Queria-te porque podia entre nós existir o silêncio; podia existir a liberdade de sermos o que nos vem no sangue e não o que convencemos a pele a aceitar.
Passeei os dedos pela pele adormecida dos teus ombros e pelo leito suave do teu cabelo onde corria agora o brilho dourado da luz que pousava vinda da janela aberta. Podia ver-te como se estivesses sozinha. Havia intimidade na entrega abandonada do teu corpo - como se caísses de costas nos meus braços e não tivesses medo por me saberes ali.
Procuraste-me na cama. Vieste pousar a tua cabeça pequena no meu ombro. E nesse pedido e desejo que nascia do teu sono, vi eu a certeza que o amor só sabemos se existe quando desistimos da nossa vontade e ele chega. Na voz que fala por nós.

Oficinas # 3


sábado, 23 de maio de 2009

Recado ao Porto

Rua da Restauração
vista da Rua da Restauração

vista da Rua da Restauração


Vista da Rua da Restauração



Porto, querido paizinho,
Com o teu fato enrugado,
Recebe esta carta minha
Que te leva o meu recado!

Que Deus te ajude, meu Porto,
A cumprir esta mensagem,
De um português que está longe,
E anda sempre em viagem!

Vai dizer adeus à Sé
De casas pobres, velhinhas,
Vai por mim beijar as Antas,
E abraçar as Fontaínhas!

E mesmo que seja noite,
Que o vento faça um açoite,
E a chuva miudinha,
Abraça por mim a malta,
Que pára na Ribeirinha!

Se for noite de S. João,
Vai pelas ruas tripeiras,
Acende meu coração,
Na chama das tuas fogueiras,
Depois leva pela cidade,
Num vaso de manjerico,
Para eu matar a saudade,
Esta saudade em que fico!








José Viana, reescrição do fado "Recado a Lisboa"

Porto em 17.05.2009 às 20:45







Caminhos do Romântico

Palácio de Cristal
Solar do Vinho do Porto

Solar do Vinho do Porto

Rua de Entre-Quintas









domingo, 17 de maio de 2009

Invocação do teu nome

Sonhar por cima das ausências. Continuar a visitar os nomes; a lembrar o sentido que tudo fez e que tudo continua fazendo, mesmo que o sonho tenha falado numa voz que não se quis. Continuar a lembrar porque também valem a pena as coisas que perdemos. Lembrar que sobretudo não as queríamos ter perdido e desejar que a liberdade que elas têm lhes lembre que por não se querer perder, se acaba, por vezes, precipitando a perda.
Continuava a sorrir quando se lembrava de uns dias quaisquer que foram seus - assim cheios de coisas que são como fotos que o tempo amareleceu mas a que não esquecemos as cores verdadeiras. Demorava-se a pronunciar certo nome- e não, não desapareciam as recordações que o enchiam de significado. Para ele, os nomes e o amor que lhes temos são aquilo que fica do que nos aconteceu com os outros. Quando se demorava na evocação de um nome ou de alguém que já não vinha no dobrar da esquina, pertencia-lhe bem preso no som mudo dessas palavras, aquilo que existia guardado do mundo.
Quando chamamos o nome de alguém ou o recordamos fica connosco aquilo que ninguém lhe pode chamar também - fica justamente o nome que lhe deu o nosso amor.
Por isso, não lhe doía chamar ou revisitar o nome desse alguém. Porque sabia que estaria a voltar à verdade que fora sua para conhecer. E gostava de se ver nesses dias - talvez para saber se a voz que sempre acaba chamando quem lhe lembra ainda era a desses tempos. Sabia que, por cima dos erros, continuava a ouvir nessa voz a mesma vontade de que não se esquecesse o que guardamos.
Talvez nele nunca se esquecesse o grandioso que foi termos sabido que o nome de alguém que amamos tem um pouco de nós lá no meio.