Rewind

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O que o silêncio nos diz

Via gente à sua volta. Rostos pequenos e dedos tocando livros velhos com o aroma do pó a soltar-se do corpo espesso e dormente do tempo.
Através do vidro, a luz desmaiava fina na terra húmida da chuva recente e os ramos grossos das árvores agitavam-se ao sabor do passo apressado do vento.
Via a vida - esse corpo que nos corre nas veias e o mundo como um súbito contínuo silencioso onde tudo se cumpria numa acalmia plena. E eis os nossos gestos; as nossas palavras e olhares a povoarem esse deserto de silêncio.
Reparava num toque gentil de alguém; num sorriso doce que principiava o seu trilho no rosto de alguém e na luz que daí nascia.
E, de novo, pelo vidro via agora as gotas que regressavam para beijar o chão como num ritual antigo a que tievsse vindo assistir.
Que sentido viemos dar ao mundo? Que sentido tem por nós o mundo? Sabia que os nossos gestos e rituais, como a chuva que vem beijar a terra, podem desaparecer. E, então, que sentido o nosso ruído no meio do silêncio natural?; no meio das folhas que bailam no vento neste dia, como em todos os dias, de todos os Outonos?
Que diz o nosso som? Que silêncio viemos nós ocupar com as nossas palavras? O que deixou de se ouvir?
Acreditava que viemos habitar o mundo para que do nosso silêncio nascessem palavras como beijos; palavras como longos abraços quentes. Acreditava que as nossas palavras vieram para encher o corpo que temos no sangue com o som dos que nos conta e do que conta essa vontade que primeiro connosco nasce sem nome e que se chama amor.
Acreditava que connosco nasce essa manta de vida com que cobrimos o silêncio e onde repousamos os nossos corpos e damos as nossas mãos.
Viemos povoar o deserto de silêncio do mundo com o som do amor - esse som grandioso e límpido como a água que caía no vidro da janela.
Connosco há sempre algo que acontece no silêncio - viemos dar ao silêncio o que ele nunca pôde dizer. Ele fala quando com um gesto de corpos próximos se diz tanto.
E se ele não estivesse aqui enquanto a chuva caía? E tudo fosse um espectáculo a que nunca ninguém veio?
E, de novo, o silêncio depois da chuva. Pensava que connosco, com a nossa luta para que sempre tenhamos quem nos beije como a chuva à terra; para que sempre se faça luz no rosto de alguém que sorri viemos dar ao mundo o sentido maior do que nunca emudece. Viemos mostrar que há uma voz maior que é a do Amor.
Essa que continua a falar mesmo quando no barro da terra se dissolvem as cinzas do que já fomos.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Comme s'il en pleuvait_Mayra Andrade

Ne me quitte pas_Jacques Brel

Nos degraus daquela porta

"Sabes que o mundo significa muito pouco, não sabes?" O seu olhar com um fundo de cor firme como tábuas de madeira coesas que não cedem.
A cidade diluía-se em ecos vagos já ali ao lado. E aquela pergunta em jeito de acusação a impregnar o ar como o frio que se infiltra na pele em dias cinzentos de invernia. O que importa, de facto, o mundo?
Pensava ele em como certos dias lhe pareciam mais bonitos através da cortina intensa do seu cheiro; em como certas ausências sabiam bem porque ela estava presente no que restava do traço fino do seu corpo no dele.
E, de novo, o que importa o mundo? Reparava nos seus dedos - longos e finos. A luz do dia emprestava-lhes o fundo mas a luz era somente deles. Desses longos dedos como arados que lhe rasgavam as costas e lhe adoçavam o sono.
Recordava o fundo dos seus olhos onde não nasciam dúvidas - tinham os seus olhos esse fundo visível que sempre têm os olhos daqueles que diminuem as escalas e suprimem toda a grandeza.
Ele julgava perceber que, no fundo, ela sabia que o mundo não vem dormir connosco no útero escuro da noite; que o mundo nos espera sempre com o desfecho das nossas vidas do lado de lá do vidro das janelas. E nunca entra. Quem nos segura a mão enquanto o mundo espera para nos condenar ou nos aplaudir?
Quem sempre entra connosco pela porta de madeira envelhecida de casa sem saber o que os dias nos farão com a surpresa do que ainda não se abriu?
E ele pensava nisso. De como para ele o mundo também era esse fora onde tudo nos acontece e onde somos empurrados sempre em direcção a algo; de encontro a alguma coisa, muitas vezes, vestindo o corpo inefável do vazio. E esses embates são geralmente os que doem mais.
Ela ficava com ele. Desafiando a vida que esperava como se ela nao existisse. Não queria os aplausos e, às misérias adiava-as com risos infantis de quem se deita na cama da fantasia com o corpo cansado de amar. Ela gostava de fintar o próximo passo.
De inscrever no mundo uma expectativa e, no momento seguinte, vaguear deitada nas horas como se a promessa fosse já um leve murnúrio distante.
Ele não era assim. Saía com a face disposta a receber o dia que acabara de chegar e podia dizer-se que caminhava de encontro ao que viesse.
Mas era ela quem ficava com ele, à noite.
Era ela quem entrava com ele na casa grande em frente ao mar com amplas janelas e não lhe perguntava onde estariam os dois amanhã.
Ela estaria com ele. E, por isso, o mundo importava tão pouco. Com o corpo dele a revelar-lhe a alma com toques suaves e alguma firmeza em gestos de volúpia mais acesa ele era o seu chão e o seu céu.
Dele tudo nascia para a ele tudo voltar. Ela sabia que tudo o que lhe acontecera fora fruto da sua vontade solitária quando o seu corpo amou mais um pouco e o mundo não ia desenrolando o fio contínuo da sua narrativa.
Podia ela assim perder menos.
Ele fora percebendo que, de facto, quem importa são as pessoas. Mas apenas aquelas que ficam connosco, independentemente do que nos traz no bolso o mundo, do lado de lá das paredes sólidas.
Ela gostava de inscrever na espessura mecânica do tempo uma valsa e um ritmo diferentes -hipotecava o seu corpo e o seu amor a um desejo incondicionado de partilha. E ao condicionamento esmagava-o com o antítodo poderoso da entrega.
"Sabes que o mundo importa muito pouco, não sabes?" E, de novo, esse olhar sem fissuras.
Ele, enfim, percebera que o mundo importava muito pouco. Importava, sim, essa vontade que alguém tinha de ficar com ele sem perguntar onde iam. Sem querer condicionar a entrega ao jogo que espera para acontecer lá fora.
Ela não aceitava que o mundo pudesse ditar quanto amamos uma pessoa.
O amor é o nosso chão e, frequentemente, o nosso tempo. O tempo do que nos acontece dentro. O tempo onde queremos ficar longe do mundo.
Ela erguia o seu amor como uma espécie de liberdade incondicionável. Como um protesto. Como um segredo contado em surdina que as paredes ouvem mas não contam.
E que ele, finalmente, percebera.

Símbolos


Esteticamente, a bandeira mais bonita da Nação.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Blank Joy

She who did not come, wasn't she
determined
nonetheless to organize and
decorate my heart?
If we had to exist to become the
one we love,
What would the heart have to create?
___
Lovely joy left blank, perhaps you
are
the center of all my labors and my loves.
If I've wept for you so much, it's because
I preferred you among so many
outlined joys.
Rilke