Rewind

domingo, 7 de junho de 2009

"Olha, está tudo bem."

Alguém chegar e dizer: "Está tudo bem." Chegar e trazer na voz essas palavras que podemos beber e onde podemos descansar. Sentir que tudo finalmente se acalma - que chegamos à praia onde a corrente parou para nos deixar. Não ter mais que procurar na dobra dos dias o fim das coisas que não querias e vieram.
Alguém chegar e dizer: "Olha, está tudo bem." E quem chega trazer esse desejo grande e luminoso de querer ficar a ouvir o que o silêncio que engolimos e nos engole traz escondido. Ou ficar e não se dizer nada - esse alguém fica e está lá. E segura-te o corpo e o que nele se agarra.
Palavras que rasgam noites mais fundas - segurares-te nos desejos que te enviam. Acreditares que isso se mantém como uma luz contra o tecto escuro de uma noite agora mais funda.
E alguém que chega e diz: "Olha, está tudo bem." E ficares quieto nessa espécie de promessa silenciosa; nesse escudo que chega quando tudo falta.
E poderes respirar porque nada se te impõe. Alguém chegar e dizer: "Está tudo bem, eu estou aqui."
E tudo ficar melhor.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Suspenso

Chovia lá fora. O asfalto molhado e os passeios de cimento gelado. Em baixo, na rua larga passavam pessoas. Corpos encolhidos em roupas quentes. As árvores despidas e as luzes ainda acesas depois do véu escuro da noite. Um pássaro solitário num galho já ali.
Uma gargalhada infantil que ecoa vinda de uma esquina que a sua visão não alcança. Às vezes, ficava ali quieto perto do vidro embaciado da janela da frente de casa. O seu olhar preso nesse mundo sem rostos conhecidos; de olhares que se prendiam no seu e continuavam caminho.
Não haver nada no mundo que o prenda. O mundo, esse corpo ausente. Habitá-lo apenas a esperança do desconhecido que surge naquela esquina de sempre. Povoá-lo essa esperança renovada de que algo chegue de novo.
Atrás de si, o lume bramia solitário na lareira e acendia sombras na madeira aquecida das paredes da biblioteca.
O seu olhar planava nesse mundo em suspenso. Antes de tudo se alinhar pelo que já existe - antes de os caminhos de sempre serem percorridos e as caras de sempre revistas.
Com efeito, o que mudaria nessa manhã? Que promessas se quebrariam hoje? Que coisas foram para não serem mais?
Pensava no mundo antes de ele acontecer. Gostava de ver o dia nascer. Da janela de frente de casa. E imaginava que esse dia seria o primeiro com o que muda. O último com o que nunca mudou.
Quando acordassem alguns desses corpos da sua rua, poderia haver algo que já não continuaria. Por isso custa tanto a perda. Porque acordamos num mundo que não sabemos ter perdido na véspera. E o nosso corpo e os nossos afectos também têm um lugar nessa ordem do mundo.
Ele olhava alguém que passava com o calor dos lençóis ainda preso no olhar tenro.
E perguntava-se se o dia que agora nascia seria a ausência dos sonhos da véspera.

Mas nós não

Ficar com as palavras guardadas. E demorar nelas o pensamento, como o corpo numa sensação que queremos fazer durar. Não as dizer. Ficar longe - não ser daqui por uns minutos. Lembrar tempos idos. E parar aí, nessa dobra da memória. E não falar. Saber que estivemos juntos e ninguém saber o que levo de ti debaixo da pele. Estar de novo com quem nunca se perde.
Chamar a tua recordação e ela chegar para me dizer que sempre estiveste aí. Guardar as palavras; guardar-nos a nós e apenas contemplar. Ficar a ver e a ouvir a voz e o corpo das coisas que o mundo não pode levar.
Falar cada vez menos. Entregar aquilo que és a quem sempre o soube e mereceu.
Chamei o teu nome, hoje mais uma vez.
E tu chegaste. Na voz quente e lenta das horas.
Com o dia a morrer lá em baixo. Mas nós não.

Nas horas

Sentia falta daquelas horas amplas e fundas onde aconchegava o corpo. Daquele fechar os olhos e o mundo não ser nada; não importar mais. Ter o corpo deitado no absoluto. Poder parar de buscar. Ousar dizer que encontramos o que sempre desejamos. Sentir isso e o resto não ser nada.
A janela aberta numa noite quente de Verão. O teu corpo derretendo na minha pele. O teu ar varrendo a superfície do meu corpo. E o mundo não ser nada. O doer-nos o corpo e o pesar-nos demais a vida e o pó gasto das ruas. Fechar os olhos e deixar a vida correr sem nós. Desafiar o medo; calar as dúvidas e a dor inteira nesse gole de silêncio que as leva.
Acordar contigo e demorar os meus olhos em cada pormenor pequeno de ti. E o mundo não ser nada. Nem as horas que passam, nem o dia que desmaia no rio, lá em baixo.
Sem ti o mundo importa demais. E as horas são horas porque a tua ausência lhes deu corda e elas fazem-se ouvir. Desabafar pelo silêncio - só porque ele pode existir. Essa confiança cega que nos desarma o peito e nos deixa ouvir o coração. Enlaçar as pernas no molde perfeito do teu corpo. Desenhar promessas de saliva no relevo fino do mámore das tuas costas. E o mundo não ser mais o intruso. Dissolver o mundo na calma a que nos abandonamos, como que escondidos na sombra.
Pensar que hoje me fizeste falta. E o mundo, de repente, importou demais.