Rewind

domingo, 31 de março de 2013

da direita portuguesa.

Para mal dos nossos pecados: "A Direita era quase sempre aquilo, um cocktail exótico que ia dos devotos do Hitler aos de Nossa Senhora de Fátima."

Jaime Nogueira Pinto in Novembro, p. 131.

Outono|

Beijos que caem como folhas de Outono chegando
Estradas de poeira de ouro ao vento
Enquanto no meu peito o alento
De loucamente ir amando

Catedrais de espuma e de saliva
Hinos de saudade assim gritada
E uma alma toda ela cativa
De ti toda apaixonada

Sonhos sem medida e sem sentido
Encruzilhada de fogo e solidão
Enquanto sozinho e perdido
Busco no céu teu chão

A noite fria como um aviso
E lágrimas como a morada do tempo
Paredes onde mora o teu sorriso
Onde ecoa o meu lamento

Guardo no peito a luz dos dias
Em que serena descansavas
Em que dormindo já sonhavas
Os beijos meus que querias.

RM

sábado, 30 de março de 2013

Se ao menos|

Se ao menos esta alameda de saudade
Fosse um mar morno e reluzente
Um jardim florido numa cidade
Com o teu corpo presente

Se ao menos o vento fosse um segredo
Um céu de prata e acalmia
Um sonho sem noite e sem medo
Uma doce melodia

Se ao menos esta janela fosse teu olhar
Um grito aceso e sem medida
Um riso de paz a iluminar
A hora da despedida

Se ao menos esta varanda fosse teu peito
Um altar de silêncio em flor
Um engano desfeito
Ou o fim da dor

Se ao menos este rumor fosse o teu corpo tremendo
Ou teus lábios de carne incendiada
O tempo se quebraria sabendo
O quanto tu foste amada.

RM
 

quinta-feira, 28 de março de 2013

do coração|

Só por te ver
Se me amplia o olhar como uma avenida de luz
Só por te querer
Me nascem sonhos no lugar onde te pus

Só por te desejar
Com um fogo repetido
Se me põe o corpo a sonhar
Num vaivém terno e renascido

Só por te olhar  
Com o calor dos meus dedos
Abraça-me logo um luar
Onde te revelo meus segredos

Só por te provar
Com um rastilho de sonho
Acende-me no peito um mar
Abre-se um céu onde te ponho

Só por te querer na manhã que aparece
Vivo mil vidas num momento
Morre a má sorte e o desalento
E no céu a noite esmorece.

RM



da noite|

Caem do céu lágrimas na minha rua
E é noite escura outra vez
Procuro perdido a beleza tua
Que a saudade doce não desfez

Bóia o silêncio na madrugada
E dorme o ventre sossegado da cidade
Lembra-me a tua pele aveludada
Que tu me negas por maldade

Espero por ti no jardim
Sentado com o olhar suspenso
Porque se é só em ti que eu penso
Queria morrer assim

E enquanto a chuva me molha o rosto
Minha pele tem fome de amor
E com o coração assim posto
Falta-me de ti a luz do ardor

Vem serena morar nos meus braços rendidos
Vem coroar de flores as horas dos dias
Vem devolver os sonhos sumidos
A doce verdade em que existias.

RM 




domingo, 24 de março de 2013

do amor.

Pois que talvez fosse isso mesmo o amor: um silêncio do princípio do mundo, uma suspensão do tempo e das horas, dos outros murmúrios que não o de uma surpresa que se dilata no ar, se agarra a tudo, se estende e brota jorrando da pele de tudo, de cada beijo, de cada palavra e gesto. O amor é uma expectativa que ocupa o silêncio, cresce e aumenta como uma onda na face do mundo, nas acções do Homem. O amor é uma promessa de eternidade em que se cala o mundo e começa, então, a falar o sonho.  

Fausto e Zeca|Não Canto Porque Sonho.


anacronismos.

"Casa quanta caibas, roupa quanta rompas, terra quanta vejas."

aristocrats.


1900|bertolucci.


sábado, 23 de março de 2013

21.03.1946.

«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin
 
Uma parte de mim começou nesse dia. Tudo aquilo que veio depois começou nesse estender de um chão sobre o abismo que é o amor. Segundo me contas casaste num dia feliz e simples. A família como a maior testemunha desse enlace que me trazia por revelar sob o véu do tempo. Todos sorriem na fotografia - louros e o azul dos olhos como símbolo de uma união que subsiste em vagas sobre o silêncio, que se amplia ainda hoje sobre as eras e através do tempo.
Uma cerimónia simples na igreja onde foste baptizada, onde está o altar oferecido anos antes pelas tuas irmãs e mãe, com uma imagem de Santa Teresa. Olho a fotografia e lembro-me das coisas que me contaste durante a minha vida como numa troca doce e carinhosa de confidências - partilhámos toda a vida esse terreno luminoso dos afectos, essa aventura corajosa da proximidade, da atenção, do cuidado extremo.
Lembro-me das cartas de amor da vossa juventude, desse avô que descobri existir nessas palavras, nessas juras, nos cartões de visita trocados que diziam frases como indícios de uma Primavera por florir - "Levam-te mil saudades."
Casar num dia desses foi como um acordo daquilo que estavam dispostos a exigir do mundo, a fazer dele - um abrigo fértil de sonhos, de desafios, de perdão, de amizade - um nome comum que nos chame a todos a testemunhar a transformação do homem pelo trabalho, pelo que escolhe, pelo outro.
Lembro-me do dia das bodas de ouro - as cinquenta rosas vermelhas, a Gó no meio de nós atada nesses laços generosos que o tempo enredou entre nós. A memória com diamantes junto das alianças com que sempre brincas enquanto nos falas.
Contas-me que no dia em que casaste foste a Guimarães, sítio onde os teus pais casaram e que o avô te levou ao teatro - paixão que lhe durou toda uma vida.
Lembro-me desse retrato que sempre continua inacabado - o amor é uma promessa com formas ainda por revelar, penso eu. Com o tempo vou completando o painel da memória em que nos bordei a todos muito juntos, partidários da mesma fé no que nos move, sacerdotes dessa missão que somos uns para os outros.
Falo-te sempre do avô - juntos continuamos a preencher o espaço da ausência com o chamamento da memória que é uma espécie de imortalidade humana. A imortalidade que podemos alcançar é apenas a que nos é dada pela morada eterna que são os que nos trazem, nos lembram e nos procuram sempre.
Contas-me que soubeste que o teu pai chorou quando os teus vestidos, as tuas coisas foram postas em malas como que a dizer que um novo ciclo começava.
E sei que te enches, como eu, de orgulho desse amor que é a prova mais forte do sentido das coisas, do sentido que faz crer nos outros e nos compromissos que escolhemos honrar.
São sessenta e sete anos em que os capítulos ainda se seguem, ainda se escrevem e revisitam. Pela tua voz e a minha mão é como se o coração de cada um dos que nos faltam voltasse à vida. Sou apresentado a pessoas que não conheci mas que sinto próximos com um aconchego de alma.
Continuamos a guardar uma expectativa tão íntima em nós como um instinto de que aqueles que amamos continuam perto de nós, continuamos a esperar ouvir e ver as palavras sábias, os sorrisos e as conquistas.
O amor é um fanatismo como uma Primavera perpétua, como um dilúvio de luz sobre as dúvidas, os arrepios do caminho.
É essa a melhor herança da nossa família - somos frutos de um chão em que sempre nos quiseram, nos acolheram, nos fizeram maiores do que o tempo.
Começam a florir as dezenas de orquídeas e as japoneiras pontilham de cor o tecto do jardim. E só me apetece agradecer - é a esta corrente que se sucede e nos traz unidos que se devem as tonalidades da minha vida. É a tudo o que somos que se devem as palavras que podem nomear o que o mundo se tornou para mim.
Acredito na jura que nasceu daquele dia porque te vejo mais livre porque ela existiu. Porque te vejo maior quando partilhaste.
Daí o teu amor à liberdade - vejo-te expandir na luz que se acendeu no teu olhar porque a vida te devolveu o eco da força que sempre tiveste, dessa doçura de menina que não perdeste nunca.
Escolheste e essa escolha aumentou a escala dos teus sonhos e fez-te descobrir outros possíveis, outras latitudes onde quiseste chegar porque trazias o futuro do lado de lá da vontade.
Temos saudades do avô e dessa Primavera mais ampla do tempo em que tudo era como devia ser.
Mas por ele e por ti a Primavera não morre - do chão do jardim donde viemos chega-nos sempre o perfume mais doce que anuncia o que está por vir.     
    

terça-feira, 19 de março de 2013

De ti|

É a chuva que me lembra do teu rosto iluminado
Do caminho da saliva assim traçado
Enquanto a noite dorme no jardim 

É o frio na pele que mais te quer
Minhas mãos sonhando as tuas
Um beijo, um supiro, um olhar sequer
Enquanto a noite cai nas ruas

São as flores das varandas que me lembram 
Dessa maneira doce do amor
São as memórias que teimam
Em levar-te comigo para onde for

É a sombra da curva desta rua
Suave, funda e quase crua 
Que me traz como lembrança
O tempo feliz dessa dança.

RM

quinta-feira, 14 de março de 2013

luz|

Porque a luz desmaia em ti cheia de graça
Suave, subtil como que passa
Em flor descendo sobre a tez

E do colo da noite morna que finda
Tudo se expande, se cala e se emudece
E tudo parece ainda
Um doce sono que enternece

Corre-te o vento no cabelo
E nossos corpos ardendo se engrandecem
Os dedos que se tocam com desvelo
E as dúvidas inteiras esmorecem


Não há pudor naquilo que te faço
E tudo é uma ternura em brasa que aumenta
É uma partilha generosa e ciumenta
Uma rendição, um grito e um abraço.

RM





domingo, 10 de março de 2013

do empobrecimento ilícito.

C. mora num país triste, segundo dizem. Isto de os países serem tristes não a preocupa muito. Alguns gostam de dizer que existem países tristes, países desmotivados e países de não sei quantos feitios e qualidades como se se encontrassem na mercearia da esquina.
Não existem países tristes - existem, sim, pessoas - esses seres dotados dessa estranha capacidade de emoções e sentimentos.
C. mora num país - triste é a vida dela e o resto é treta, se me permitem. A vida dela existe num intervalo entre viagens de autocarro, entre a precariedade do trabalho que arranjou para tapar o buraco do outro trabalho precário que já não chega. A vida é o que existe depois das dores no corpo por se desdobrar em três para acorrer aos três filhos pequenos - a mãe não lhes falta, mesmo que à mãe tudo falte.
C. vive num país como uma gaiola enfeitada - não faltam estradas como tentáculos da modernidade, não faltam catedrais de betão armado, computadores magalhães, bancos que precisam de ajuda, reformados indignados, presidentes da república que comem de boca aberta, enquanto o dinheiro não lhes chega, coitadinhos.
E C. tudo ouve, tudo engole como fragmentos que formam na sua cabeça esgotada um ruído - um ruído como um eco que lhe diz que é muda, que não tem voz e que está sozinha.
C. vive num país em que o suposto asseio da coisa pública se converteu e se reduziu a uma manada de engravatados ensinados por uma cartilha estéril, inútil e cheia de lugares comuns. As pessoas não existem. Nada do que elas são existe.
A lei tornou-se um caudal de excepções previstas sempre para os mesmos - aqueles que se refastelam com as excepções aos cortes nas remunerações, aqueles que fazem da justiça uma valsa de atrasos, de manobras, um espectáculo degradante.
Há no país de C. um ex-banqueiro que diz que os bancos têm que ter lucros, que há que inventá-los e se soubesse no que ia dar o pântano que criou não se metia nisso. E diz enquanto come, enquanto a Assembleia da República o escuta. Mas o país já não se espanta. Para C., como para muitos portugueses a vida não mora aí. A vida é o sofrimento de quase não poder ir trabalhar porque não se paga o passe que subiu, a vida é o cadáver de uma esperança que já não mora mais aqui.
C. já não se espanta porque nunca acreditou nas promessas de ninguém. Os políticos são quase como uns vendedores que bajulam ou uns religiosos chatos como tudo que não nos largam porque nos querem alguma coisa.
E C. já não cai nisso - vive no mundo onde as pessoas nunca deixam de ter nome, ouve as histórias onde o pulso se sente bater cada vez menos.
C. queria um país em que os filhos pudessem estudar, em que as escolas fossem uma janela aberta para uma vida melhor. A C. não lhe interessam ecos distantes de um mundo que não percebe - os pobres, os miseráveis vivem num mundo em que querer viver, em que querer ir ao cinema, em que querer comer mais um pouco tem consequências.
Só nesse universo paralelo de tratantes engomadinhos tudo parece pairar sem sanção, os actos parecem não se inscrever para logo se tornarem num rumor tímido e logo esquecido.
C. não quer saber de quotas para as mulheres na política. Ela queria era a sua quota de leite, de comida, de dignidade, de luz eléctrica ou água canalizada que não tem.
Os pobres e os miseráveis não têm género, não têm direito a essas aspirações burguesas da igualdade e coisas que tais.
A vida de C. é uma corda na garganta - um equilíbrio ténue que quase finda quando alguém adoece, quando chove muito, quando o autocarro se atrasa, quando o médico falta ou quando a roupa já não serve.
C. não sabe mas tem que haver quem lho diga - pobreza não é vocação. E os pobres não dependem, na sua relação com o Estado, de um favor ou de caridade. A ajuda em situações como esta é um direito - um direito que não pode ser restringido em nome de pântanos financeiros, de reformas para as quais nunca se descontou,  em nome de estádios de futebol vazios, de TGV's e pareceres milionários.
C. não quer que os filhos sejam como esse tal de Relvas - quer que acabem cursos, quer que digam a verdade, porque a honestidade, surpreendam-se certas alminhas incautas, também é virtude dos pobres.
C. não quer saber de procuradoras que gritam, borradas de maquilhagem e quase alienadas, que não há corrupção no seu país. Ela sabe que há, que existe em quase todos os serviços aonde foi e onde lhe disseram, entre dentes, que quem tem uma cunha tem tudo.
C. não quer um país em que faltem medicamentos para doenças graves, em que os moribundos não sejam assistidos porque não há camas ou sejam atirados para valas comuns dos tempos modernos, porque se acabou com o subsídio por morte.
C. sobrevive - a vida nunca foi fácil - a modernidade do país, de aeroportos megalómanos e de elefantes brancos nunca chegou ali. Acomoda-se mais um desgosto, vive-se conformado com a ideia grotesca de que a vida das pessoas como ela importa cada vez menos.
Os autocarros entram em greve e as ruas enchem-se. C. não foi às manifestações porque não pode perder as horas de trabalho. Mas C. vê que um mar de gente se estende nas ruas, quando liga a televisão. C. ouve discussões sobre a Segurança Social com uns tecnocratas atrofiadinhos a esgrimir argumentos como massagens no próprio ego.
C. tem vergonha por esse país. E tem pena das pessoas que ouve. Consegue ter pena daqueles que ouve, sem se lembrar de que está pior, de que ficará pior, certamente.
C. está estourada - os cabelos brancos, o corpo moído da chuva e dos quilómetros que ainda teve que andar porque a linha do  autocarro foi suprimida. C. ouve e tem pena. Tem pena pelos filhos, pena porque o país é como um ruído enorme. E, ao fundo, sorriem ministros que entoam letras de músicas de revoluções que nunca fariam.
C. não sabe quem é o ministro como ele também não sabe quem é C. E assim, enquanto o corpo pede descanso, C. acredita que as coisas ficarão melhores. Têm de ficar.
Como diz a música: " o povo é quem mais ordena..." E isso soa-lhe bem. 
 
 
 
 

home sweet home_tommy lee.


segunda-feira, 4 de março de 2013

A ti|

Despes o corpo tão devagar
Como a luz que escorre sobre a calçada
Leio-te os lábios, a pele e o respirar
E ouço-te a felicidade anunciada

Que nada te leve, que nada te afaste
Que o mundo serene e se suspenda
E me diga sem que se ofenda
Que foste minha e que me amaste

Que do silêncio nasçam rosas
Como beijos de pétalas em brasa
Como desejos de chama furiosa
Como dilúvio gigante que arrasa

Que ninguém sequer consinta
E os dias se sumam em ilusão
Que o meu corpo então me minta
Se me não deres tua mão

Guardo na boca os teus gemidos 
Como amoras maduras num jardim
Levo comigo os dois unidos
Meu amor e o teu corpo de cetim.

RM




south riding.