Rewind

sábado, 23 de março de 2013

21.03.1946.

«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin
 
Uma parte de mim começou nesse dia. Tudo aquilo que veio depois começou nesse estender de um chão sobre o abismo que é o amor. Segundo me contas casaste num dia feliz e simples. A família como a maior testemunha desse enlace que me trazia por revelar sob o véu do tempo. Todos sorriem na fotografia - louros e o azul dos olhos como símbolo de uma união que subsiste em vagas sobre o silêncio, que se amplia ainda hoje sobre as eras e através do tempo.
Uma cerimónia simples na igreja onde foste baptizada, onde está o altar oferecido anos antes pelas tuas irmãs e mãe, com uma imagem de Santa Teresa. Olho a fotografia e lembro-me das coisas que me contaste durante a minha vida como numa troca doce e carinhosa de confidências - partilhámos toda a vida esse terreno luminoso dos afectos, essa aventura corajosa da proximidade, da atenção, do cuidado extremo.
Lembro-me das cartas de amor da vossa juventude, desse avô que descobri existir nessas palavras, nessas juras, nos cartões de visita trocados que diziam frases como indícios de uma Primavera por florir - "Levam-te mil saudades."
Casar num dia desses foi como um acordo daquilo que estavam dispostos a exigir do mundo, a fazer dele - um abrigo fértil de sonhos, de desafios, de perdão, de amizade - um nome comum que nos chame a todos a testemunhar a transformação do homem pelo trabalho, pelo que escolhe, pelo outro.
Lembro-me do dia das bodas de ouro - as cinquenta rosas vermelhas, a Gó no meio de nós atada nesses laços generosos que o tempo enredou entre nós. A memória com diamantes junto das alianças com que sempre brincas enquanto nos falas.
Contas-me que no dia em que casaste foste a Guimarães, sítio onde os teus pais casaram e que o avô te levou ao teatro - paixão que lhe durou toda uma vida.
Lembro-me desse retrato que sempre continua inacabado - o amor é uma promessa com formas ainda por revelar, penso eu. Com o tempo vou completando o painel da memória em que nos bordei a todos muito juntos, partidários da mesma fé no que nos move, sacerdotes dessa missão que somos uns para os outros.
Falo-te sempre do avô - juntos continuamos a preencher o espaço da ausência com o chamamento da memória que é uma espécie de imortalidade humana. A imortalidade que podemos alcançar é apenas a que nos é dada pela morada eterna que são os que nos trazem, nos lembram e nos procuram sempre.
Contas-me que soubeste que o teu pai chorou quando os teus vestidos, as tuas coisas foram postas em malas como que a dizer que um novo ciclo começava.
E sei que te enches, como eu, de orgulho desse amor que é a prova mais forte do sentido das coisas, do sentido que faz crer nos outros e nos compromissos que escolhemos honrar.
São sessenta e sete anos em que os capítulos ainda se seguem, ainda se escrevem e revisitam. Pela tua voz e a minha mão é como se o coração de cada um dos que nos faltam voltasse à vida. Sou apresentado a pessoas que não conheci mas que sinto próximos com um aconchego de alma.
Continuamos a guardar uma expectativa tão íntima em nós como um instinto de que aqueles que amamos continuam perto de nós, continuamos a esperar ouvir e ver as palavras sábias, os sorrisos e as conquistas.
O amor é um fanatismo como uma Primavera perpétua, como um dilúvio de luz sobre as dúvidas, os arrepios do caminho.
É essa a melhor herança da nossa família - somos frutos de um chão em que sempre nos quiseram, nos acolheram, nos fizeram maiores do que o tempo.
Começam a florir as dezenas de orquídeas e as japoneiras pontilham de cor o tecto do jardim. E só me apetece agradecer - é a esta corrente que se sucede e nos traz unidos que se devem as tonalidades da minha vida. É a tudo o que somos que se devem as palavras que podem nomear o que o mundo se tornou para mim.
Acredito na jura que nasceu daquele dia porque te vejo mais livre porque ela existiu. Porque te vejo maior quando partilhaste.
Daí o teu amor à liberdade - vejo-te expandir na luz que se acendeu no teu olhar porque a vida te devolveu o eco da força que sempre tiveste, dessa doçura de menina que não perdeste nunca.
Escolheste e essa escolha aumentou a escala dos teus sonhos e fez-te descobrir outros possíveis, outras latitudes onde quiseste chegar porque trazias o futuro do lado de lá da vontade.
Temos saudades do avô e dessa Primavera mais ampla do tempo em que tudo era como devia ser.
Mas por ele e por ti a Primavera não morre - do chão do jardim donde viemos chega-nos sempre o perfume mais doce que anuncia o que está por vir.     
    

Sem comentários: