Rewind

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Palavras

O papel e as letras, a caligrafia alinhada ao sabor do sentimento - as palavras que o sangue te punha a passear no corpo. Não vives nas palavras, nem tu, nem ninguém cujo caminho se tenha enamorado do meu, algures lá atrás.
As palavras esmorecem quando já não conseguimos imaginar a voz que as quis para nós; as palavras vão se esfumando no horizonte, como se esfumam todos os nossos desejos quando a nossa vontade não lhes empresta força.
A tua letra miúda, corrida, o ritmo sincopado de algumas passagens e os dedos compridos que deixaram um cheiro que ainda se sente. Mas não moras já nessas palavras.
Ou mesmo que mores, elas já não são um convite para entrar, subir e ficar preso a ti enquanto anoitece, na janela em frente ao mar.
Mudei e tu mudaste. Confesso-te que talvez saiba que essas palavras ainda existem, ainda valem. Mesmo contra mim e contra ti e o que o caminho nos trouxe depois.
Mas já não moras nelas. Nem tu, nem os teus cabelos longos que tiveram outras noites que os agitassem; outros sonos numa praia qualquer.
Mas as palavras são minhas, minhas porque as guardo. Tuas porque as não voltas a pisar; a encher-lhes de tinta negra o corpo.
Por isso, larguei as palavras. Dei o meu corpo como tela onde passa a memória que tenho de ti - e podes ser inteiramente tu e inteiramente minha, apesar de já não estarmos juntos.
Moras em cada entardecer, em cada um desses desmaiares dourados, com cheiro a espuma e sabor a areia molhada. Nem eu te diria as mesmas palavras, nem o ritmo delas nasceria igual.
Ao morares dentro de mim e eu dentro de ti, somos um do outro, mesmo que a voz que usamos em tempos, não exista mais.
Não te prendi nas palavras e imagino que me não tenhas guardado nas minhas. Em cada pôr-do-sol imagino-te a mudar: uns dias um dourado espesso e noutros um escuro fundo e triste. E cada dia as palavras mudam e quase posso oscultar-te. Saber que os teus cabelos não brilharão tanto; que provavelmente estarás na mesma janela muito quieta com ondas desenhadas no espelho do olhar. E o meu corpo como tela - a tua memória de encontro a mim como o sol de encontro ao azul do céu. É essa a verdade que não mostramos a ninguém - a que te esconde nos raios de sol para te revelar a mim.
O tempo passou e o papel continua comigo - a tua letra e o teu cheiro. Mas já não moras nas palavras. Vives em cada dia que morre e, talvez, depois de algumas outras cartas, de alguns outros corpos, um dia nos encontremos para que a tua letra miúda e corrida me conte o que viveste nesses dias que foram morrendo. Talvez te conte também o que o tempo me foi trazendo: todas as vezes em que fui ver o mar ou em que passei perto de alguma coisa onde estava presa a tua lembrança para a apanhar. Ou não.
Mas sei que morarás sempre em cada pôr do sol, contado numa letra miúda e corrida, num céu de papel.

Quoting

"Faz tudo como se alguém te contemplasse."
Epicuro.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Paz

Entrou. A igreja vazia, como ele gostava. Um silêncio que fazia tudo parecer um doce embalo. A luz a beijar docemente a madeira dos bancos e o ouro dos altares floridos. E finalmente o espaço que o tempo que corre, lá fora, não deixa encontrar.
Estranho como na ausência tudo pode estar mais presente. Estranho como no silêncio se pode ouvir mais. Nunca se sentia sozinho, nessas horas só suas.
E depois delas levava paz - como um segredo feliz para revelar no caminho.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

"Gó"

Gó é uma dessas pessoas que provam toda uma vida; que nos amaram o corpo pequeno e nos colheram as lágrimas e nos viveram a vida por dentro. Olho para trás e vejo-a sempre lá - os cabelos negros e compridos sempre compostos num puxo no cimo da cabeça. As suas mãos grandes que o tempo foi marcando mas que seguraram nas minhas sempre com a mesma força.

A sua bata negra e escura e os olhos muito vivos - a gargalhada fácil como quando o amor se esconde debaixo de cada palavra. As suas histórias que são as da minha família - as asneiras do meu pai que ela me conta; o amor que tem à minha mãe; o coração enorme do meu avô que os ajudou a todos. E a gratidão que nos guarda por isso. E chora de saudade pelo meu avô.

Gó tem a lágrima fácil e o seu amor é feito das exclamações que lhe marejam os olhos. E aperta-me muito a mão quando me vê. Fala-me do meu irmão e de como nós também somos dela - de todas as vezes em que quisemos os dois ver matar as galhinhas ou ver como se faz a marmelada e todos os doces com as coisas das quintas.

O tempo passou pela casa onde ela mora connosco mas sei que nos seus olhos ficaram gravados os nossos primeiros passos e cada uma das nossas conquistas que ela exibe orgulhosa. Ela sabe que em cada uma delas viveu essa teia invisível que nos une a todos.

Gó é o rosto da lealdade - o seu corpo já pesa mas há essa fé que a levanta todos os dias. Não sei se alguma vez lhe disse que a luz dos seus olhos me iluminou sempre o rosto. Mas noto-o de cada vez que páro para visitar os cheiros e as memórias da minha vida.

Os dias felizes; os dias menos bons e sempre a mesma luz. Hoje percebo que havia sempre a acalmia dos seus olhos. A simplicidade das suas palavras - cada uma delas feita do açucar que lhe povoa as receitas.

Há pessoas que nos vivem a vida por dentro. Que cozinham um amor desses amplos, luminosos e profundos como uma janela aberta no início da Primavera.

Sei que encontrarei sempre a Gó nesse jardim cheio de sol onde cresci e onde o seu sorriso branco me lembrará a pureza que lhe forra o coração.

Nos seus braços, ao lanche, na sala grande onde nós, depois de tantos anos, a conseguimos convencer a sentar-se connosco, a vida volta a ser feita desses rituais em que o mundo não entra.

Onde só mora um rosto doce, umas mãos grandes e uns olhos acesos e verdes.

Ouvem-se palavras e as horas fogem-nos por entre os dedos.

E sabem a açucar, como o das receitas.

Como o do seu coração.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010