Rewind

sábado, 18 de julho de 2015

Avô,

se pudesses, Avô, descer a escada do tempo

e encontrar-me cá em baixo no princípio

íamos os dois a tempo de um cigarro no jardim

íamos os dois a tempo de dizer um ao outro das saudades

que nos ficaram como frutos suspensos no lado de dentro dos braços


se pudesses, Avô, levar.me, de novo, no carro para a Aparecida

eu a ter que me sentar no banco de trás por ser pequeno

e tu a tempo de dizer,

Já não falta muito! E depois vens comigo aqui ao lado!

íamos os dois a tempo de regressar ao teu passado

e de ficar sentados na soleira da porta esquecidos de partir


se pudesses, Avô, ver como o A. se parece contigo

e como eu penso que nasceste nele de novo só para eu não ter que andar sozinho

íamos os dois a tempo de lhe dizer,

Gostamos muito de ti

e de ficar felizes por as palavras se poderem levar nos bolsos para toda a vida


se pudesses, Avô, ver como a Avó foi a escolha certa

e como continua mais bonita por causa do que lhe deixaste agarrado à pele

íamos os dois a tempo de lhe dizer,

Obrigado

e de ver a maré cheia dos olhos de quem se sabe amado para sempre


se puderes, Avô, ver como tudo ainda te espera

pede para voltares nem que seja para um cigarro no jardim

só para eu ir a tempo de te dizer,

Quando for grande quero ser como tu

(mais uma vez)

e, mesmo não fumando,

fumar contigo no jardim da nossa casa

as saudades que me ardem no silêncio que ficou.

RM

sábado, 4 de julho de 2015

Avó,

o rapaz aprendera a ver o céu nos olhos de M.

M. tinha o hábito de lhe sorrir como uma janela aberta num dia de sol

e o rapaz gostava disso.

disseram-lhe na escola,

o céu é azul, R.

e para sempre o céu havia de estar nos olhos de M.

porque aquele fora o azul mais bonito que ele vira.

porque esse era o lugar onde repousavam todos os que M. nunca deixou morrer.

porque esse era o caminho mais curto para casa.

(sempre.)

e o rapaz tinha tanta pressa de chegar a casa.

M. sorria-lhe todas as vezes como se a espera, finalmente, não fosse doer mais,

R, meu amor, como foi a escolinha?

R., antes das palavras, quis dizer com um abraço que confirmara que o céu sempre era azul.

azul-só-meu,

as crianças inventam sempre amores egoístas como se fossem levar no bolso dos calções curtos um segredo que o mundo guardou só para elas.

azul-para-sempre,

que o céu é o lugar das coisas que não morrem.

e R. quis passar todos os dias da vida dele com os olhos postos no céu

raio do garoto!

R. aprendera na escola o que o seu coração descobrira, muito antes, escrito no lado de dentro da pele

nos olhos de M. ficavam todas as coisas sem nome.

subir vinte escadas sem nunca se cansar só para dizer

Vovó!

descer vinte escadas sem nunca deixar de ter medo e olhar sempre para trás

só para dizer

Milinha gosto muito de ti, malandra!

Ouviste?

M. ouve no escuro, M. sabe que R. há de ser sempre o rapaz que descobriu o céu que havia nos olhos dela.

ao rapaz disseram na escola,

o céu é azul, R.

R. sorriu, feliz

e disse como se visse, mais uma vez, os olhos de M., sua Avó,

pois é, e o azul é a cor da esperança.

(Obrigado, Vovó.)