Rewind

sábado, 25 de fevereiro de 2017

glossário,

pelo natal ou pelos teus anos, não sei, mãe,
mas hei de dar-te um dicionário,

ris-te, eu sei, mas eu insisto - um dicionário, sem embrulhos, sem enfeites
- um lugar, apenas, onde possam existir palavras para ti, para o teu amor
e para as coisas que vi pendurado na varanda florida dos teus ombros.

procurarás por mim nessas páginas, eu sei, mãe,

mas o dicionário que eu te der falará de olhos como se fossem janelas,
falará de abraços como se fossem portas,
e de mães como se fossem casas

dos verbos dirá de todos que se conjugam melhor no gerúndio -
caminhando, esperando, encontrando, sorrindo, perdoando -
amando - como se fosse o som do próprio amor que se pudesse ouvir em cada uma das páginas
e o vento passasse, malandro, a apregoar em todos os cantos a nossa alegria

um dicionário no fundo da tua cama, mãe, que achas?

para ti, que me ensinaste a chamar as coisas por todos os nomes que elas podem ter,
a acreditar que os verbos conjugados no futuro -
caminharás, esperarás, encontrarás, sorrirás, perdoarás -
amarás - te teriam sempre a ti na outra ponta do caminho
e que o desconhecido, de alguma forma, me traria sempre de volta

um dicionário para ti, mãe,
só para falar das palavras que tu inventaste para me fazer feliz,
do tamanho superlativo do teu coração
e da infinita aliteração da saudade em cada um dos teus beijos

que achas?

quero, mãe, que saibas que te agradeço eternamente o teres-me  ensinado a falar com palavras que não existem,
a abrir janelas que mais ninguém vê,
e a poder voltar a casa cada vez que penso em ti -

obrigado.

um dicionário de um filho para uma mãe para lhe lembrar que foi ela quem o ensinou que há tanto por inventar - palavras, beijos, abraços, pretextos - sempre uma qualquer forma de voltar.

por isso, o dicionário, mãe, dirá sempre duas coisas:

1. Obrigado. 

2. Eu volto. 

Um beijo do teu filho, 

Ricardo

PS: Mãe, apesar de todos os nossos desacordos ortográficos, eu sei quanto de mim se escreve graças a ti. 

Amo-te.


RM|XXV-II-MMXVII

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Avô,

13.02

sabes, os meus poemas são a nossa casa.

neles cabe a roupa dos sonhos que ainda não usamos, existem gavetas que aguardam a meiguice das cartas ainda por trocar, as escadas ainda sentem o som dos meus pés seguindo os teus pelos corredores. 

[sorrindo, sempre]

descobri, avô, que nos poemas o amor não prescreve nunca - há uma primavera que podemos inventar sempre - só para que, da janela, eu possa ver-te sorrir-me e acenar como se me chamasses para dentro de um abraço. 

e, a cada verso, a cada rima, vou colhendo frutos sonhados, trepando árvores imensas de saudade e, assim, acreditando que, no fim, estou mais perto de ti. 

só isso. 

sabes, acho que escrevo para continuar aquele parágrafo que alguém interrompeu há já 17 anos e que nunca consegui terminar -  connosco a poesia pode ser simples e falar de campos verdes e tardes de conversa num banco de um terraço qualquer. 

connosco e sobre nós as coisas podem ser ditas com pouco - eu queria ir e sabia que me esperavas e isso foi tanto - foi tudo. 

mas, avô, escrevo sobretudo para poder voltar à casa de onde nunca saí nem te deixei sair - falo como quem se repete, sorrio como quem reconhece o cheiro de cada lembrança, como quem veste um casaco que nos conhece o corpo e nos serve na perfeição como um abrigo. 

assim, de alguma maneira, o parágrafo continua - por cima da dor, da distância, da saudade, as palavras constroem um terraço que, como um ventre generoso, nos acolhe, de novo, aos dois somente para que seja possível mais um abraço, uma gargalhada, um conselho, uma ajuda ou apenas o silêncio fundo em que o amor verdadeiro se ouve melhor.

fujo tantas vezes para as palavras só para te lembrar - continuo a passar no mesmo passeio e a olhar a janela do teu quarto; continuo a sentar-me no terraço, no mesmo banco e a ter fé no verde que renasce nos campos que percorri contigo tantas vezes. 

fujo para tentar calar a saudade, ou para ouvi-la melhor, não sei. 

sei, avô, que ainda me fazem muita falta os teus abraços e que, até ao fim, os meus poemas falarão disso. 

não sei quanta poesia pode caber num abraço ou com quantos versos se cansa, finalmente, a saudade. 

não sei mesmo. 

mas, avô, se puderes ouvir isto, sabe que alguém ainda olha a janela do teu quarto e te espera no mesmo banco do terraço. 

se conseguires, recebe nas palavras o abraço que eu não te posso dar. 

e, se te deixarem, pede para vir ao vidro do teu quarto e acenar-me. 
só para que o parágrafo se possa escrever 

e um poema nos guarde aos dois abraçados para sempre. 

Parabéns, Avô. 

RM| XII-II-MMXVII

domingo, 5 de fevereiro de 2017

o caminho de casa, mãe

se os versos fossem um caminho, mãe, 
quase como uma estrada que se estende como uns braços abertos
ou, então, um atalho trapalhão que se inventa só por causa do amor
os meus poemas falariam todos de ti, acredita

eu sei, mãe, que a poesia nos abre as janelas
que, sim, parece levar-me, às vezes, para longe - 
é o mar que chama, é o vento que passa a perguntar
e eu vou com eles - 
a tempo de ainda ver arder todos os poentes
a tempo de emendar a imperfeição dos dias ao colo do sonho 

vou, sim, mãe, tu sabes.

às vezes, nos poemas ainda pode ser verão - 
a pele anda nua, 
os versos crescem como as ondas que dançam ao luar
e as horas espreguiçam-se devagar 

por isso, me demoro, eu sei, 

[desculpa]

sabe, mãe, que ando apenas a ouvir do mar a repetição doce de um segredo 
e que o vento, às vezes, até me traz de casa o cheiro doce do teu perfume

por isso, mãe, não sofras

se os versos me atrasarem
põe-te a imaginar o mar feliz deitado inteiro numa praia no verão 
sente do vento morno a meiguice que te lembra um sorriso meu 

e espera por mim, 
eu volto. 

vou só aprender do mar segredos que ainda não sei
e ouvir do vento as histórias todas que ele traz no bolso 
só isso. 

se eu chegar tarde, não te preocupes
as janelas estão abertas - é verão 
eu trepo o muro e entro. 

na areia, deixo o teu nome escrito mil vezes

só para te agradecer tudo - só porque sim.

eu sei que o mar sabe guardar um segredo 

mas que o vento, malandro, te vai contar tudo. 

não importa. 

obrigado, mãe, 

por me ensinares a amar o mar,
o vento, 
e pelas janelas sempre abertas -

como num abraço 
tu só as fechas quando eu chego
e isso basta.
   
RM| V-II-MMXVII