Rewind

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

avô,

A tarde caía sobre o verde - ao fundo, os ruídos do bulício dos homens e dos corpos sob um céu aberto em fogo. As vindimas chegaram - a terra enche-se de passos e mãos laboriosas e de gente que me habituei a ver seguir a tua voz.
Os seus corpos estão mais fracos - são como pequenos vestígios da força que tinham na minha infância, mas os seus olhares dirigem-nos a mesma ternura.
Somos bocados da história das vidas deles - guardam no fundo do olhar o respeito que queriam dar-te a ti, mas que quem recebe sou eu.
Antes de me verem chegar, ouço-os falar de ti - há um carinho na voz que revela a saudade de terem alguém que lhes aliviasse as dores da fome e da miséria.
Foste o amparo daquela gente toda - só hoje vou sabendo o que tu nunca me contaste, mas que te pôs cativo no coração de tanta gente. Devem-te tanto.
Sempre suspeitei dessa tua lisura e atenção ao outro - desse teu confiar no carácter como sismógrafo da consciência.
"- Menino, no tempo do seu avozinho é que era. Os meninos sempre ao redor deles."
E lembro-me de mim e do A. nas ribanceiras nessas tardes em que nada ia acabar, de ti e da avó nessas picardias que vos faziam mais cúmplices até ao fim.
Esta semana faltaram-me coisas demais - fujo para o verde para ouvir esses ecos de um tempo em que o mundo era como uma sucessão de encontros felizes.
E, enquanto os empregados falam de ti e de nós maravilhados contigo, são como testemunhas das coisas que ainda vivem e viverão em mim.
Soube-me bem que me pusessem as mãos nas costas - agradeciam-me que o teu ocaso tivesse aliados nesse desafio de firmar um compromisso com a terra e as pessoas.
"- Como o tempo passa, menino. Mas a sua avozinha é um exemplo. Não há quem a derrube."
Falam-me na minha avó e, no silêncio, quero que o que dizem se torne a mais absoluta das verdades; se imponha sobre o meu medo como um dogma de ferro.
Para eles, eu e o A. somos a continuação dessa gente que lhes compôs a vida, que foi o chão dos seus passos humildes e agradecidos.
No meio daquela gente, longe do ruído estéril da pompa, senti-me inteiro - esse R. que fazia os teus olhos sorrirem de orgulho.
Esta semana voltou-me a recordação do adeus que o teu corpo me impôs. Mas, ali, havia essa verdade que aquelas pessoas me diziam, me confirmavam ter existido - nós, frutos desse mesmo sangue que nos fez um do outro.
Quase acreditei que chegarias e dirias, de novo:
"- Já viram como estão os meus netos? São um orgulho."
Fazes-me falta, avô.
A tarde despedia-se com calma - os dias, no entanto, mais apressados e com o sono mais pesado, duram já menos.
Mas, no meio daquelas pessoas que ainda resistem sobre o abalo do tempo, tudo pôde ser esse mar de tranquilidade que o teu nome fez nascer no meu peito.
Todas as perdas me lembram da solidão.
E a solidão lembra-me de ti.
E desse dia em que ela ficou mais funda.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

avó,

A noite caía - no silêncio boiava uma tristeza que se infiltrava nos ossos com o frio que chegava.
Olho-te da porta da igreja - não me vês ainda e admiro a tua força, essa tua vontade de não deixares um bocado de ti perdido no mundo, mesmo no fim.
Há um apelo que me acorda no peito - os teus olhos azuis como uma longa manhã de primavera, esse teu corpo frágil que esconde uma força que verga a dor, que verga o vazio.
Finalmente os nossos olhos encontram-se e o teu rosto acende-se, de imediato.
Corro para ti - sei que nos habituamos a chamar um pelo outro pela certeza de que partilhamos um lugar só nosso.
Ficamos lado a lado - eu com vontade de te poupar daquela despedida que me doía por me lembrar que as coisas acabam.
Durante a tarde lembrei-me de ti e do avô quando nos viam brincar naquele verde imenso que tinha um calor que sabia a paz.
Ouço palavras lançadas sobre a noite que principia - e pergunto-me se algum dia posso ver-nos o fim: o fim daquilo que foi a minha vida até hoje - essa família com um chão de granito que o mundo não pode abalar.
Faltam-me as palavras e os pensamentos ficam imersos nesse impulso que tenho de te amparar - não me quero perder, não quero deixar de ser a pessoa que ajudaste a fazer mais funda e que vive mais feliz por te saber nalgum lado a desejar-me coisas sem a medida dos homens e da vida.
Fomos cúmplices nesse crime de fazer da vida uma viagem sem destino - ambos nos queremos, no fim, perto um do outro.
E rezo, em silêncio, com uma vontade que me morde para que fiques.
Há uma multidão que nos rodeia - a tua mão procura a minha e prende-se nela com força. Os maiores amores são clandestinos, vivem desses gestos que o mundo não vê.
Sei que me escolhes, que te abrigas nessa promessa de eternidade com que aprendi a dizer a palavra avó - sabes que quero que me procures para que da noite da vida, sempre nasça a luz.
Há um sopro ácido dentro do meu peito que me dói - o toque da tua pele e os teus olhos fixados em mim, apagam o mundo.
De súbito, nada mais existe - há esse momento em que a vida triunfa sobre a morte. Vingo-me dela com a força da minha mão na tua, numa noite infeliz.
Agradeço-te tudo o que torna a tua lembrança um manto de luz e acredito que, no meio da noite escura em que ambos perdemos, haverá alguma justiça em desejar que nos deixem ficar presos um no outro pelos laços que o sangue e a cumplicidade forjaram esses anos todos.
A noite chega, enfim, manchada das lágrimas que choras dentro do peito e mais ninguém ouve.
Eu ouço-tas - e com esse estar contigo num momento em que verde não se parece com paz, digo-te que, apenas nos perderemos um do outro, quando um dia de mim se perder a minha vontade.
Quando, um dia, eu me perder de mim.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Tio,

Habituei-me a identificar esta família pelo azul dos olhos. Cedo percebi que, na mesma casa onde nasceu a minha avó, nasceram outros tantos que me ensinaram quem eu sou.
O azul dos olhos escondia esse apelo do sangue que vos fez maiores - deixam na vida uma lembrança que destrona o medo; há um rasto vosso que nos diz por onde ir.
O Tio será sempre o mais novo de uma casa grande onde os afectos eram carícias sobre as feridas que o mundo nos deixa para curar pelo caminho.
Lembrá-lo-ei sempre por me ter agradecido o amor que guardei à minha avó desde o primeiro dia. Por ter reconhecido nessas duas crianças que cresceram sempre a mesma devoção.
Aprendi a reconhecer o amor que tinha pela minha avó - doente conduzia para a ver - e logo aprendi que há caminhos que percorremos para podermos viver.
Uma raça, uma família, um nome constroem-se desses testemunhos que não nos deixam esquecer quem nos pertence e quem serve para testemunhar que há, de facto, valores maiores do que o tempo.
A hora do adeus não chega entre nós - em silêncio, no meio da multidão, há uma casa que visito e reinvento no meio da solidão que dói hoje. É a casa que vos abriu a janela do mundo, mas manteve o chão assente nesse pilar que é o amor.
Ao meu Tio que já não me ouvia eu digo - obrigado.
O nosso nome faz-se maior do que a vida sempre que não ignoramos o milagre de pertencermos a um caminho que foi feito para nos pertencer a todos.
O meu sangue chama por essa casa inteira - e secretamente deseja que o Tio tenha encontrado todos os que sempre esperaram por si.
Digo-lhe que os encontre e lhes diga que aqui, no meio do caos, alguém sabe que no fundo dos olhos azuis desta raça sempre existiu essa força maior de desafiar o fim com uma vontade de voltar onde somos precisos.
Fico por aqui, meu Tio.
Um dia, quem sabe, sob o azul dos mesmos olhares, nos juntaremos para continuar aquilo que sobra numa vida que nunca chega.
Obrigado.
Até sempre!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Nós.

Na minha família há um nós. Há sempre mais alguém que se junta na longa mesa de jantar; há sempre alguém que já morou nas paredes daquela casa - bisavós, tios e primos que se juntam debaixo desse abrigo da vida que me ensinaram ser os afectos.
O singular nunca me pareceu inteiro - a minha vontade nasce com outros nomes bordados nos desejos que ponho no caminho.
Nunca me senti sozinho na minha infância - e ir crescendo é, irremediavelmente, encontrar sentido depois da perda. Debaixo dos olhos do meu avô, da Gó, da minha mãe, da minha avó a vida parecia uma sucessão de promessas feitas de aço e do calor dos corpos.
Acreditei que a vontade de estarmos juntos chegaria sempre para fintar a morte e prolongar a linha da vida sobre os abismos do mundo.
Houve um dia em que os dias começaram a ter lugares vazios, palavras que não podiam ser entregues com a força de um abraço ou de um passeio ao fim da tarde. Não havia essa facilidade que empresta ingenuidade ao amor.
Hoje gosto de amores difíceis - desses que nos dominam com uma violência que aprendemos a bordar com as memórias desses tempos inteiros e serenos de quando o mundo nos esquecia.
A tarde caía na casa - a minha mãe e a minha avó tinham estado a conversar.
Fiquei sozinho com aqueles olhos azuis que são como um pedaço de paz no meio das dúvidas que cirandam nas veias.
A minha avó sabe que tenho medo.
"- Um dia vou ter que ir, meu filho." - diz-me ela. "E não quero que venhas atrás."
A minha avó, enquanto diz isto e sorri, sabe que certos amores são como vícios - temo-los no peito com raízes em hábitos que nos habituamos a cumprir como numa espécie de sacramento.
"- Um dia vais casar, ter filhos, vais ter momentos de uma felicidade imensa."
"- E se não estiveres lá, avó?"
"-Filho, nunca te esqueças que os meus olhos vão procurar sempre os teus."
Para mim amor é uma palavra que se conjuga no plural. E, quando se ama da forma como nos amamos lá por casa, a verdade é que tudo podia ter continuado na mesma, como se a vida não acabasse.
A grande lição da minha vida é que não acaba - o amor é como uma escolha que se faz acima da finitude dos corpos e dos tempos. E a minha avó escolheu segurar a minha mão numa estrada que há-de continuar depois dela.
Revelo-lhe o meu amor nessas tardes de doces e de travessuras que a fazem rir muito com o olhar aceso de malandrice e de orgulho.
Despeço-me - "gosto muito de ti, avó."
E, então, percebo que tudo pode mudar, mas que certos desejos continuam cravados no coração das pessoas como o nome que têm ou a alma que guardam.
Há sempre um abraço apertado entre nós - sou eu dizer: "avó, e os meus olhos vão sempre encontrar os teus."
E eu sei que ela me ouve.
E acredita.

carlos mesquita & sérgio leitão@fórum da maia.


quarta-feira, 14 de setembro de 2011

M.

E se algum dia me afastar de ti,
E se algum dia me esquecer de nós,
Vem procurar me onde eu estiver
Não penses que eu sei ser sem ti,
Pois sou apenas um aprendiz de Viajante.

domingo, 11 de setembro de 2011

noite.

No meio do jardim havia um banco virado para a cidade. Nas noites de Verão, o meu avô esperava o cansaço do corpo envolto no silêncio. Eram noites amplas na minha vida de criança - não sabia, ainda, que há noites das quais nascem dias mais vazios.
Sentava-me e o meu avô queria saber de mim - a sua voz era serena como são as vozes das pessoas a quem a vida pouco pode roubar ou deixar por fazer.
Ouvia sempre essas histórias - o meu pai pequeno e os meus tios - e o meu avô com essa força de os querer grandes, protegidos do mundo e das agruras da vida.
Falava-me da minha avó - o seu olhar iluminava-se e via-se que a admiração profunda era o chão daquele amor.
Contava-me como a mãe lhes falava junto à lareira da casa a que todos voltamos hoje - essa mulher que ensinou ao meu avô a ternura que nasce do exemplo. A lareira era o lugar dos afectos - e bem o sabe o meu tio Arnaldo que canta a mãe e os irmãos nos poemas que são linhas de saudade.
O meu avô deu-me a mim e ao A. isso que viu acontecer com ele - há pessoas que se tornam nossas cúmplices nessas horas escondidas do mundo, que se tornam cúmplices nesse crime maior de desejar um amor sem tempo, sem lugar.
O meu avô era o meu herói - há essa admiração que me nasce do desafio que ele vincou no caminho dos dias - não havia cansaço, não havia fim para essa vontade de erguer uma fortaleza que nos desse do mundo uma perspectiva segura e doce.
O meu avô adorava a minha mãe - falavam muito os dois e ele via nela características que lhe agradeceu por as ter posto nos seus dois netos preferidos.
A cidade adormecia - à volta dos meus ombros, o braço firme do meu avô e esse sentimento de triunfo sobre o mundo que me acompanhou os dias de criança.
Todo o amor completo nos faz um pouco egoístas - pode-se esquecer, por momentos, o mundo; esquecer para lembrar melhor. Para lembrar essa dádiva de termos alguém que nos cose no carácter a devoção, ecos de coisas que são maiores do que os códigos do mundo; maiores do que o medo.
O meu avô nunca teve medo - amou-nos com uma escala que vence o vazio; que nos fala do lado de lá da solidão, para que ainda o possamos ouvir.
Hoje a minha avó senta-se comigo - falo-lhe eu do marido que foi o meu avô. Agradece-me, em silêncio, que lho lembre; que me lembre dela comigo ao colo. Que lhe fale do espaço que eles os dois têm na minha vida.
Ela sorri - adivinha que eu e o A. jamais os esqueceremos.
"- Sei que tu e o A. vão ser grandes." - diz-nos ela, sem nunca suspeitar que, naquele lugar, o meu avô nos disse o mesmo. Eles acreditam que connosco a família, a mística, o passado, a memória não morrerão.
Com um abraço que lhe dou, com a noite a cair sobre o mundo, quero responder-lhe que, graças a eles, a esta família que fizemos, pude ser maior.
A maior grandeza foi a que descobri amarrada no amor que lhes tenho.
E essa, como eles sabem, nada pode igualar.

mãe,

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
Sophia de Mello Breyner Andresen

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"Uma vida boa, não é uma boa vida"
Maria José Nogueira Pinto

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

do terraço.

Do terraço, a paisagem é como um corpo verde que descansa, sob o olhar do céu. O casario é como um bordado posto na paisagem pela vontade dos homens.
Vinhas a perder de vista, pequenos muros e pássaros num voo veloz e certeiro. Ao fundo, tanques como espelhos de água - aliados nesse hino de ampliar a beleza de certos lugares.
O meu avô nasceu para o mundo naquela casa e o mundo nasceu para ele com aquela forma de um sol como uma cascata de fogo, silêncio a boiar num ar de cristal e o cheiro das camélias que a mãe e as avós tinham plantado.
Há uma fotografia sua, em menino, agarrado à mãe no recato daquele jardim - era uma criança com um olhar sério mas fundo, com a meiguice desenhada na forma como olha para a mãe, que sempre se quis amparada por ele.
A roupa era ligeira e em tons claros - talvez fosse Estio, com esses rigores que o corpo finta com a leveza das cores e dos tecidos.
O mesmo lugar de sempre - as copas das árvores enormes, o mesmo cheiro e, hoje, os frutos que nós somos a pisar o mesmo chão. Na verdade, aquele jardim sempre me pareceu uma promessa de felicidade - ali, ao arrepio da vontade do mundo, posso ensaiar essa valsa dos afectos que, na vida, sempre me sobrarão para um tempo que não chega.
A minha bisavó tem no rosto um sorriso pequeno, mas onde se nota um olhar aceso - a cumplicidade acende no corpo uma acalmia imensa.
Visitei esse jardim sozinho - hoje, o meu avô já não chega da eira encantado com mais essa promessa que a natureza fez e cumpriu.
Mas, ali, no ventre escondido da casa posso ser parte desse fragmento de vida que é como um panteão de memórias que não se deixam morrer.
Desse terraço, o mundo parece um esboço de felicidade e eu sei porque o procuro. Aí, a mudança como que não sucede e sentimos, nós os que sofremos, que o mundo não se apressa para atraiçoar as nossas dores.
Tudo é como um cenário engalanado - todo luz e rumor de água que se perde para dentro de uma boca em ferida nos vales em brasa. E, de súbito, tudo se parece sempre e muito àqueles dias em que se chegava e a felicidade começava a acontecer.
O vento ouve-me os pensamentos e põe no verde das folhas que balançam a ternura da esperança que adoça os corações dos homens.
O vale é o lugar onde sinto que o teu nome mais existe - do chão a que tu dedicaste a tua vida, ainda há vida que nasce. Ainda há vestígios do teu amor pelas ramadas altas do tempo dos teus e da tua meninice.
Chego ali para me sentar a uma mesa - e não me sento sozinho. Comigo mora o exemplo desses afectos grossos como paredes de mosteiros, desses dias de trabalho e de esforço que imprimem no carácter dos homens a humildade e a gentileza.
O cheiro das flores balança no ar e perde-se de encontro a um dia que abriu num azul puro e cristalino.
Todos me ensinaram o gosto de estar perto - e é isso que procuro na casa mergulhada no silêncio. Estar perto - perto dos que me amaram e me fizeram com o exemplo e de mim.
A tarde cai sobre o verde - começa o silvo da noite e, dali, de onde vejo o mesmo de sempre - inteiro e uno - quase acredito que os teus olhos me seguem e me amparam.
O cenário estava montado e no escuro da noite, um eco dentro de mim diz-me:
A felicidade aconteceu.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Gó.

A Gó era ainda uma criança quando a vida lhe pôs o trabalho na esquina de uma infância que nunca chegara a começar.
Quando jovem era uma mulher alta, os cabelos negros muito densos e compridos - e um puxo laboriosamente posto na parte de trás da cabeça.
Os seus dedos são longos e o seu rosto embainhado de uma luz serena quando me diz o nome ou nos ouve - a mim e ao A., a alimentar a veia jovem da minha avó com provocações que nascem desse carinho genuíno da intimidade.
Chega sempre com o seu passo largo e firme ao cimo das escadas e vem receber-nos com um sorriso onde se revela a dimensão do que nos pôs pedra dentro do coração dela.
A Gó é uma espécie de feiticeira do carinho, da dedicação - a cozinha e a casa dos meus avós era o lugar de onde se habituou a ver o mundo e onde todas as suas feridas fecharam.
A cozinha era um mar de cheiros, todo um desenrolar dos sentidos como numa mística de que só ela soubesse o segredo.
Ela foi a maior amiga dos meus avós - e uma das pessoas mais importantes da minha vida. Sempre me senti íntimo de Deus na presença dela e da sua fé que, a mim, me fez sempre sentir protegido de tudo.
Fui muito à missa com ela em pequeno - segurava-nos nas mãos tenras e, de novo, podia ela ser criança, encantada com as travessuras dos dois seres que ela mais amou na vida.
Os seus olhos são verdes - desse verde dos campos na aragem fresca da Primavera. A minha vida está toda guardada no fundo deles - as pessoas que mais nos amam são os únicos guardiães da verdade da nossa vida e só elas nos podem escrever a biografia.
A Gó falaria de nós com frases curtas e esse sorriso que lhas corta, enquanto no rosto se nota essa avalanche que ela não consegue nomear mas que sabe ser amor.
As lágrimas nascem como contas muito finas na dobra dos seus olhos - só ela sabe a receita que cozinhou a minha família. Viu tudo o que veio antes daquela casa ser o palco onde o meu papel e do A. se tornaram para ela os principais. Dela ouvi as descrições mais bonitas da minha avó e do meu avô, da minha mãe e do A.
Pintou-os com o traço claro dos sentimentos nus, escondidos na dobra da pele e com essa verdade feita da matéria composta do amor.
Quando olha para a minha avó ela admira a mulher e rende-se ao tamanho da vida que ela fez nascer dentro daquela casa. Mas a Gó foi sempre a cúmplice desse crime quase perfeito de fintar a morte com a firmeza do sonho e da ambição.
Eram momentos verdadeiramente bons os desses lanches no quarto da costura, enquanto ela punha o carinho em doses abundantes numa conversa que a fazia rir.
A Gó chorou todas as desgraças da casa - ainda me lembro do que se apagou no seu rosto no dia em que o meu avô nos deixou.
Fala muito dele e, às vezes, cobre o nome dele de silêncio - como eu, ela sabe que nada pode igualar a dimensão de um homem que viveu numa vida mais futuro do que eu.
A casa e os seus armários enormes repletos de rendas, linhos, lençóis, monogramas bordados nas toalhas com o nome que usamos todos dentro do peito são terreno de ordem e lei - são a jurisdição da nossa Gó que nos põe no cheiro da roupa e no amaciar da rotina um pouco da poesia da vida.
Aprendi a rezar com ela a um Deus bom - ela, de certa maneira, é um modelo daquilo que deve amparar os homens nas vertigens do caminho: um desejo de bondade bordado no peito; um desejo sincero que a casa se faça grande e as suas gentes cresçam por entre as trevas do mundo.
O maior amor é como um raio de luz que a Gó aprendeu a esperar das duas crianças com que ela sempre se sentiu igual.
Não lhe vou conseguir agradecer nunca. Visito-a e a saudade nasce maior no momento em que saio com uma espécie de consolo - estive com o R. que ela faz nascer, de novo, em mim.
Uma criança alegre que ela envolveu com dias de uma paz toda como um doce balanço sobre um chão firme que não se movia.
Procurarei sempre por ela - ela celebrou a minha vida como os meus e nasceu no seu coração uma alegria que tornou o seu amor por nós talvez a forma mais insuspeita de amor que já tivemos.
Não há Gós neste mundo - ainda hoje duvido que milagre foi aquele que a pôs tão junto a nós com aquele carácter que não consigo igualar.
A grandeza das pessoas vê-se na forma serena com que abdicam por nós - o corpo cansado daquela mulher absolutamente incrível nunca quebrou em nome do amor que nos tinha.
A minha família deve-lhe tudo - forjamos com ela uma aliança que subsiste para lá das vagas do tempo e o nosso nome confunde-se com o dela.
"- Gostamos muito de ti, Gó."
"Ai meninos, e eu?" - e tu, minha malandreca, gostas tanto que os teus ossos te doem porque o corpo sabe que esse impulso subsiste mesmo que um dia ele falhe e o mundo também.
Obrigado.
A gratidão empresta ao amor essa tonalidade humilde e serena da certeza de que, mesmo que isto não faça sentido nenhum, há pessoas que provam que o sentido pode ser uma linha recta e absoluta desenhada a direito sobre o coração.