Rewind

domingo, 23 de fevereiro de 2020

13.02| Avô,

Meu querido, 

Este ano demorei, não foi? 

Sei que, mesmo assim, tu ouvirás que sempre te chamo. Trago, Vô, os bolsos atolados de coisas que só te queria dizer a ti e, os meus olhos, no deserto de certas horas, sonham uma porta por onde me venhas buscar, 

Pequeno, vem cá

E haver um banco de um jardim qualquer onde nos sentássemos os dois - acho que ia querer fumar um cigarro contigo - eu a pedir-te alguma esperança emprestada. 

Não irias emprestar-ma, meu velho, irias dar-ma, eu sei - o teu coração que foi sempre a mais completa, inteira e generosa das promessas que a minha vida teve. E tem, até hoje. 

Pergunto-me, muitas vezes, se me reconhecerias - o mesmo neto que se abriga, até agora, na certeza do teu amor. Gosto de acreditar que sim e que me reencontro contigo nos rituais que cumpro para lembrar o mundo do teu nome.

Cá de dentro, deste lugar onde a vista para ti é privilegiada, continua a ver-se tudo, continua a mesa posta, continua a conhecer-se o caminho para o verde da Aparecida, continua a colheita do que vem do chão que tu seguraste para e por nós - a estrada, eu sei, a apontar o futuro. 

E a tua mestria em derrotares o medo, 

Pequeno, ou matas o medo, ou o medo mata-te a ti!

Mas, Vô, o medo veio depois - nessa altura, não o conhecia, sabes? Nesses anos de luz acesa, de janelas escancaradas, de horas soalheiras, de terraços para correr, de partidas de dominó e gargalhadas fáceis, eu, ao teu lado, nada temia. 

Uso-te, ainda assim, orgulhosamente como um triunfo definitivo sobre o mal do mundo - nunca deixarás de ser meu e de serem minhas e por minha causa tantas das coisas que, até agora, me aquecem os ossos, me apontam o caminho e me amanhecem a tristeza mais funda.

Vales-me a vida toda - por ti, valeu a pena ter vivido - para te abraçar e poder demorar-me, para descobrir que língua falam os corações como o teu - uma língua sem tamanho, repleta de tanta coisa sem nome, um mar infinito de bondade que vem, sobretudo nas horas densas da noite, trazer-me o eco doce da tua voz. 

Lembro-te cada vez mais, meu querido. Quanto mais conheço do mundo, aliás, mais sinto ser impossível consentir, alguma vez, na tua ausência.

Pega na carta que te escrevi e que levaste contigo, para esse lado, há 20 anos. 

Mudou a caligrafia, Vô, e agora há mais medo. 

Pede que te deixem vir ter comigo para um abraço e um cigarro. 

Abraçar-te seria toda a esperança de que preciso. 

20 anos depois, apenas os meus braços seriam maiores que os teus. 

O teu coração, para sempre, o maior que conheci. 

Obrigado por tudo. 

Um beijo, 

- R. 

Parabéns! 

RM| XXIII-II-MMXX

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