Rewind

domingo, 24 de outubro de 2010

Porto.

O Porto tem dias de silêncio. Dias que parecem rumores suaves e distantes como um segredo. Percorrer as suas ruas num desses dias é como poder, enfim, contemplar um rosto sem adornos - na nudez das suas formas, dos seus traços e imperfeições. Eu gosto do Porto nesses dias. A cidade diz-se a ela mesma; o espaço é o das fachadas, das varandas e o tempo é o das flores que nunca se colhem nas janelas. Ruas silenciosas com pequenos rumores do inverno que desperta. O fumo e as castanhas e as horas agora mais rápidas e mais escuras.
Podemos ser cúmplices de uma cidade - aventurar-lhe as vielas e os caminhos mais secretos e é como se lhe percorressemos a alma; lhe oscultássemos os desejos e a vontade mais íntima. O Porto não é um amor óbvio; a sua nudez e natureza não são explícitas. O Porto combina com tempo e permanência; combina com estações longas e nevoeiros cerrados. O Porto é um sítio para se ficar, porque os segredos só se acabam revelando ao familiar e reconhecido.
Há lugares que são uma espécie de compromisso, que representam uma aliança com aquilo que somos e aquilo em que nos tornamos. E o Porto, no seu resguardo cauteloso, é isso mesmo.
Mas amar o Porto é cedo perceber que há sempre, em tudo, a expectativa do afecto, do próximo, do sentido. Poucas cidades têm carácter - e aqui tudo parece cumprir sempre o mesmo nome.
O Porto tem dias de silêncio. Mas mesmo nas varandas vazias e ruas desertas tudo se passa como se apenas se aguarde que a velhota chegue e a roupa se estenda. As flores vivas entre o ferro lembram o gesto cuidadoso de quem sempre as cuida. Os jardins lembram velhices calmas, rostos marcados pela vida como o granito enegrecido.
Do Porto espera-se e o Porto reconhece-se. Tudo se passa como num grande amor: os silêncios também são espaço e nesses dias a cidade cumpre-se e vive-se por dentro. E o sentimento do familiar, da pertença, do acolhimento transformam esses dias serenos e silenciosos num namoro de horas e do tempo. Não há sempre a necessidade do ruído e das palavras - as ausências, os silêncios ajustam a expectativa, serenam o orgulho e aumentam a saudade. E com o Porto é assim mesmo: tudo se forja nessa lealdade cúmplice e longa e cedo percebemos que, afinal, somos sempre mais dele do que ele é nosso.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

resgate.

O escritório com a janela e a sua luz filtrada pela cortina clara. A madeira negra do pau santo e os livros nas estantes. O teu retrato sempre presente. A jarra que ofereceste à avó quando o pai teve o primeiro dente. Os cristais de Murano pousados na secretária com a luz formando um vasto amplexo de cores. E a cadeira onde te íamos surpreender. E uma gaveta que se abre. E descubro, como chegados ontem, todos os postais e cartas que eu e o A. vos enviamos durante a infância. São postais e cartas com essa letra infantil que se vai transformando ao longo dos anos.

São as gargalhadas dessas infinitas tardes de praia; dos banhos de mar e dos livros que se liam.

São as primeiras palavras dos homens que nos fomos tornando debaixo do teu olhar atento.

Tudo isso imune ao tempo. Tudo guardado numa gaveta - o passado que te contavamos com essa alegria imensa que só uma crença absoluta pode gerar. O contentamento de crescer abrigado - debaixo desse abrigo que são aqueles que sabemos nos temem as quedas e nos antecipam os desejos. Descubro a casa numa acalmia incomum - a época do vinho chama-nos para a terra, para o cheiro dos lagares e o trabalho dos corpos.

Releio cada um deles - e, de súbito, o meu irmão é pequeno e vai crescendo a cada palavra, a cada ponto final e vírgula como se com isso ele fosse pontuando a vida e o caminho.

As paisagens das imagens - quase sempre o mesmo lugar. Percebo que foste tu quem nos ensinou esse gosto pelos rituais, pelo retiro. Cumpro-nos nessa fidelidade às pessoas, aos nomes, às famílias e às estórias. E é como se continuasses nesse olhar atento e devoto que sempre puseste nas vidas dos outros.

Suponho que esta seja mais uma carta. E se reparares bem a imagem não mudou. Continuo a ter essa vontade de partilhar contigo os dias com sabor e cheiro a mar; de te contar com um olhar de quem faz um álbum como tudo continua a ter os nossos nomes inscritos. E são as saudades que todos os postais diziam existir que permanecem fundas e vivas como o som duma onda na costa.

Há coisas que não morrem. Que a mudança da caligrafia não deixa de dizer da mesma forma.

E parece que te ouço dizer de novo como a mãe é uma mulher que admiras, como a uma filha.

Sorrio ao pensar nesta tua surpresa. E em como te conheço bem. A vida é uma conversa que se continua muito depois das ausências e para lá delas. Aqueles de quem gostamos e cuja saudade banhou a imagem que temos delas continuam a morar na alegria que nos nasce dentro quando percebemos, a cada dia e todos os dias, que não há despedida possível.

O amor é uma carta com a data do dia em que vivemos. E apenas a palavra saudade permanece imensa e a mesma, com todas as letras. E é isso que se diz sempre em todos os postais. Mesmo que a letra, um dia, acabe por mudar.