Rewind

sábado, 23 de março de 2019

21.03| Avós,

Milinha e Bininho, 
meus queridos,

Dizem-me que foi um dia feliz. 

Tu e o Avô, aliás, sempre me falaram de amor - foi isso que vos juntou, foi isso que vos reconciliou, foi isso que, tantas vezes, vos salvou. 

73 anos depois, essa luz perdura - a força do vosso encontro, a verdade da vossa entrega, a intensidade com que se quiseram ilumina, ainda hoje, as sombras maiores e os abismos mais fundos.

Começa a primavera, pensei todo o dia. 

Nem todos, ainda assim, lançam à terra tamanha promessa e tão funda, anseiam, sequer, por essa coisa sem nome e sem medida que foi o amor que vocês fizeram acontecer diante dos meus olhos e que me infiltrou a pele como uma chuva de esperança e de orgulho. 

Ainda hoje, 

Porque sorri, menino?

E, toda a minha vida, dentro de mim, houve essa luz, uma fé indestrutível no elo que nos une. Por isso, por mais afiado que seja o gume do sofrimento, por mais densa que seja, por vezes, a névoa do desalento, eu reacendo o farol que é o nosso amor - há uma casa onde me quiseram, onde me amaram e, em mim, esse mapa é eterno. 

Eu sou daí - dessa primavera de 1946 que vos uniu e me trouxe, mais adiante, no leito dessa história. 

Também vos disse sempre e para sempre, 

Sim, aceito. - e amar-vos-ei por tudo o que foram e que eu, por mais que tente, nunca conseguirei igualar, retribuir ou merecer. 

A minha Avó diz-me, rindo-se,

Tu sabes os meus segredos todos

E, todas as vezes, decidimos os dois que esse dia pode ser também o de hoje - pode amar-se com a mesma ânsia de futuro, pode querer-se o outro como se tudo fosse ser eterno - e sou eu quem a leva pela mão ao altar da memória, sou eu quem lhe lembra que palavras lhe disseram o Avô António e a Avó Maria do Carmo, quem lhe aponta nas inúmeras fotografias todos os que são os nossos e que somos nós. 

Quando os Avós se mudaram para Paços, um ano depois, dizem-me que o Avô António foi visto a chorar quando os criados arrancaram com as coisas e os Avós se puseram ao caminho. 

Encontro-me com o meu bisavô nessas lágrimas - para quem ama os nossos como nós, é sempre primavera. E nunca, nunca, os nossos rebentos podem ir para longe de nós. 

Vocês, todavia, voltaram, toda a vida, a casa. 

A minha Avó sabe que eu e o A. decidimos ficar. De que serve um coração que não consegue consumar aquilo por que vive?

Há 73 anos, acendia-se uma luz - e eu comecei também aí. Volto a essa igreja inúmeras vezes, imagino a minha família espalhada por ali e orgulho-me do que os meus Avós fizeram nascer no coração um do outro. 

Essa Primavera teve mais força do que todas as outras - foi, no fim de contas, a que me permitiu uma felicidade sem tecto, a que me ilumina o olhar e me faz trazer um sorriso debaixo da pele. 

Porque sorri, menino?

Apanhavam-me imensas vezes imerso inteiro nas recordações de tudo quanto tive, quase como se, num salto de olhos fechados, eu mergulhasse de cabeça nos mares que sempre conheci.

Obrigado, Milinha e Bininho, por toda a luz do meu caminho.

Vocês são o meu farol.

Hoje começou mais uma primavera. 

Todos os dias, porém, eu escolho viver perto da árvore onde pertenço. 

Se o Avô António me visse, saberia que a ideia de não estarmos juntos também me tira o chão. 

Por isso, em todas e cada uma das vezes, eu voltarei sempre. 

Cá dentro, o menino guarda a centelha que lhe iluminou o caminho. 

Porque há uma casa

porque tem sempre que haver um regresso. 

Um beijo, 

R. 

RM|XXIII-III-MMXIX

sábado, 2 de março de 2019

06.03|Gó,

Minha Gó, 

Como te lembrarás, nas coisas do amor, eu tive sempre pressa. Hoje, vendo bem, o amor soou-me sempre à possibilidade de uma chegada ou de um encontro, a uma promessa que se cumpriria, a uma carta que viveria para nos ficar nos bolsos, depois de recebida, a vida inteira. 

Contigo, minha malandra, foi sempre assim - estás comigo desde que me lembro, houve, bem o sei, no tamanho generoso dos teus braços, uma casa que me serviu, todas as vezes,  no corpo. E, mais do que tudo, também tu me ensinaste o nome do que fica para lá das palavras ou, antes, sempre e sempre, além delas e do tempo. 

Fazes 81 anos e, enquanto vi o mar de fotografias em que a corrente da vida seguiu o seu caminho, reparo que nenhuma maré te levou jamais para longe de nós. 

Fomos todos tão mais felizes por tua causa, sabes?

Não vai haver nunca ninguém que me chame como tu, 

Menino

Ou que acenda velas porque eu e o A. tínhamos que ter sorte, tudo tinha que se compor, a felicidade tinha mesmo que acontecer. 

E nessas velas, digo-te, eu acreditei sempre - nunca deixei de sentir, até hoje, que há luzes que nunca se apagam. 

Um dia, 

Gó, porque usas tu aliança? Tu não és solteira? 
Casaste com Deus, foi?

Sim. Vê como o menino sabe?, 

Até aceito isso, menina! Casa-te com quem quiseres, desde que homem nenhum te leve daqui de casa, está bem?, 

Tu rias-te - eu, malandro, respirava de alívio por esse teu marido ausente te deixar andar pela nossa casa sem, aparentemente, se importar muito e isso, para mim, ser da máxima conveniência.

Hoje e, porque sei que talvez a ideia de casais a morarem em casas separadas fosse demasiado moderna para ti, percebo que Deus tenha morado sempre connosco na dádiva que foste para nós e em todo o bem que nos fizeste. 

Eu exclamava da mesa, 

Na minha casa, Gózinha, também não hei de impor sacramentos, sabes?, 

"Estapor-de-moço-dum-raio", que eu era, 

Quando morrer vou para o limbo, é, por não ser baptizado? Isso parece-me bem melhor do que ir para o meio de pessoas com asas e túnicas brancas ou para o inferno que não tem ar condicionado. E, sabes que mais, se eu for para o limbo, nunca mais nos encontramos, percebes? Tu vais de certeza para o Céu!, 

Lembro-me de, ao dizer isto, o coração me doer fundo. A ideia de nunca mais nos vermos atingiu-me como um raio. E disse, 

Tu vais lá buscar-me, não vais, Gó? Deus tem-te em boa conta e sabe que vou precisar sempre de ti!, 

E é isto - o amor como a promessa de um encontro, a vinda de alguém que nos resgata, que nos liberta, que nos alivia o coração. 

Um dia, vislumbrei em ti uma futura causídica digna de nota, 

Sr. Mesquita, nas coisas do amor ninguém manda! Eu gosto destes dois meninos mais do que tudo na vida! Para mim, ninguém se compara a eles, 

O meu Avô sorriu, acenou como quem concordava e, nesse dia, eu e o A. fundámos o clube-de-fãs-da-Gó-que-adora-os-gémeos-mais-do-que-ninguém-que-por-acaso-e-só-mesmo-por-acaso-são-eles-próprios.

Que bom que, às crianças, ninguém exige coerência.

O mais engraçado de tudo - ainda hoje, o clube está de saúde e, já agora, que nenhuma alminha peça, alguma vez, ao amor que seja coerente. 

Amor e coerência são um oxímoro, diz aqui o génio. 

Nunca quiseste comer connosco nas mesas das salas grandes. Ficavas sempre pela mesa da cozinha, apesar da insistência. 

Um dia em que estávamos só eu e tu, 

Ai é, não comes comigo na mesa da sala? Então espera lá que já vais ver. Vou eu ter contigo! Tu és católica, mas quando a montanha não vai a Maomé, filhinha, Maomé tem que ir à montanha!, 

E jantei contigo na cozinha com a felicidade imensa de estarmos juntos e isso me chegar. 

Vou amar-te enquanto viver - também eu aprendi que, para os que amo, nunca há um limbo. Só pode haver uma vida que os salve sempre, os encontre sempre, os eternize meus.

Oh Gó, sabes o que sou? Sou a criança mais feliz da rotunda!

Há felicidade na Praça da República ou noutro lugar qualquer. 

Basta que o meu coração receba uma carta que diga, 

Menino

que ninguém lhe ponha uma data

e a luz, nunca, nunca se apague. 

Um beijo do teu, 

R. 

RM| II-III-MMXIX