Rewind

sábado, 4 de dezembro de 2010

luz.

A tarde caía em movimentos suaves. As sombras adormeciam a luz no seu colo. E a cidade estava calma, quase quieta, como se a vida se esquecesse do compasso de sempre. E andavamos nós perdidos por essas ruas, os dois. Sempre gostei de caminhar contigo na face do mundo - correr ruas e praças, desvendar o ventre oculto de prédios estranhamente belos depois do banho perene da solidão e do abandono. Tudo se reconduzia ao magnetismo do teu rosto - o mundo como o teu altar, tudo contribuindo para te fazer mais bela e mais perfeita.
Lembrar que a nossa carne junta se fez o nosso caminho; uma vereda verde e selvagem que abrimos por entre a ferida que o mundo consegue ser. Lembrar a tua mão presa na minha dentro do meu bolso. A forma como me fazias parar e me dirigias o olhar como um jarro de luz que se partisse no escuro. E os beijos longos, profundos e intensos como se me quisesses sugar.
O desejo é uma bala contra o corpo cansado da nossa humanidade. E o acender do teu corpo, depois de um dia longo e húmido era o fogo e a catarse de todos os males.
Lembro-me de como as palavras rolavam durante horas - os teus olhos pendurados nos meus, o teu corpo no colo das minhas mãos.
Levantavas-te e ias junto da janela. Julgo que pensavas na face primitiva do mundo e das coisas e na constância das questões. Apaixonei-me por esse nó difícil que és. E aprendi a passear-te as mágoas nas minhas mãos, a desenhar a segurança com os dedos que pedias junto de ti.
Essa gargalhada aberta e espontânea nas noites em que te levava a jantar e depois do cinema dizias que era um daqueles personagens - e punhas-te a imitar a graça que tive quando te falei pela primeira vez e em que vimos o dia nascer pela mesma janela.
Sorrio ao lembrar-me de como me levavas mais fundo a cada diálogo, de como me fazias varrer a face do mundo. E continuo a passear nas ruas e praças da cidade, nas tardes calmas.
Visito o ventre dos prédios abandonados. Mas, de súbito, o que eles guardam não é mais solidão - é a luz do teu olhar. Como um jarro de luz que se quebrou para unir o mundo.

russian ark.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

fogo.

Devorar-te o silêncio
Com o gesto intenso
Incendiar-te o olhar e o corpo
Esperar o eco fundo do sangue
A valsa cúmplice do prazer
E desenhar-te no corpo cansado
A promessa das horas medidas ´
Pelo prazer renovado
De cada beijo
Como palavras ditas
Pela primeira vez.

Ricardo Pinto Mesquita

a ti.

O teu nome é um beijo
Que a minha boca recebe quando te chama
A tua memória é o corpo que abraço
Quando te lembro
E a noite que nos coseu
Sob as fintas do desejo
É a verdade perfeita
Que a minha saliva escreveu.

Ricardo Pinto Mesquita

des hommes et des dieux.

gainsbourg.


sábado, 13 de novembro de 2010

zé mário.

Encontrei o zé mário numa noite escura, numa sala ampla e luminosa. Com ele, o reportório e as palavras que nunca nos cansamos de ouvir. Uma plateia distribuida pelo chão e as poltronas e, ali ao pé, a mesma viola. Há pessoas assim - revelam-se na forma transparente e aberta como enfrentam a própria vida e os dramas por que passaram. O zé é um gajo porreiro.
Ouvi-lo falar e discutir com ele a liberdade e a revolução fazem-me sempre lembrar aquilo que a minha educação me deixou na lembrança - que a admiração é conseguir sentir humildade na diferença. Há uma emoção - como um ligeiro arrepio na pele - que sentimos face ao modo aberto e genuíno com que algumas pessoas ainda falam daquilo em que acreditam.
Percebi porque não quer o zé o labéu de cantor de intervenção. Para ele, os que não intervieram, como aqueles que nunca o fazem são também responsáveis; tomam também eles uma posição sobre o sentido da vida e das coisas. As canções do zé são sobre aquilo que o zé viveu, aquilo que o zé não viveu e esperou por ver acontecer.
Sou diferente do zé. Ali, numa sala acesa contra o frio e o escuro da noite, percebi que há muitos caminhos que não fazemos juntos. Mas há a certeza de que ambos partilhamos o gosto por podermos partir em sentidos diferentes. A diferença pode ser o mais extraordinário ponto de encontro.
Discutir com o zé é rir sobre o facto dos direitos de autor da obra do Ravel terem ficado na mão de uma cabeleireira que o zé martelava com o jeito de uma piada. Não consegui explicar ao zé o que os direitos de autor são. Mas, em boa verdade, há pessoas que nos fazem quase conseguir acreditar que há um fundo de razão nessa fé sem deus que é a dele. Não interessa explicar o que são os direitos de autor a uma pessoa que se dá e nos dá de forma total.
O Direito não honra as excepções da natureza humana. E ver o zé a envelhecer é perceber que há coisas que renascem sempre. Ouvi-lo tocar, por entre o fumo dos cigarros e entre amigos, foi sentir que duas pessoas diferentes podem morar do mesmo lado - do lado em que a liberdade existe para que da diferença nasça aquilo que mais nos aproxima - a entrega.
No fim da noite, despedimo-nos e seguimos sentidos opostos. Com o olhar na mesma direcção - o amanhã.


domingo, 24 de outubro de 2010

Porto.

O Porto tem dias de silêncio. Dias que parecem rumores suaves e distantes como um segredo. Percorrer as suas ruas num desses dias é como poder, enfim, contemplar um rosto sem adornos - na nudez das suas formas, dos seus traços e imperfeições. Eu gosto do Porto nesses dias. A cidade diz-se a ela mesma; o espaço é o das fachadas, das varandas e o tempo é o das flores que nunca se colhem nas janelas. Ruas silenciosas com pequenos rumores do inverno que desperta. O fumo e as castanhas e as horas agora mais rápidas e mais escuras.
Podemos ser cúmplices de uma cidade - aventurar-lhe as vielas e os caminhos mais secretos e é como se lhe percorressemos a alma; lhe oscultássemos os desejos e a vontade mais íntima. O Porto não é um amor óbvio; a sua nudez e natureza não são explícitas. O Porto combina com tempo e permanência; combina com estações longas e nevoeiros cerrados. O Porto é um sítio para se ficar, porque os segredos só se acabam revelando ao familiar e reconhecido.
Há lugares que são uma espécie de compromisso, que representam uma aliança com aquilo que somos e aquilo em que nos tornamos. E o Porto, no seu resguardo cauteloso, é isso mesmo.
Mas amar o Porto é cedo perceber que há sempre, em tudo, a expectativa do afecto, do próximo, do sentido. Poucas cidades têm carácter - e aqui tudo parece cumprir sempre o mesmo nome.
O Porto tem dias de silêncio. Mas mesmo nas varandas vazias e ruas desertas tudo se passa como se apenas se aguarde que a velhota chegue e a roupa se estenda. As flores vivas entre o ferro lembram o gesto cuidadoso de quem sempre as cuida. Os jardins lembram velhices calmas, rostos marcados pela vida como o granito enegrecido.
Do Porto espera-se e o Porto reconhece-se. Tudo se passa como num grande amor: os silêncios também são espaço e nesses dias a cidade cumpre-se e vive-se por dentro. E o sentimento do familiar, da pertença, do acolhimento transformam esses dias serenos e silenciosos num namoro de horas e do tempo. Não há sempre a necessidade do ruído e das palavras - as ausências, os silêncios ajustam a expectativa, serenam o orgulho e aumentam a saudade. E com o Porto é assim mesmo: tudo se forja nessa lealdade cúmplice e longa e cedo percebemos que, afinal, somos sempre mais dele do que ele é nosso.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

resgate.

O escritório com a janela e a sua luz filtrada pela cortina clara. A madeira negra do pau santo e os livros nas estantes. O teu retrato sempre presente. A jarra que ofereceste à avó quando o pai teve o primeiro dente. Os cristais de Murano pousados na secretária com a luz formando um vasto amplexo de cores. E a cadeira onde te íamos surpreender. E uma gaveta que se abre. E descubro, como chegados ontem, todos os postais e cartas que eu e o A. vos enviamos durante a infância. São postais e cartas com essa letra infantil que se vai transformando ao longo dos anos.

São as gargalhadas dessas infinitas tardes de praia; dos banhos de mar e dos livros que se liam.

São as primeiras palavras dos homens que nos fomos tornando debaixo do teu olhar atento.

Tudo isso imune ao tempo. Tudo guardado numa gaveta - o passado que te contavamos com essa alegria imensa que só uma crença absoluta pode gerar. O contentamento de crescer abrigado - debaixo desse abrigo que são aqueles que sabemos nos temem as quedas e nos antecipam os desejos. Descubro a casa numa acalmia incomum - a época do vinho chama-nos para a terra, para o cheiro dos lagares e o trabalho dos corpos.

Releio cada um deles - e, de súbito, o meu irmão é pequeno e vai crescendo a cada palavra, a cada ponto final e vírgula como se com isso ele fosse pontuando a vida e o caminho.

As paisagens das imagens - quase sempre o mesmo lugar. Percebo que foste tu quem nos ensinou esse gosto pelos rituais, pelo retiro. Cumpro-nos nessa fidelidade às pessoas, aos nomes, às famílias e às estórias. E é como se continuasses nesse olhar atento e devoto que sempre puseste nas vidas dos outros.

Suponho que esta seja mais uma carta. E se reparares bem a imagem não mudou. Continuo a ter essa vontade de partilhar contigo os dias com sabor e cheiro a mar; de te contar com um olhar de quem faz um álbum como tudo continua a ter os nossos nomes inscritos. E são as saudades que todos os postais diziam existir que permanecem fundas e vivas como o som duma onda na costa.

Há coisas que não morrem. Que a mudança da caligrafia não deixa de dizer da mesma forma.

E parece que te ouço dizer de novo como a mãe é uma mulher que admiras, como a uma filha.

Sorrio ao pensar nesta tua surpresa. E em como te conheço bem. A vida é uma conversa que se continua muito depois das ausências e para lá delas. Aqueles de quem gostamos e cuja saudade banhou a imagem que temos delas continuam a morar na alegria que nos nasce dentro quando percebemos, a cada dia e todos os dias, que não há despedida possível.

O amor é uma carta com a data do dia em que vivemos. E apenas a palavra saudade permanece imensa e a mesma, com todas as letras. E é isso que se diz sempre em todos os postais. Mesmo que a letra, um dia, acabe por mudar.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

a casa, na curva.

Visitei a casa como ao sabor de um desejo; uma vontade última de chegar a um lugar com o tamanho e a dimensão do familiar, do reconhecido que é justamente o lugar onde sentimos que tudo o resto se relativiza ou se amplia, por ser visto desse lugar seguro que é a pertença.
A casa continuava na curva, com o seu terraço aberto como um ventre sobre uma imensidão de verde. Abri o portão como se quisesse surpreender a vida no seu curso, como se quisesse não ser notado. Reparei como os cheiros continuavam os mesmos - as flores como um lençol verde bordado de cor. A mesma calma banhada de luz e a casa sozinha como um farol que sempre indica onde acostar. Reparei na pedra que se ergue na fachada - a data da construção gravada como um nome. Há datas que são como nomes e que se usam como pretexto para se falar de alguém. A casa cheirava a tempo; o tempo podia sentir-se em tudo: nas árvores plantadas no tempo dos bisavós e até antes; os móveis com uma história de mãos e de vidas presas no cheiro a madeira; as porcelanas guardadas como memórias de parentes e afectos antigos. A mim sempre me lembraram a persistência do homem sobre a fragilidade da vida e dos laços. Os quartos e as janelas com vista.
Acredito que cada casa veste o peso de quem a habita. Percorri toda a extensão do terraço e pude ver os telhados semeados entre as vinhas e as quintas com os seus muros velhos cobertos de musgo e idade. Sorri ao pensar que são o equivalente aos jardins verticais dos dias que correm. Vi a terra a que me habituei a chamar nossa, não pela propriedade que, sem mais, me lembra uma forma tosca e sórdida de existir. É nossa pelo apelo da terra e da memória que nos surpreende e banha o rosto como o vento que bafeja ou atinge a casa nas noites agrestes do Inverno ou amplas do Estio. A lembrar o compasso de um amor antigo.
Vêm aí as vindimas e o vinho ganhava grau nesses últimos banhos de sol antes da colheita. E veio-me à lembrança essa infância com cheiro a terra e os passeios contigo no colo da paisagem. E de como a casa se enchia de gente e de ruídos como num ritual que tinha a sua religião. A tua fé sempre foi composta da luz do sol e da natureza que brinda os homens e o amor do seu trabalho.
Lembro-me do respeito que os trabalhadores te tinham. Da forma como te olhavam quando lhes falavas enquanto comiam na longa mesa posta na adega. O respeito acende de uma forma muito particular o olhar, com uma luz única que lhes moldava o rosto e os modos. E tinha orgulho de ti.
A casa estava cheia por esses dias, dias de campo e de horas de trabalho e de comunhão. Todos nos mudávamos para lá e podia encontrar a avó no jardim com os seus olhos de um azul que sempre achei fazer o céu ciumento. E tios e tias, primos e pais, como que cozidos numa fôrma própria e só nossa.
Envelheces-me no sangue que é, como o vinho, o néctar onde se molda o sabor das coisas depois da passagem do tempo. Mas nunca a tua perda me deixa de ser precoce como, de resto, o são sempre as daqueles por quem nutrimos essa espécie de vício de alma e de sangue que é o amor verdadeiro.
Relembro os retratos da vossa juventude, tua e a da avó, especialmente aquele que, como sempre me contaram, marcou a vossa primeira saída como namorados. O teu rosto firme e o olhar profundo e aceso; a avó com o olhar amplo como uma manhã de Verão em que a luz do dia se assemelha muito a uma promessa de felicidade; o vestido leve e vaporoso e um belo colar de pérolas de três fiadas. Sempre que a avó passa por ele vejo como os seus olhos se alteram. Faz um silêncio sincero como se se voltasse para dentro a ver o filme que vos conta e que ela teima em rever, no tempo em que os vossos rostos não tinham os pequenos sulcos, como um itinerário da vida e da personalidade, que vieram depois. Curioso que apareçam quando já demos frutos na vida. Como se fossem vestígios de uma grande vinha cujo destino se cumpriu.
Visitar os lugares é como visitar as pessoas, devotar-lhes o mesmo amor que vive sobre as ausências. E a casa enchia-se, de novo, desse rumorejar de passos e ladaínhas como se reconhesse no peso dos passos alguém do seu ventre. Esperei pelo pôr do sol. Sempre os admirei com essa promessa de proximidade que a noite representa. À medida que vamos envelhecendo a noite custa mais passar. Talvez porque nos lembre da perda e da distância.
Volto inúmeras vezes às quintas e à casa que tem o teu nome escrito na data de construção na fachada. É anterior a ti, muito anterior ao nosso laço que essa terra fez maior e mais fundo. Mas é de ti que ela me lembra.
Voltei com a alma cheia. E olhei para o número na fachada antes da casa desaparecer na curva. E pude jurar que a data inscrita era a daquele dia. Porque nunca é tarde para se ser criança num promontório sobre um mar verde. E o respeito acende-me o olhar. E, com ele, a saudade que é o chão que há de ter sempre as minhas pegadas ao lado das tuas por mais que o tempo as pise, como às uvas as pisam as pessoas, avô.

domingo, 1 de agosto de 2010

Uma aventura no mundo do trabalho por Isabel Alçada.

Há que dizer uma coisa: gosto de Portugal. Gosto mesmo, que isto dos apelos insondáveis da terra onde se nasce está bom de ver que persiste mais e melhor do que se explica. Um dia chegarei à política, quem sabe, dizendo aos portugueses que gosto de Portugal. Que até tenho um desses "kits patrióticos" com uma bandeira à la carte - desses que embelezam corta-unhas e as vestes interiores, que isto de gostar implica levar a coisa a fundo e pô-la à venda com uma inscrição "made in china", que o lucro faz com que se vista qualquer camisola e se ame qualquer país, desde que bom pagador, claro está. E o pior é pensar que há quem ganhe eleições a dizer que gosta do país. A política é um mundo movediço, com uma engenharia muito própria, diriam alguns. E provavelmente devo eu concluir que não estou maduro para mandar e desmandar na amada pátria, porque o gostar, senhor Ricardo, implica fazer muitos sacrifícios - sacrifica-se a honestidade, a seriedade e destrói-se a economia e as finanças, em nome desse amor à prova e contra tudo.




Não sou capaz de um amor desses. Um amor desses é ferida que dói e se sente. Não agora, mas um dia. Tenho aprendido o que é o amor à pátria com esta ministra da educação, por exemplo. Ler os jornais desta pérola atlântica que é Portugal é saber que há uma ministra, grande portento da erudição, que quer acabar com os chumbos. Não, a ministra não tem fama de dentista e se deu com a língua nos dentes nos jornais de hoje, não consta que tenha quebrado o belo sorriso de gesso que lhe enfeita as feições. Anda a dar-se esta pérola a porcos, e é já há muito tempo. Há demasiado, diga-se.


Mas Portugal está contaminado desse amor doentio - esse paternalismo de falsete que consiste em amar os filhos mesmo por cima dos seus erros. Porque a ministra não quererá reconhecer que o erro será precisamente seu e esse - o da educação que estará a dar aos amados filhos da Pátria. Que é que se espera? Que a Pátria se transforme em maralhal de génios e eruditos por decreto? Ou quer-se chamar de política educativa a mais uma das tentativas de cosmética estatística que consiste em reportar às instâncias europeias a fabulosa progressão do país?


E o pior é que, embora não analfabetos, temo-los iliterados - os tais que educados neste laxismo paroquial de "panos quentes" "não percebem nada de política" e acabam votando em quem lhes faz a cama e lhes compõe os lençóis.

Há dias em não apetece ler os jornais - deve ser a silly season, mas mais silly do que nunca. A ministra deve estar a pensar em mais uma aventura de verão, é o que é, coitada, que isto de ser patroa dos professores é muito para pouco, como qualquer alma caridosa perceberá.

Falha-me aqui a caridade, Deus me perdoe. E a ministra também. Não consigo imaginar profissão mais destruída que a de ser-se professor. Então não é que ser-se professor, nos tempos modernos, implica aulas de defesa pessoal e um cinturão negro? Pois, a pedagogia nos tempos modernos destruiu o mérito, destruiu o civismo e o respeito. O que se quer é canudos - de qualquer universidade que até se pode chegar a primeiro ministro. Nem que depois as criaturinhas doutoras não saibam mais do que os mandar à cabeça uns dos outros.

É o amor-ódio à Pátria, suponho. Mas não consta que países possam ligar a uma APAV.

O amor é uma coisa que vive mais do que se faz e menos do que se diz. Como se vai dizer a um aluno: "Não estudaste, não fizeste nenhum, mas o caminho continua." E, claro, o aluno nunca imaginará que a sorte da sua vida veio de um acto extremado de amor de uma ministra com sorriso de gesso; pensará, apenas, que isto de ter um saco de pancada é altamente. É o estatuto do aluno, veja-se só. Hoje vale tudo. Vale a pena construir um país de faz de conta; vale a pena premiar a estupidez; destruir os limites que devem balizar qualquer relação saudável.

Sugiro à alminha caridosa e ministerial que escreva um livro chamado "uma aventura no mundo do trabalho." Mas que seja sincera. Porque a leitura faz bem (ou fazia no tempo em que escrevia) se se contar a verdade. E diga, senhora ministra, que o país onde não há chumbos é, também, o país que não vai querer os seus trabalhadores; o país que não quer cidadãos deformados, sim, deformados, neste molde de amor cego.

Os amores acabam, senhora ministra. E alguns acabam mal. Porque a senhora pode gostar de uma ideia de país utópica, mas tem de gostar também das pessoas que vivem no país real. Não basta dizer que gosta do país, porque aprendeu que ministro que é ministro, também tem que negociar. Tem que gostar das pessoas; tem que gostar de ver um futuro onde não põe uma corda na garganta do país.

Fala-lhe alguém que não sabe nada do amor. Fala-lhe alguém que ainda acredita que os tabefes que os filhos dão aos professores são os que os pais não lhes deram, em bom tempo se perdeu a oportunidade, está visto. E isto não é amor. É até, quem sabe, fascismo. Porque a democracia, para os senhores, é estar em frente a um precipício e dar um passo à frente. É o "Avançar Portugal." Hoje não digo que gosto de Portugal. Prefiro mostrar que isso é verdade. E, prepare-se senhora ministra, porque neste país ainda se podem chumbar Governos.


sábado, 31 de julho de 2010

promessa_vergílio ferreira.

"Ser-se jovem - escreveu Sérgio - é não ser por partes."

"Não daria, decerto, um passo para agir; daria, porém, mil para apurar uma ideia que fosse curiosa - pensei. Pensei-o dolorosamente, por ver como é possível iludir-se uma vida justamente com aquilo que devia redimi-la - o pensar."


"-Que está a fazer? - perguntei, com estupidez.
- Nada. Estou a sofrer."


"Por enquanto é livre porque, apesar de tudo, pensa. E só a acção nega a liberdade. Agindo, perde-se. Porque, quando se age, não se pode agir outra coisa."


"Mais do que a doença - dizia - sempre lhe doera ser levado de rastos pela "coleira da convenção". A originalidade era o seu respeito por si próprio. Não havia dois homens iguais sobre qualquer aspecto. Importava a cada um separar o que em si havia de único e valorizá-lo. As verdadeiras dores ou alegrias nasciam e morriam na inteligência. Atingida a grandiosidade interior, ficava-se anestesiado para tudo o que é fora."


"Finalmente (Guilherme) foi-nos estabelecendo a diferença entre essência e existência. Isso que era escolástico, disse, criava, milagrosamente, com o existencialismo uma verdade nova. Porque a essência humana, a sua existência tinham sido, até aí, peças mortas de museu, frias invenções da mecânica intelectual e agora cheiravam a carne, a sangue quente. A essência (So-sein) já não era uma máquina parada, a que a existência viesse a dar movimento. Agora, a própria existência do homem incluía-se na sua essência ou, por outras palavras, a existência (Da-sein) precedia a essência (So-sein). Maravilhosamente o homem erguia-se livre, absurdamente livre, no instante inicial da vida humana. Se ser homem era, antes de mais nada, existir; e se existir era agir, o homem tinha o seu destino nas suas próprias mãos antes que alguém viesse ditar-lhe leis. Podiam matá-lo, mas não lhe roubariam a liberdade. Por outro lado, era impossível decidir do homem como se decide de uma pedra. Porque só na imobilidade a inteligência se entende a si própria,como os velhos e os doentes que exigem descanso e silêncio. Mas o homem vive e portanto não está quedo. Que tem que fazer com ele a inteligência humana? Estude as pedras e cale-se diante do homem."


"- Realmente. Liberdade é bem outra coisa. O domínio do que nos domina e nos não deixa realizar. A consciência da necessidade.

(...)

- Diga; não é assim? Tem outra definição?

- Não tenho definição, não sei o que isso é. Nada define nada, meu homem. A definição é uma paráfrase. É sempre um polícia à verdade que força a limitação da barreira. Mas para o caso também podia dar uma se quisesse. E melhor que a tua. evidentemente. Penso que a liberdade é a possibilidade de nos contradizermos com verosimilhança. Os valores da vida são de dentro, nunca de fora. (...) Mas entenda-se: tudo quanto disse pode ser verdadeiro ao contrário."


"Não lhe repito as palavras porque as explicações de Sérgio tinham sempre avanços e recuos, desvios subtis para a esquerda e para a direita. Só com treino eu lhe apanhava uma linha firme de pensamento. Mas se depois lha apresentasse, contínua, definitiva, embora recurvada, Sérgio enfurecia-se, cortava-a aos bocados, amassava-a e restituía-ma assim, porque só assim era exacta. Só na imprecisão lhe cabia todo o anseio ou ideia."


"A vida cortara-me uma estrada larga. Sentia-o quase desde que sentia, porque cedo me despiram de infância. Não cheguei a romper uma bola de trapos, não li Conan Doyle, decorei ideias de homem, antes de ser homem para elas. Para os problemas da vida que ia tocando, eu tinha já, prontas a intervr, fórmulas rigorosas. Necessitava apenas de percorrê-las até às raízes, como depois da tabuada decifrei Aritmética Racional."


"Ser velho em menino é duro."


"Ouve: quando se começa, tem-se sempre a impressão de que se é definitivo. (...) Tem-se sempre a impressão de que se é justo. (...) Não há juventude injusta. Pode é haver juventude errada."


"Para mim, o cepticismo era um escarro. Não concebo cobardia maior. Nem traição. Nem petulância. Porque o céptico, gozando-se do trabalho dos que não duvidaram, está sempre prevenido contra falências futuras, sempre pronto a exibir o seu equilíbrio por entre as quedas fatais de quem anda de pé. O medo de cair, leva-o de rojo. O medo de o escarnecerem, fá-lo casquinar. Tudo é relativo - admito. Penso porém que só a coragem de ler absoluto no relativo consegue mover o mundo."


"Era quase bela e talvez por isso mais atraente, como um maillot que quase despe a mulher a enriquece de desejo, ou como um livro que quase diz tudo se torna mais interessante."


"Aqui têm a imagem de uma mulher seminua. A simples fotografia não feria o leitor e portanto os poderes públicos. Mas se um escritor, frente à mesma fotografia, a reproduzisse pela palavra, a censura interviria.

Porquê? Porque a realidade da palavra era mais forte que a da fotografia. E se da palavra passássemos à ideia, a realidade seria de arrasar.

- Pense-se no trabalho censório, como se as ideias pudessem ser censuradas no cérebro de cada um.

Tínhamos pois uma escala graduada de realidade a partir do objecto e a acabar na ideia. Assim: objecto, retrato, palavra, ideia."


"- É sempre interessante saber em que é que os outros não são o que nós somos."


"- Interessante, não é? Temos nós aqui um conflito entre o valor que socialmente se dá às coisas da inteligência e os meios práticos que se dão para aguentar esse valor. (...)

- Porque o dinheiro nunca serviu a inteligência. A inteligência é que tem servido o dinheiro. O que é preciso é inverter a hierarquia."


"A tristeza é o lado sério dos levianos."


"- Mas, por favor, não se julgue obrigado a fazer-me ver o erro. É terrível que no mundo de hoje ninguém possa escapar a uma rédea qualquer. O mundo fez-se pequeno, ninguém se pode mexer à vontade. Ninguém mais tem o direito a agir sozinho. Em qualquer parte da vida, há sempre um organismo pronto a absorver-nos, a atrelar-nos uma carroça. A liberdade é um sonho de criança. Porque até os que inventam os deuses lhes morrem às mãos. Em todo o caso, é bom teimar no sonho. Talvez eu esteja em erro, de acordo. Mas, por favor, ninguém me venha dizer que estou errada. Quero ficar de fora. Deixem-me ficar de fora."


"De modo que a catalogação de uma arte faz-se sobretudo pela catalogação da ideologia do artista. Não pela própria obra."


"Se pensa que disse, disse mesmo. A ideia é o princípio da criação."


"- Para uma sociedade equilibrada não basta a permeabilidade dos indíviduos. (...) Não é só necessária a permeabilidade, mas a flexiblidade. O que torna os homens infelizes é oporem princípios e atitudes estáveis ao movimento permanente que os arrasta e transforma."


" Quando um acto é consciente, salva-se ao menos do ridículo."


"- Mente. Naturalmente que a realidade exige uma cultura própria. Não se constrói uma ponte sem se saber engenharia. Mas há a parte nobre da cultura que não deve demolir-se. Caso contrário, virámo-nos para a materialidade e enterramo-nos aí."


"- Nunca me julguei definitivo para agir de acordo. Nunca traí a minha condição humana."


"- Pode-se morrer mais que uma vez e recomeçar tudo antes de morrer definitivamente. Às vezes, basta que não tenhamos à roda os que foram vivos connosco, Tudo isto é idiota, mas sofro se você disser que o é. Seja criança um momento e diga que o não é.

- Não é."


"No entanto, meu amigo, foi pena que não vivesses. Porque aconteceram, meu Sérgio, coisas bem extraordinárias desde o dia em que morreste. Mas a terra chamava-te, apressada, para que subisse da tua podridão a prometida flor que havia nela, e que tu sempre negaste. Porque em todo o teu desvario como no dos teus amigos vivia justamente a promessa do mundo que veio nascendo; como em tudo o que apodrece se promete a verdade de um fruto novo. Por isso, sem mais uma palavra, aqui te deixo, em sossego, com a terra que te cobre.

Dorme em paz."


sexus_henry miller.

"Escrever, reflecti, deve ser um acto despido de vontade. A palavra, como a profunda corrente oceânica, deve subir à superfície impelida pelo seu próprio impulso. Uma criança não tem necessidade de escrever, é inocente. Um homem escreve para se libertar do veneno que acumulou, em consquência do seu falso modo de vida. Tenta recapturar a sua inocência, mas só consegue (escrevendo) inocular na palavra o vírus da sua desilusão. Nenhum homem escreveria uma palavra se tivesse a coragem de viver de acordo com aquilo em que acredita."


"Falar é apenas um pretexto para outras formas de comunicação mais subtis. Quando estas são inoperantes, a fala morre. Se duas pessoas estão empenhadas em comunicar uma com a outra, não tem importância absolutamente nenhuma que a conversa se torne desconcertante. As pessoas que insistem na coerência e na lógica raramente conseguem fazer-se compreender. Estão sempre à procura de um "transmissor" mais perfeito, iludidas pela suposição de que a mente é o único instrumento para a permuta de pensamentos. Quando uma pessoa começa realmente a falar, dá-se. Profere as palavras despreocupadamente, em vez de as contar como se fossem moedas, e não se importa com erros gramaticais ou factuais, contradições, mentiras, etc. Fala. Se falamos com alguém que sabe ouvir, esse alguém compreende-nos perfeitamente, mesmo que as palavras não façam sentido. Quando se consegue este género de conversa, há um casamento, quer estejamos a falar com um homem quer com um uma mulher. Os homens que falam com outros homens têm tanta necessidade deste casamento como as mulheres que falam com outras mulheres. (...)

Quanto a mim, conversar, conversar verdadeiramente, é uma das mais expressivas manifestaçãoes do homem por um casamento ilimitado."


"Enfim, pondo a coisa do modo linear como me ocorreu ao espírito, digamos que se tratava do seguinte: qualquer pessoa pode curar a partir do momento em que se esquece de si própria. A doença que vemos em toda a parte, a amargura e a repugnância que a vida inspira a tantos de nós, mais não são do que o reflexo da doença que trazemos no nosso interior. A profilaxia jamais nos protegerá da doença do mundo, porque trazemos o mundo dentro de nós. Por muito maravilhosos que os seres humanos se tornem, a soma total será um mundo doloroso e imperfeito. Enquanto vivermos com a consciência de nós próprios seremos incapazes de nos avir com o mundo."


"O caminho é infinito, e quanto mais longe chegarmos mais a estrada se alargará. Os lamaçais e os charcos, os pântanos, as covas e as armadilhas, encontram-se todos na mente. Esperam de tocaia, prontos para nos engolirem no momento em que deixarmos de avançar. O mundo fantasmal é o mundo que não foi completamente conquistado. É o mundo do passado, nunca o do futuro. Avançar agarrado ao passado e como arrastar uma corrente e uma bola de ferro. O prisioneiro não é aquele que cometeu um crime, mas sim o que se agarra ao seu crime e não deixa de o reviver. Somos todos culpados de um crime, do grande crime de não viver a vida na sua totalidade. Mas também somos todos potencialmente livres.
Podemos deixar de pensar naquilo que não fizemos e fazer o que quer que se encontre ao nosso alcance. Ninguém ousou ainda, verdadeiramente, avaliar as potencialidades existentes em nós. Compreenderemos que são infinitas no dia em que admitirmos, para connosco, que a imaginação é tudo. A imaginação é a voz da ousadia. Se há algo de divino em Deus, é isso: Ele ousou imaginar tudo."


"O medo, o medo de cabeça de hidra, desmedido em todos nós, é uma herança de formas inferiores de vida. Cada um dos nossos pés está num mundo, daquele de onde emergimos e naquele para o qual nos encaminhamos. É esse o mais profundo significado da palavra "humano", o significado de que somos um elo, uma ponte, uma promessa. É em nós que o processo da vida se dirige para a realização. Temos uma tremenda responsabilidade, cuja gravidade desperta os nossos temores. Sabemos que se não avançarmos em frente, que se não realizarmos o nosso potencial, recaíremos, nos desintegraremos, e arrastaremos o mundo connosco. Trazemos Céu e Inferno dentro nós: somos os construores cosmogónicos. Temos possibilidade de escolha, e a criação é o nosso campo de acção."

quoting.


Hoje

Pegar na tua pele
E vestir o meu corpo
E dizer
Hoje não.
Olhar os teus olhos
E dormir no fundo deles
E dizer
Hoje não.
Observar o teu gesto
E morar no teu sorriso
E dizer
Hoje não.
Abandonar o mundo
E dar as mãos
E dizer
Hoje, ainda.

Ricardo Pinto Mesquita

domingo, 11 de julho de 2010

tinha um desejo: amar.

Lembro-me de discutir o desejo - podia escolher o mapa que os meus dedos desenharam no teu corpo para o dizer. Talvez o devesses perguntar ao teu corpo, pensei, que o ouviu do meu. Mas também me perguntaste pelo amor. Percebo que semprei falei muito de noite - podiam viver-se vidas inteiras, outras vidas, de noite. E confesso-te que o desejo é o impacto mais intenso que se pode sentir - como se os corpos estivessem fatalmente munidos de cargas que, de súbito, se atraem. Como um saco de ar que, de súbito, rebenta. E a plenitude de boiarmos num mar de esquecimento, num mar em que estamos vivos mas sem a parte de nós que dói, que estilhaça, que se cansa, que exige.
Percebi-te nas palavras o arrepio - esse arrepio que chega quando o desejo acaba: os corpos e as marcas dos movimentos da paixão como despojos e apenas isso; as horas apenas isso. E tu não querias isso e falar era a forma de afastares essa imagem, de garantir que tudo apenas acabava de começar aí; não querias abstracção e apenas isso. Onde está o corpo do teu amor? Como se o pudesses agarrar com as mãos para cobrires a tua pele.
Percebo-te nessa imagem atroz da paixão justamente descarnada; de corpos como cinzas de um fogo que já não há. E a consciência de que tudo pode acabar exactamente aí.
Para ti o amor não pode ser refém de um corpo. Mas sei que perceberias que as coisas não têm que ser verdadeiramente assim. Então, lembrei o que acontece depois: quando chamo o teu corpo para abrigar o meu é a ti que eu chamo; quando acordo de manhã é a ti que quero ver por detrás da luz dos teus olhos - com aquele frio das horas primeiras dos dias de Verão. Talvez o desejo seja forma e o amor substância. E é essa substância que traz ao desejo tantas formas: as formas que os beijos deixam gravadas em ti; a forma como as palavras que me segredas todas as noites me abrem o peito. E cedo perceberás que não há ali só forma; que dorme connosco a matéria inivísivel que justamente dá nome a tudo isso que ardeu. E poderás ler nas cinzas o teu nome e os teus predicados que tento devolver à tua pele, sob a forma de um beijo. O amor é voz; o desejo sozinho é um monólogo. Vês as horas que passamos: e reparas que levas no corpo uma confissão, como se dançasse em ti o frémito da paixão muito depois de mim.
O desejo foi o rastilho mas foste tu quem me fez ficar. E isso que nos cobre os corpos enquanto dormimos é um fogo que arde mas não queima, que não se queima; como a luz dos teus olhos: funda e serena; como um beijo doce e longo com que inauguras o dia que acabou de começar. Nesse dia como em todos. Sempre.

plus d'hiver_yann tiersen ft. jane birkin.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

arrebatamento.

As almas não se dão, arrebatam-se.

rewind.

Ficava muitas vezes quieto. Se lhe vissem o rosto todo ele era uma espécie de promontório para onde tudo o que era se escapulia - como na direcção do mar, como num mergulho veloz. E não se afastava dos outros para os evitar - mas no silêncio podia escutar melhor as suas vozes, relembrar-lhes infinitas vezes um sorriso mais aceso ou uma qualquer ideia que ele quisesse assentar, como com medo de que o vento a levasse. A saudade era isso mesmo - ouvir chamar em nós a voz de um outro nome, querer um corpo que nos sirva, um espaço onde possamos, enfim, parar enquanto a noite desce, devagar, com um rumor amplo de calor e cheiro a fruta.
E não sentia que os rostos fossem menos seus - gostava de os relembrar para não os perder - como uma passagem breve para ter a certeza que o amor ainda habita os lugares de sempre.
A luz que as memórias acendiam nele, usava-as como um antídoto. Como para se certificar que o tempo não levara as palavras, escritas num papel, que queria ver amarelecer.
Trazia todos para se sentarem, de novo, em volta de uma mesa numa noite aberta e funda como um olhar sincero. Coleccionava memórias - como páginas lidas e relidas vezes sem conta; ou um filme visto e revisto. E sempre sorria ao reparar num pormenor que o impacto do amor, assim a quente, o tinha impedido de ver. Como um pequeno toque, uma pequena cumplicidade que a visita que fazia permitia salvar do esquecimento. Compreender os outros é, frequentemente, vê-los em retrospectiva; chegar e sentarmo-nos à mesa dispostos a que a noite dure sempre; arranjar tempo para ver até onde se desenham os contornos que pusemos na face das horas.
E não lhe sabia a vida a roupa velha e gasta com que vestia os dias por vir. Viver é isso mesmo - reparar que os despojos do mundo, que carregamos todos, não raras vezes ainda nos servem.
Gostava de ver de perto - demorar a atenção no rosto de alguém que amava. E sentia-se bem nessa companhia sem corpo que chamava para perto de si.
Essa era talvez a verdadeira cumplicidade - a que sentimos existir sem corpos, porque exactamente se forja do que alimenta a lembrança e mora do lado de lá do espaço.
Ter tempo era reviver - era, muitas vezes, um agradecer silencioso pela profundidade de alguns momentos. E pensar que a sorte nos aconteceu. E guardar todo esse manancial espesso - isso a que chamamos passado - como um trunfo sobre as linhas que vamos ter de escrever mais à frente. A gramática da humanidade faz-se disso mesmo: da memória que a pele guarda escondida e cujo nome o sabe o nosso peito.

terça-feira, 29 de junho de 2010

tempo.

Costumava pensar que o tempo é o melhor solvente. Da proximidade, e só dela, nasce o amor e a desilusão. E só sem ela se pode voltar a amar o mesmo porque nos deixa de cercar o que exactamente tanto nos magoa. Mas o que fica no fim de contas? Será um esqueleto sem carne ou as cinzas de um fogo que teve fim? Como se a acalmia chegasse depois da angústia se cansar e deixar de ladrar, tal como um bicho que, exausto, acaba por serenar. E o que justamente recomeça? Será amor - numa dessas infinitas recombinações dos seres e das relações?
Pensava que a proximidade cria o contraste, acentua o contorno do que somos. E, com ela, chega o risco da desilusão - porque o melhor avistado assim de perto surge truncado, de súbito, pelo pior, assim tornado mais nítido e explícito. Estar perto, viver de perto é reconhecer a imperfeição do outro. E é aí que talvez começe o verdadeiro amor: talvez só aí ele exista - quando se ama por cima ou acima disso mesmo. O amor é o resgate que pagamos para ter alguém de volta. Como se o perdão libertasse o outro. Porque o perdão é uma coisa feita e gerada no íntimo da nossa humanidade; daquilo que todos trazemos escrito como um código na correnteza do sangue.
E sentimos que perdoamos quando damos a mão. Quando, por se recomeçar, estamos a dar a mão ao que nos torna capazes de tanto, no meio de tão pouco.
Perdoar é abraçar o mais íntimo de nós mesmos e reconhecer que aquilo que foi amado nunca deixa de ser uma memória que podemos, um dia, retomar e levar, de novo, para o caminho.

domingo, 27 de junho de 2010

exposição [close.up]

Eu vou!

suzanne_hope sandoval.

ferembal house_jean prouvé.

Uma boa notícia. "Ferembal house" estará, em breve, pronta para correr mundo e dar a conhecer a fabulosa obra de jean prouvé. E o mérito cabe a patrick seguin.
Em 1940, jean prouvé desenvolveu um sistema de construção em massa de casas para os deslocados da guerra. Eram precisos apenas cerca de três homens e um dia para o processo estar concluído. Um processo semelhante ao destas "maison des sinistrés" foi usado na casa ferembal. Esta, contudo, foi construída com o propósito de servir de escritórios de uma fábrica de latas de um amigo de prouvé. Construída em 1948, na sua cidade natal, Nancy, a fábrica acabou por vir a desaparecer em 1978. Destino quase idêntico teve esta obra. A sorte quis que seguin conseguisse adquiri-la da pessoa que a havia recolhido, pela quantia de 1500 euros. A obra está, hoje, avaliada em cerca de 8 milhões.

Contudo, para que a casa se possa deslocar seguin recorreu aos serviços de outro portento da arquitectura contemporânea - o mestre jean nouvel, seu amigo, aliás. O processo de construção envolveu um esforço e um cuidado imensos por parte do último - este quis que se notasse, contudo, que esta simbiose resulta de dois contributos absolutamente distintos. A grande diferença reside sobretudo na escolha dos materiais.

Paris poderá apreciar esta obra já este Outono. Seguin, que é proprietário de uma esplêndida galeria perto da Bastilha, detém também o edíficio escola de Boqueval, norte de Paris, construído em 1949. Este, também em processo de adaptação por parte de Nouvel, foi comprado por seguin com o intuito de ser a sua residência. Esperemos que ferembal house passe por cá.



sábado, 26 de junho de 2010

david hockney.


thoughts

A consciência abriu o mundo ao homem, mas deu-lhe a conhecer também a solidão. O homem pôde ouvir outras vozes mas, sobretudo, ouvir a sua também. Depressa, porém, essa deixou de bastar. Saber-se trazia inscrito um apelo: esse de precisarmos do outro; isso a que chamamos amor.

estômago_marcos jorge.


Saramago (1922-).

O dia em que, pela primeira vez, encontrei José Saramago aparece hoje como uma recordação nítida, ampla como um acto contínuo de deslumbramento e admiração. Um deses amores prolongados, alimentados pela luz de uma voz. Poucos o são homens dessa forma; menos ainda o conseguem dizer de uma forma tão verdadeira. E Saramago era isso tudo: era o homem, cujo retrato era revelado pela força da palavra; era a verdade na nudez explícita que o traço fino da ironia teimava em expor.
De Saramago ficam as palavras, dizem. Mas não. A palavra em Saramago é, como em poucos, ele mesmo: a sua convicção, o seu embate, a sua ferocidade, a sua desilusão. Escrever sobre o homem é conhecê-lo. Escrever como Saramago é assumir-se como homem: o homem no seu duelo com o mundo, na sua angústia, na sua alegria, no seu desalento.

É a vida que sempre se elogia. É esse impulso, essa sede que é a raíz de cada parágrafo. E, com ela, a humanidade.

Por isso, também se admira o homem: apesar de estarmos longe em muita coisa, era a sua sinceridade, a sua coerência que sempre me levavam até ele. Como acaba acontecendo com todos os que possuam esse dom. Como disse, uma vez, "só a morte nos ensina a entender a vida."

E, na verdade, o difícil é entender a morte quando se nos rouba tanto. Quando sentimos perder alguma coisa que nos ajudou a entender a nossa; que nos foi também em tanto do que disse.

Mas Saramago continuará sempre. Porque todos seremos sempre capazes de lhe reconhecer a voz na luta que se vive nas suas palavras. Essa voz era o seu rosto. E aos que venham ficará a lembrança de um homem de feições duras e sorriso raro - mas cujo sorriso, quando aparecia, significava uma promessa que, no seu caso, sempre se cumpria.


"...não tinha fé em Deus (mas certamente Deus teve fé nele)"

gabriela canavilhas



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"




SCUT'S*

*sem custos, "u" tanas!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

noite.

Saía, enfim, de casa. Uma noite muito escura: como um lençol esticado sobre o mundo. No ar esse rumor entorpecido de um dia que quase já não se ouvia. A cidade quieta, apenas se ouvindo as ondas e os passos nos passeios húmidos. Descer até à praia. E ficar só - como se se pudesse ver a vida de fora dela; vivê-la como num intervalo com cheiro a maresia. Não participar dela, como para ter tempo para prolongar as horas que soubemos demasiado curtas, demasiado breves e esguias. Lembro-me sempre de ti. De como chegavas para me pedires o meu ombro. E agasalhares o teu corpo no meu - assim como se ambos pudessemos desistir de seguir no compasso que se nos impõe.
A luz dos teus olhos e o recorte dos teus lábios; a tua pele com um ligeiro arrepio. E o encaixe perfeito da tua respiração na face vazia do mundo. Ouvir o que me dizes - a noite, como sempre, o nosso refúgio, como uma luz que ilumina o que outros nunca viam em nós.
Na noite, a única luz é a da intimidade - como se vestíssemos os corpos um do outro e soubessemos o que nos pesa a alma, enquanto as ondas se fazem vidro que reflecte a noite.
Os teus olhos eram o meu reflexo; dizias que as minhas palavras eram o teu. E que as minhas mãos te tornavam a vida mais fácil de usar sobre o corpo.
As palavras que o vento ouvia e abafava como uma cortina - as horas que finalmente corriam sem que lhes chamassemos tempo ou sem as sentirmos cair-nos no corpo.
Tu com um casaco meu - que me pedias a rir. Deixavamos a vida toda ali na praia - e o brilho dos teus olhos a tornar tudo, de repente, tão mais sereno e luminoso. O teu corpo a prometer um exílio feliz. As noites eram sempre longas. E quase sentia que nascíamos de novo - o teu corpo adormecido no meu com o sabor salgado das ondas. Tão simples a vida: despida assim do que a torna um eco distante. Contigo nunca me senti viver nos intervalos.
O mar traz-me sempre o eco do que me sabe mais ser a vida. Talvez por ma ter ouvido quase toda - como um barco atraído pelo farol dos meus olhos que acendias sempre. O mar sempre me trouxe esse sabor de regresso. Como se fosse uma noite muito escura. E tu chegasses. Para trazeres escrito no olhar o nome daquilo que peço.

nicola conte_quiet nights

segunda-feira, 7 de junho de 2010

lobo taste.


Parabéns Tio Paulo!

LOBO TASTE:
Palácio das Artes, Lgo. de S. Domingos, 16-22, Porto
Seg-Dom 10h-20h

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Long live Mr.Cameron!

Há pouco os nossos amigos britânicos foram a eleições. Há muita coisa que estes processos de legitimação do poder têm de bom. Não, não é ver as taxas de abstenção, partidos como o PNR a vociferarem disparates a alta voz (apesar do medo ser uma boa estratégia ou, pelo menos, eficaz, diga-se.) Há lições bonitas que saem das urnas. Neste caso, foi preciso alguma coisa entrar numa literalmente. (e perdoe-se o humor negro.)


Falo do Sr Cameron, claro está. O novo primeiro ministro inglês veio afirmar publicamente que, com ele, o serviço nacional de saúde não desaparecerá. Imagino neste momento todos os neo-liberais, uns por vocação (há desgostos para tudo), outros por complexo de casta a espumarem toda a sua raiva. E não apenas os neo-liberais ingleses mas os seus companheiros de luta, num mundo globalizado. E porque terá dito o Sr. Cameron uma coisa destas? Para os que não sabem o primeiro ministro inglês tinha um filho doente que morreu recentemente. O seu longo período de tratamento coube a esse tão detestado serviço nacional de saúde que nós decalcamos para cá.



E o Sr. Cameron teceu grandes elogios à grande competência e carinho que todos os profissionais haviam tido para com o filho.



Não é que fique feliz com a desgraça alheia. Simplesmente esta história torna óbvio aquilo que todos sabemos ou devíamos intimamente saber antes de tecermos qualquer tipo de consideração a respeito do que quer que seja. Que, em boa verdade, só percebemos a real importância das coisas quando precisamos delas. Fico feliz que os ingleses não tenham de perder o deu direito à assistência na saúde. E digo-o de forma insuspeita. A esquerda não é o lugar de onde vejo o mundo. Mas acredito num mundo em que a esquerda e a direta consigam ver nas pessoas a mesma fragilidade, a mesma exposição ao infortúnio, a mesma humanidade.



É sabido que me repugna qualquer forma de neo-liberalismo. Como qualquer forma de paternalismo bacoco. O Estado, na medida em que deva existir (e como obeso que está, recomenda-se ida urgente ao nutricionista do SNS) existe para servir as pessoas e não para as pessoas se servirem dele. Deve parar nesse ponto: difícil e que exige uma luta diária.



Mas, também sei, que não pela corrupção de uma ideia (pelas filas de espera, pela fraude, pela incompetência) que uma ideia deve desaparecer. Deve-se, antes de tudo, purificar essa ideia e a decantação passa forçosamente por se não desistir dela.



O mesmo se diga quanto ao subsídio de desemprego: apertem-se os requisitos e a fiscalização. Mas não se olhe para o mundo com uma de duas formas: como se tudo o que é nosso fosse lindo e bom (até porque se é comum deve ser mantido por todos e não apenas por uns para os outros, só porque sim) ou, então, como se ser-se humano fosse ser-se irremediavelmente oportunista, infantil, fraco ou chupista. Que o SNS não goza de boa saúde, é bem verdade. Mas também é verdade que estaria a saúde de todos nós muito pior se ele não existisse.



Conheço casos dos dois tipos; sim, como se fossem síndromes: tenho amigos que afirmam que o PREC foi uma coisa linda (apesar de parecer despropositado, a achega teve de ser dada) e outros que acham que o ministério da cultura devia ir com a nossa senhora; que o subsídio de desemprego é uma mama eterna e afins que atestam bem que há algo de muito inóspito naquelas cabecinhas lindas. A uns gostava de os ver sem a fechadura na portinha da casa; aos outros gostava de dizer que a cultura, embora possa ser de massas, não é só a massa. ponto. (embora pareça ser só essa a que têm.) Também eles deviam ir mais vezes com a nossa senhora, mas a religião a sério é uma "maSSada".



Costumo confiar nos resultados que o tempo opera (e, sim, todos nós estamos em lista de espera para aprender). Histórias como estas do Sr. Cameron mostram o que penso quando vejo o mundo: que não podemos nunca deixar de ver as pessoas: com tudo o que elas têm direito. E intimamente continuo a confiar que um dia aqueles que conheço que votam no Bloco mas não acreditam que vá haver nacionalizações (até porque a UE nos impõe o mercado (e a democracia, já agora.) cresçam. E que aqueles que conheço que querem mandar para uma urna o coitado do SNS, o subsídio de desemprego e a ministra da cultura (coitada, e logo agora que ela pelo menos é simpática) caiam do pedastal e curem a miopia social. É tudo uma questão de tempo: e vai ser interessante vê-los a desesperar por uma TAC que custa uma fortuna; a desesperar pela assistência e os meios vasculares e cardíacos que apenas os hospitais públicos podem dispensar. É tudo uma questão de tempo. Alguns, depois de lerem isto, vão ficar de tal forma que o melhor é parar por aqui. É que à crise do país, juntar-se-iam as crises deste meio mundo de gente que tem mais em comum do que pensa. E isso, sim , seria uma "massada."


Uma maçada, digo. Para o SNS e, sobretudo, para mim.



sábado, 15 de maio de 2010

o ano de 1993_saramago.*

Reencontrar Saramago nas dobras dos dias -nesse espaço sem tempo, é sempre um prazer. Há escritores que nos fazem falta, cujas palavras bebemos com a sede da saudade que parece, de repente, mais funda e urgente. Este livro foi uma pausa - uma leitura acto contínuo. Até ao fim. Ou até à próxima. Para breve, espera-se.

Escrita um ano depois de Abril, Saramago esboça nesta obra uma crónica em tom profético. Cedo se percebe que tudo o que caracteriza a sua voz está ali: o tom moralizante embuído dessa sempre ironia fina como um jogo de luz e sombra: como se do contraste a verdade resultasse mais nítida. Encontramos um Saramago poético - um texto com um corpo surpreendente, por cujas curvas a atenção desliza numa confusão de sentimentos e sentidos. Num balanço tortuoso as suas palavras são agudas e claras como luz.


Saímos desta obra convencidos de que talvez houvesse medo de que os mesmos erros voltassem. Vemos que a profecia e as criaturas de ficção científica são nomes e faces de uma mesma coisa. São metáforas, são imagens fortes para o mesmo. São a defesa disso que na altura desta obra era ainda uma conquista recente.


Saramago como paladino da liberdade; como a voz que ilumina os meandros da humanidade: o discurso como uma linha que cose a carne e o espírito para o ver como um só. Isso que o torna justamente tão único e imprescindível.


Acaba-se a obra e repara-se que o mais maravilhoso é o que em nós começa depois dela terminar. Como sempre.




"O interrogatório do homem que saiu de casa depois da hora de recolher começou há quinze dias e ainda não acabou / Os inquiridores fazem uma pergunta em cada sessenta minutos vinte e quatro por dia e exigem cinquenta e nove respostas diferentes para cada uma / É um método novo / Acreditam que é impossível não estar a resposta verdadeira entre as cinquenta e nove que foram dadas / E contam com a perspicácia do ordenador para descobrir qual delas seja e a sua ligação com as outras / (...) / O homem que saiu de casa depois da hora de recolher não dirá porque saiu / E os inquiridores não sabem que a verdade está na sexagésima resposta / Entretanto a tortura continua até que o médico declare / Não vale a pena."


*com uns belos desenhos de Rogério Ribeiro.

a vida portuguesa_porto_III.







a vida portuguesa_porto_II.