Rewind

domingo, 19 de abril de 2015

Milinha,

Ao Deus que inventou o azul dos teus olhos,

eu disse que não queria amor mais nenhum.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus sorrir mas continuei,

e falei-lhe dos nossos abraços como gavetas em que as nossas imperfeições nos uniram mais

e aproveitei para lhe lembrar que te prometi muita coisa que ainda não fiz só para haver futuro.


Ao Deus que não sabe o que nos chamar,

eu disse que não queria milagres.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus abanar a cabeça com doçura mas continuei,

e contei-lhe que não sei o que fazer com o verde da Aparecida, as palavras no meu peito e as mãos nervosas se tu não estás

e, já agora, mostrei-lhe as fotografias que vimos os dois outro dia, à noite.


Ao Deus que se esconde no lado de dentro das tuas mãos,

eu disse que não quero saber para onde vou.

[não é preciso

não sei se é próprio de um Deus encolher os ombros mas continuei,

e pus-me a ler todos os postais da minha infância que tu ainda guardas

e, já agora, ainda hoje se ouve o meu riso por baixo das palavras.


Ao Deus que sempre me disse que estás à minha espera

eu disse que não sei rezar.

[não é preciso]

não sei se é próprio de um Deus piscar um olho mas continuei,

e escrevi o teu nome mil vezes na espera irrequieta do meu sangue

e, sem saber, escrevi com ele também o meu.


Ao Deus que inventou a Primavera do teu jardim

eu agradeci cada uma das flores.

são todas para ti, Vovó.



não demores.

sábado, 11 de abril de 2015

se era amor, veio à paisana|

se era amor, veio à paisana, sabes?

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

ri-me muito contigo e o cheiro da tua pele foi uma maré cheia por cima de tudo.

depois, a tua boca ensinou-me a esperar.

havia silêncio e os teus olhos eram a luz no fundo dos meus.

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

depois, a saliva foi a tinta inventada para o papel-fogo da nossa pele

e quisemos despir-nos de luz acesa.

primeiro, fomos um poema ilegível.

depois, as linhas dos nossos braços rasgaram a noite

e ficou escrito que eras minha na diagonal do suor nas minhas costas.

primeiro, quis continuar a ir sozinho ao cinema ou ao café

depois, vi que já não era minha a sombra que vinha nos passeios

e telefonei-te três dias seguidos quando a luz do fim de tarde, de repente, me doeu.

primeiro, guardei a tua t-shirt branca na gaveta do fundo da cómoda sem pensar

depois, tive saudades tuas como quem espreita uma vizinha com uns olhos bonitos demais para se ficar longe

e voltei a telefonar-te.

primeiro, foste um fósforo numa noite escura.

depois, o escuro continuou a ser escuro

e a noite continuou a ser noite.

eu, era outro.

(porque era teu)

RM 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

no princípio,

no princípio, acho que foram os teus olhos.

o autocarro passou e era noite, de repente.

no princípio, foi tudo o que não me disseste.

(ainda)

e eu atrasei qualquer futuro que fosse nas rodas daquele autocarro e deixei-me ficar.

fomos andar para perto do mar.

hoje, percebo que o amor começa quando o que ainda não vemos do outro é tudo o que queremos ter.

disse-te

algumas pessoas decidem ficar a viver sempre na véspera do futuro.

riste-te ao pensar nessa vida de vésperas, nessa vida que fica sempre do lado de cá do nevoeiro, nessa vida de quem se esqueceu de sonhar.

tens razão. mas escolhes sempre não apanhar autocarros só porque o futuro tem que estar noutro lugar?

nessa altura, acendeste um cigarro e o vento era quente e vagaroso.

[não. não apanhei o autocarro porque senti que o futuro tinha que começar hoje.]

esta teria sido a minha resposta, se não tivesse descoberto que havia pele no fundo dos meus olhos e que tu a acordaste.

escondeste-te dentro do meu casaco - os teus braços à volta da minha cintura e o silêncio a deixar, de repente, de ser um lugar desabitado.

fizemos tantas vezes isto - falar, noite dentro, agasalhados no corpo um do outro e descobrir que o silêncio de quem ama nunca é silêncio - é outra coisa.

no princípio, o autocarro passou e não demos por nada.

rimos por causa de um filme qualquer e rimos por causa de tudo e de nada.

rimos porque o que ainda não víamos um do outro era o que queríamos ter.

no princípio, atrasei-me.

e habituei-me a ver-te fumar pendurada no parapeito das janelas, nas escadas do prédio ou no meu colo, na varanda.

naquele dia, não tive pressa - falei-te como se sempre me tivesses esperado, como se fossem todos teus os meus sorrisos naquele desvio e improviso em que começa o amor.

naquele dia, o autocarro levou a véspera do futuro com ele. o futuro começava ali - no lado de lá do nevoeiro para onde me levaste pela mão.

naquele dia, amor, atrasei-me.

e cheguei a horas.