Rewind

sábado, 26 de setembro de 2009

Amnistia Internacional.Vida de cão

Folha branca

Uma folha branca diante dos meus olhos. O papel liso com a luz que o beija em brasa - é fim de tarde. Lá fora, as ondas num voltejo permanente. Presa nas rochas a saliva de um amor perpétuo. Começam a despertar os ruidos da noite - ecos distantes como passos perdidos sob o som do Mundo.
O voo acrobático das gaivotas; gente que caminha solitária na praia. Julgo ver um beijo entre dois corpos abraçados sob um céu de fogo que se extingue.
Tenho os sentimentos - esses grandes corpos que temos dentro de nós; massas de um galope marcado; de um respirar ofegante; de uma dor lancinante que rasga. Tenho esses corpos dentro do meu. Mas queria as palavras. Queria que as palavras se alinhassem num trote suave na brancura de gesso do papel. Que tivessem a mesma intensidade e dissessem o que vem sem som. Queria-te apenas a ti - as palavras que fixassem o brilho escuro dos teus olhos; a graça pueril do teu cabelo quando o vento te pegava ao colo na praia; queria o adjectivo preciso que te roubasse ao tempo para te preservar imune nesse impulso com que me pões na carne o espírito.
O mar continua nesse amor perfeito esculpindo as formas do corpo de quem ama.
Ouço alguém que passa e ri - uma gargalhada luminosa que rasga a neblina da vida e ilumina ainda mais o teu rosto que me aparece - perfeito e suave.
Continua numa síncope intensa o galope deste vazio cheio de vida. E procuro as palavras no caminho que ele trilha. Chegam-me ao pensamento palavras. E, de novo, o teu rosto. É ele quem me prende a atenção. A luz que repousa no fundo do teu olhar; as tuas mãos pousadas na capa de um livro qualquer enquanto dormitas à lareira, num dia de Inverno qualquer.
E sempre o mesmo galope. E o mar que se cumpre e se dá, sem palavras.
As palavras dão-me medo, agora. Meto as mãos nas gavetas da memória. Saem de lá todas as imagens, de todos os dias, de todas as horas. Não guardei palavras. Ou as que guardei foram as tuas. Tudo o resto és tu e é teu - o teu corpo a habitar-me a memória e a envelhecer intocado dentro de mim.
E, de novo, a folha branca. O gesso torna-se azulado. É a noite que chega. O céu é um guache mais carregado. A areia fica quase roxa e as rochas negras. Chega um vento que namora as janelas aqui de casa. Talvez o Verão esteja no fim.
Vêm as palavras - rondando, serpenteando no silêncio audível. E a tua imagem como um filme mudo; paralelo.
As palavras dão-me medo, agora. Podia prender-te no corpo de algumas delas. Amarrar-te à promessa de vida que elas são. Namorar os adjectivos mais vivos; edificar as metáforas mais bonitas para te inscrever na mármore da eternidade. Mas dão-me medo as palavras, agora.
Como emprestar-lhes a avalanche que nasce cá dentro? Como coser-lhes o exacto pormenor de uma madeixa tua que repousa no meu peito enquanto dormes?
Por isso me dão medo as palavras, agora. Porque se acaso te não dissesse perfeita como és ou omitisse qualquer falha tua - essas que exactamente te tornam possível de amar sempre, teria de reescrever o que és. E serias várias coisas. A cor dos teus olhos estaria sempre a mudar; o teu imenso brilho quando sorris oscilaria numa escala sem fim. E não pode ser. O mundo faz-te mais bonita todos os dias. Mas o amor é o mesmo.
Não te quero prender no que te não diga. E não quero ter de dizê-lo. Dar o teu nome e a tua graça a uma imagem que não é a tua.
E, ainda, a mesma folha diante dos meus olhos. E sempre o mar.
Não cabes nas palavras.
E logo quando chegares e estiveres nos meus braços o mar entrará pela janela e tu serás a rocha que amo enquanto o vento rouba de junto da janela uma folha branca e vazia qualquer.

Mercado de Porto Belo*


*Agora até finais de Outubro.

Saraband de Ingmar Bergman

Revisitar Bergman foi um prazer. Noite de Verão - ar macio e amplo. E eis que surge no ecrã a história de Marianne que, depois de trinta anos sem contactar com o seu ex-marido Johan, sente uma súbita necessidade de o rever. E tudo se passa com o fundo da casa de Verão de Johan onde vivem também o filho deste - Henrik e a sua neta - Karin. Quando os reencontra todos estão ainda em luto por Anna - a mulher de Henrik e mãe de Karin sendo que a presença desta continua a sentir-se. Eis a obsessão de Bergman pelo rosto - a foto de Anna sempre presente.
Marianne vê-se colocada no centro da vida desta família. É a confidente de Karin e assiste à animosidade entre pai e filho que partilham um grande amor por Karin.

Neste filme aparecem as temáticas de Bergman: a solidão, a ansiedade sexual, o rosto em planos marcados e intensos; os diálogos incisivos; a busca de um sentido para a vida; a culpa e o castigo. Não fosse este o derradeiro filme do realizador sueco. É um filme sobre a natureza humana, sem artifícios - a humanidade nesse retrato profundo, por vezes, cru, até. Mas Bergman, que assumiu ter passado a vida a exorcizar os fantasmas de uma infância traumática, põe nas imagens e nas palavras da sua obra, isso que somos - o rosto fiel e sincero da Humanidade.

Porque o rosto "é o fundo; o resto só acompanhamento."

Los Abrazos Rotos

O trailer passava há uns tempos nos cinemas. Um bom trailer, pensei. Imagens sugestivas; uma aura de mistério e o apelo irresistível de uma trama por decifrar. Promessa de um bom filme que fui ver se se cumpriria. Sou fã confesso de Almodóvar e, portanto, não partilho de algumas das críticas que o tornam de realizador talentoso em apenas um realizador com sorte e mediatismo. Almodóvar é Almodóvar e a sua obra fala por si.


Esta é a história de um realizador cego que nos revela o seu passado - um amor trágico e intenso de há catorze anos atrás. Nessa altura, ainda como Mateo Blanc, conhece Lena e com ela embarca numa paixão desenfreada que atormentará o companheiro de Lena - um poderoso e influente magnata. Toda a trama é intensa - com esse traço carregado e inflamado que caracteriza Almodóvar. O rosto da paixão sempre presente - o ciúme, a violência, a rivalidade e a tragédia. Com a morte trágica de Lena, Mateo Blanc morre e nasce para a vida o seu pseudónimo: Harry Caine. Da narração destas memórias desenrola-se o fio de uma história em que Almodóvar aparece em Almodóvar. Como numa espécie de revivalismo - também ele repescando uma história já vivida e, enfim, recontada, aparecem excertos de outra das suas obras: "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos."




Muitos esperam de Almodóvar que faça Almodóvar. E ele continua a fazê-lo. Não porque continuem lá os ingredientes de uma receita de sucesso. Ou talvez não só apenas por isso. Embora não tenha a mestria de "Tudo sobre a minha mãe" - uma obra prima - continua a ter o que Almodóvar faz bem - bom cinema com uma Penélope como um ingrediente que torna tudo bem mais saboroso.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Inglourious Basterds

Foi com alguma ansiedade que fui assistir ao último filme de Quentin Tarantino - "Sacanas sem Lei". Eis uma curiosa tentativa de reescrever a História. Com as habituais cenas de humor negro de traço exagerado, mordaz e teatral Tarantino afirma aqui o seu estilo mais uma vez. As legendas em amarelo típicas do cinema classe B ou para cinema ou o pormenor de pôr as personagens a falarem a sua própria língua. Tudo isto constrói a história de Shosanna Dreyfus, judia que vê a sua família ser chacinada às mãos do coronel nacional socialista Hans Landa. Mais tarde, sob um outro nome torna-se proprietária de um cinema em Paris. Algures na mesma Europa ocupada o Tenente americano Aldo Raine conduz o seu bando numa perseguição feroz aos Nazis.

Este bando - conhecido como "Os Sacanas" acaba por se infiltrar com a ajuda da actriz alemã Bridget von Hammersmark no cinema de Shosanna onde o complot dos americanos para fazer ruir o corpo do Estado Nazi se alia ao desejo de vingança de Shosanna.

Curiosa a alusão ao cinema como arma e local para fazer colapsar um regime que, como o Nazi, se apoiava, sob a direcção de Joseph Goebbels, numa máquina de poderosa propaganda.

O humor e a inteligência de Tarantino numa provocação ao seu estilo.

"It´s a bingo!"