Rewind

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Avó,

E se te escrevesse mais uma daquelas cartas da meninice, nestes dias em que estás longe? Como se namorar a saudade fosse este ritual de continuar a dirigir as palavras do quotidiano em direcção à luz que nos nasce da lembrança uns dos outros.
Continuar a nomear-te - "Vovó", com um sorriso a desenhar pregas fundas nos cantos do rosto. Continuar a esperar contigo a frescura do fim do dia para olhar o jardim, as flores e os melros que sempre voltam. E antes disso chegar de novo, escrever um postal que te diz que a saudade é como uma espécie de branco sujo - fica a faltar o néctar da luz que traz esse tom exacto da plenitude, desse escorregar devagar das horas levadas pelo fresco da água, ao fundo.
Escrever-te que a casa sem ti é como um hino sem refrão - falta o pico mais alto, em que as vozes deslizam ferozmente até ao momento em que tudo é uma acalmia do espírito.
Falar-te das saudades que o teu cachorro sente de ti - procura-te ao cimo das escadas e percorre todas as salas e os quartos provando que o amor é sempre uma espécie de território que reclamamos para lá das ausências, dos espaços em branco que enchemos da matéria do sonho e da poeira da memória.
Correr a contar-te todas as novidades - mesmo quando não há novidades, fala-se, fica-se mais um bocadinho, arrasta-se a vida como numa espécie de valsa improvisada sem tempo, sem ensaios, sem nada mais que esse fio condutor que é o sangue e o apelo gigante da carne.
Pedir-te que chegues rápido - os dias sem ti são como desejos que não se podem endereçar, como poemas que se deixam na gaveta por acontecer.
Ter-te dentro, por perto é ter no soalho do chão essa promessa de vida como num pomar cheio de murmúrios doces, de cheiros suaves e zumbidos da vida por perto.   
Chamo-te com essa ansiedade carinhosa esperando que venhas - tudo recomeça e retoma esse caminhar alegre como o das crianças que correm em direcção a um regato fresco nessas horas de hálito sêco e quente do Estio.
Juntemo-nos a chamar pelos teus pais, comigo a dizer-te o que guardo de ti dessa minha infância de pequeno príncipe numa corte plena de felicidade e de mimo - o mimo que é como um bordado que se faz na pele, uma manta que nos cobre de ingenuidade o espírito e nos abre a porta dos sonhos.
Falemos do Avô como se ele fosse chegar em breve - com esse ar de satisfação porque mais um muro ou esteio se ergueu, porque mais alguém conseguiu compor a vida com a sua ajuda silenciosa.
Falemos de nós com essa arrogância de nos pensarmos imortais - desse chão e só dele nasceu o que nos mostrou o céu, esse firmamento sem medida que coroamos com os nomes daqueles a quem queremos.
Espreitar-te o azul claro e luminoso dos olhos e saber de imediato como te sentes - sentir-te o pulso nesse olhar de mulher brutalmente inteligente e complexa.
E chamar-te minha. Viver na pele com a certeza de nunca querer ter nascido noutro lugar - e orgulhar-me secretamente de ti - sempre espantado com a espessura da tua vida, com a solidez do cimento do teu carácter, com a tua capacidade de viveres no tempo que te cerca e sempre o ultrapassares.
Admirar a forma como sublimas o tempo, a pequenez do horizonte e agigantas o espírito em direcção ao exemplo que te mora dentro, em direcção ao rumo onde queres que o teu nome, a tua história chegue para te revelar inteira.
Por isso nunca me senti sozinho nesta família de gaiatos de espírito acutilante e aceso que tu e os teus sempre tiveram. Falo-te da minha mãe, do A., da Gó e do Pai. O círculo fecha-se nessa promessa de fé que se incendeia todas as noites.
E queria escrever-te de novo a dizer: "Vem."
Afinal esse foi sempre o meu desejo quando te invocava o nome - a absoluta necessidade da tua presença e do calor do teu corpo.
Todo o amor sincero e desmedido é como uma inscrição que se guarda na pele e que nos lembra exactamente onde a história ficou para se retomar o caminho.
E continuar. E continuar, sempre.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

largo winch_the heir apparent.

fé.

Havia uma pequena caixa de música no teu quarto. Essa melodia que flutuava no ar como um assobio de cristal. Tudo o resto eram almofadas de um silêncio doce e terno do conhecido. Lembro-me de em pequenino ficar a observar tudo aquilo - como se apalpasse com os olhos a polpa doce de um fruto colorido. Como se saboreasse o travo da memória que nos lembra de que chão viemos para erguer os braços em direcção à luz.
Sempre senti que crescera abençoado - e erguia esses pequenos nadas que eram para mim Verões de uma luz de cal e um calor intenso, que eram para mim o motivo de orgulho maior, a razão porque afinal nada havia que reclamar do mundo.
Por isso confundi fé com esse oceano de camélias, de casas com corredores longos em que os quartos se alinham como um exército de segredos e murmúrios. Confundi  fé com esse novelo de histórias que aprendi a ouvir e me pôs no espírito a gratidão pelo alcance do pensamento dos que vestiram este sangue antes de nós.
Lembro-me sempre, repetidas vezes, todos os dias dessas caras que me guardaram a vida, se plantaram no meu chão para fazer dele o mais fecundo dos pomares, a mais verdejante paisagem com um ruído de meninos que correm e riem, ao fundo.
Chamei fé a ter um chão, chamei fé a essa acalmia que me nascia porque trazia no sangue o antídoto que eram todos vocês - aqueles das fotografias na praia, aqueles dos passeios nas férias, das conversas mais fundas que ensinam o corpo a dar à costa depois das marés da vida. Chamei fé depois do encanto que me doura cada lembrança - como um vitral por onde serpenteia uma luz que ilumina os vossos rostos. E, de súbito, relembro com saudade aqueles a quem nunca soube dizer adeus, aqueles que me ficaram na pele como uma mão que ainda toca, mas que já não se pode agarrar.
Chamei fé a esses murros na carne que nos torcem os ossos num abraço, que nos encaixam as formas do corpo nos abrigos que são os outros.
Chamei fé ao calor dos corpos que se tornam piras na noite das coisas e dos tempos - chamei fé ao perdão, à saudade, à dor que nos trouxe sempre a todos do mesmo lado do caminho.
Foram vocês que ergueram esse apelo dentro de mim - essa família que foi como um coro de vozes em que a palavra era um prolongamento das alamedas da alma e do ser.
Falar convosco - ter ouvido cada um de vocês, ter escutado as pessoas que nos rodeavam fez-me um mosaico pintado de uma eterna esperança de redenção, de acalmia e de compreensão.
A minha fé é a minha família - a minha catedral erguida sobre os pilares que o tempo cravou fundo na pedra da minha história.
Por eles tudo se justifica e reconstrói. Com eles tudo se reequilibra e ilumina.
A minha fé é um fio que trouxe na carne e que o toque dos outros me apertou no espírito.
Foi por eles que descobri a fé - a fé como esse impulso na direcção do outro como quando uma criança corre porque está subitamente feliz.
E em mim toda a vida haverá força para correr para aqueles que me diminuíram à carne para me aumentar o alcance do olhar.
Vê-los é o que faço - como se nascessem com a luz do dia ou fossem dormir no colo escuro da noite junto de mim.
Tive fé porque assisti ao maravilhoso milagre das pessoas que me quiseram mas que não tive nunca que querer. Essas pessoas que me aconteceram e me polvilharam de sentido a espessura do caminho, o significado das palavras e o brilhar do sonho.
A minha fé nasceu do exemplo deles: ao saber que há assim um amor quase como uma violência, um borbulhar de ferro e fogo no sangue, soube que esse foi o maior dos presentes que aqueles que amo me deixam: da lembrança do tamanho do meu amor por eles, é sempre mais fácil acreditar que se pode alcançar o céu.