Rewind

sábado, 5 de maio de 2018

06.05|Mamã,

Mamã,

Há quase 31 anos, vimo-nos pela primeira vez - e a vida foi somente o primeiro dos presentes e dádivas que me deste. 

Sei que nos quiseste muito - falaste-nos sempre, sonhaste-nos um futuro inteiro de luz e preparaste o mundo para que a nossa entrada na vida fosse como um abraço. 

Nós, malandros, viemos mais cedo do que o previsto - costumas dizer-nos, a brincar, que a vida nos ensinou - a mim e ao A.- a lutar desde o primeiro dia. 

Eu sorrio, querida Mamã, e digo-te, 

Quis vir conhecer-te mais cedo, foi o que foi! E que sorte a minha que, ao menos, eras linda!

Esperavas-me tu - tu que foste quem me vestiu a pele de carinho e me infiltrou os poros e o sangue todo dessa poesia irrequieta e sonora que é o amor. 

Ainda tenho guardada no frasco enorme da memória, a nítida presença do cheiro do teu perfume enquanto nos embalavas e lias histórias antes de dormirmos. 

As mãos sempre dadas - mesmo nos inúmeros passeios de carro, uma mão para cada gémeo até que, finalmente, o sono deixasse o sonho principiar.

Mas os filhos, Mamã, talvez amem mais as mães que têm e que não merecem - e, eu, não te merecia. 

Há qualquer coisa de sempre inacabado, de incompleto no retrato que construo de ti - as almas grandes, como a tua, têm, sim, divisões escondidas, recantos recônditos, vestígios de esperança e despojos de lutas antigas - e nisso, precisamente, reside o mistério maior da sua descoberta. 

Sei, meu amor, que amaste a tua Mãe até ao fim - perdê-la com apenas dezassete anos para uma doença silenciosa e maldita, é uma ferida que nada conseguiu sarar. 

E eis que, crescendo, descobri uma razão maior para te amar mais fundo, 

No dia da missa de sétimo dia da tua mãe, tu escolheste um caminho - o de, nesse mesmo dia, ires fazer os exames e ir para Coimbra, para a faculdade. 

Era isso que a Avó Bela quereria e a coragem da tua homenagem foi, então, maior do que tudo.

Sei, Mamã, que se a Avó te vir, está orgulhosa. 

És uma Mãe como ela foi - tudo sempre explicado, vivemos, entre nós, uma relação de absoluta verdade e confiança inteira - somos companheiros de caminho, meu amor, até ao fim. 

Em ti, admiro a inteligência que te fez precoce - desde o princípio, nasceste uma criança especial a quem foi ensinado o alfabeto dos afectos. E nunca o teu privilégio te fez vaidosa, menos doce, menos simples, menos capaz de reacção ao mundo e aos seus desaires. 

Ainda hoje, ouço coisas, 

Oh menino, a sua Mãezinha ajudou a pagar o curso da minha filha, ou, 

O trazeres para casa as vidas e os nomes desses miúdos que te preocupam - o quereres saber se eles comem, olhá-los com olhos de ver e, por exemplo, pagar-lhes o pequeno almoço se os achas fracos ou pouco atentos às aulas, de manhã cedo. 

Dizem-mo. 

De ti, nem uma palavra.          

Não me deste só a vida - cada vez que recordo que existes, o meu desejo de vida renasce, como fogo, nas veias; há uma redescoberta súbita de algum encanto na melodia e no mistério imenso desta viagem. 

Sem ti, o meu coração seria uma carta sem destinatário, as coisas mais belas ficariam, certamente, por dizer; o futuro de todos os verbos deixaria de se poder conjugar - porque é isso que uma mãe é para os filhos - um mar de futuro, uma janela que se abre no nosso peito e deixa entrar a luz. 

Pequenino, no escuro, deitava-me contigo no chão, 

A música - uma das da minha vida, é certo -, que tocava, 

When you're weary, feeling small
When tears are in your eyes, I'll dry them all 
I'm on your side, oh, when times get rough
And friends just can't be found
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

E, mais tarde, a mania de te escrever cartas - dentro da mesma casa, o deixarmos cartas um ao outro - o conjugarmos no papel os verbos sem medo, o empregarmos as palavras sem receio de que elas nos prendessem - cedo me ensinaste que dizer aos outros o quanto precisamos deles não nos prende - significa, isso sim, que há liberdade de nos escolhermos, de nos acolhermos, de nos agarrarmos e sermos os dois lados de uma mesma estrada. 

Vou amar-te também no meu silêncio - como um ventre cheio de esperanças, também ele continua permanentemente a lembrar-me as pinceladas imensas e intensas deste amor que é o nosso. 

Trago o teu nome na forma como ando pelo mundo - tento, bem pior do que tu, é verdade, olhar, ver e reparar nos outros; não ser indiferente e, nunca, deixar que a vida nos torne azedos, menos capazes de crer no milagre do amor. 

Guarda sempre as minhas cartas, meu amor. 

O meu coração precisará de ser sempre uma carta para um destinatário - e, apenas tu, percebes as palavras com que, primeiro, eu aprendi a soletrar o amor. 

Entretanto, liga a música, 

When you're down and out
When you're on the street
When evening falls so hard
I will comfort you
I'll take your part, oh, when darkness comes
And pain is all around
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

No escuro, como em pequeno, eu vou estar lá contigo. Agora, que cabes tu nos meus braços, sou eu quem te promete um futuro que nos leve juntos e, como  no carro, em pequenos, estendo-te a mão grande, só para que o sono chegue e o sonho possa, sempre, principiar. 

Obrigado, Mamã

Amo-te. 

Um beijo, 

R.

RM|V|V|MMXVIII