Rewind

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Vovó,

Há um prazer infinito no som das tuas palavras - é um desses rumores carinhosos que cosi na face dos dias, que me habituei a ter como sintoma de uma felicidade estúpida de tão evidente, clara como uma manhã de sol de Inverno. Há sempre um gosto de renovação nos votos que fiz para contigo - nesse juramento que trocámos quando o meu sangue já te trazia, sem que o soubesse.
Sempre que a noite cai é lá fora que fica tudo do mundo que não somos nós, tudo do mundo que não seja essa corrente que nos enlaça os dedos e nos revela tão imperfeitos aos olhos uns dos outros. É nessa espécie de valsa sem pudor, de coreografia improvisada de gargalhadas, de risos e lágrimas que erguemos um mundo em que a medida do que somos existe, pode existir e perdurar sobre os dogmas das sombras - como uma vitória sobre o medo, a finitude e a fragilidade de tudo.
É nesses instantes que o sangue corre mais fundo - tudo se completa, tudo se realiza num remexer doce dos ossos, das esperanças e sonhos - cabe-nos no peito uma medida maior do que a existência - isso que a justifica, a enobrece e amplia como um fogo aceso no escuro.
Posso dizer-te que me ensaiei maior, depois de ti - é no embalo da família que somos e de que falamos sempre muito que denunciamos esse fanatismo sem lei, sem regras que é o nosso chão.
Não há outra forma mais sublime para o amor que o absurdo - isso de as coisas se tornarem, de repente, numa construção que nos define sem que nos pertença, num hino desgovernado de sonho e paz. Corre para ti tudo o que sou - como se tu fosses a minha morada, um outro eu que procuro trazer na pele, bem junto do sentido dos dias, do correr da vida, enquanto tudo se some - menos tu.
A família é essa explosão no meio do caos do mundo - esse cadinho em que borbulha o metal derretido de toda a dor, esse pó luminoso do perdão, da redenção que nos chega pela mão, pela pele do outro que queremos trazer do outro lado do caminho.
Há um iluminar terno de tudo se o azul dos teus olhos me sorri do fundo da sala - há uma grandeza súbita de tudo o que habita o silêncio e que é como um conjunto de ferrolhos na carne - porque o maior dos amores traz raízes na mais funda das dores. Sai dela como uma catarse que nos liberta da inferioridade a que o tempo nos votou. E acaba erguendo uma súplica de eternidade, um desejo quase indecente e cego de pedir a eternidade.
O Homem conhece a eternidade pela experiência do amor. Apenas por ela se molda, se rasga, se reinventa e se aperfeiçoa - tudo porque a medida do sonho já não é somente a que quer, mas a que precisa para que o outro nela caiba, nela more e se abrigue das agruras do ser.
O Amor é chamarmos por nós na pele dos outros - reconhecer na existência de algumas pessoas, o sentido do perene, do inteiro que se dividiu - porque se dividiu e fortaleceu.
Quando me vinhas presa no sangue, disseste-me, como num juramento, que o azul dos teus olhos ficaria sempre preso no fundo de todas as minhas memórias - que seria o céu onde a noite trouxe sempre o dia - o dia redentor, de esperança, de carinho como um abraço cheio.
Partilho contigo o sangue que nos condenou aos mesmos crimes - a um amor fanático que não procura absolvição, que vive da grandeza simples de um apelo que nos juntou desde o primeiro dia.
É nisto que mora a minha fé - no cimento com que a família se ergue no meio de tudo, no meio de nada para rasgar a dúvida e deixar um princípio de paz - a paz que conhecerei sempre que pensar neste abrigo que fomos uns dos outros, nesse reduto sem escala e sem razão.
Fui sempre mais por ti e por todos nós- soube, desde o dia em que a vida se me impõs para continuar, que a medida das coisas está na força com que elas nos chamam.
E, por ti, continuarei a chamar sempre.
Porque no fim de tudo, a vida será sempre um encontro com aquilo que nos falta para sermos inteiros.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

esperança

Sentava-me com a cortina opaca da noite como um palco vazio. Nessa altura, enquanto o mar afinava a voz de encontro às rochas, acendias um cigarro. Era tudo como um vasto hino de silêncio em que ouvia a tua respiração funda e os teus olhos se tornavam pardos, acesos de mistério e desejo.
Estavas quase sempre com uma das minhas camisolas - o corpo trémulo com esse frio que aviva os sentidos e descompassa o coração.
E desatavas a lançar perguntas para dentro do escuro - como se da tua curiosidade nascessem pontos de luz no horizonte fechado. Respondia-te satisfeito - era doce o embalo da tua voz rouca - enquanto falavas, a noite era como uma fábula, um caminhar sereno como traços largos que se desenham numa tela imensa e branca.
Tinhas as mãos compridas - uns dedos como areia fina, clara e macia. E olhavas-me enquanto te respondia - tantas vezes maravilhado com essa cumplicidade que fica quando o agasalho que escolhemos é o despudor, a nudez explícita das coisas com a subtileza da noite como abrigo.
As ruas desertas - o vinho que se acaba, enquanto a música roda no ar como um balão cheio de ar de encontro ao vidro do mundo.
Respondia-te assustado - cravavam-se no escuro os meus olhos nos teus e quase te queria mais porque trazias na dúvida esse conforto da troca, esse renunciar que se torna uma conquista, assim que nos rendemos.
O fumo perdia-se no ar - estavas arrepiada e vinhas sentar a cabeça no meu colo - comparavas-me a alguma personagem de um dos teus livros. Quase sempre exageravas o retrato para encaixares uma gargalhada na caixa do teu peito, para ganhares ar e continuar.
Eram caricaturas doces, as tuas. Para ti era sempre tudo uma questão de superlativo, de intensidade, de um olhar atento que absorve os pormenores mais pequenos para forjar memórias que sabias serem só tuas.
Vias pelos meus olhos que procurava no infinito o espaço onde cabia tudo o que me dizias - onde, de longe, procurava encaixar a tua voz no diálogo que já trazia cá dentro.
E abraçavas-me com força - escutavas-me as palavras e deixavas-te ficar muito quieta deitada no meu colo, enquanto a noite não nos denunciava.
Pensava com desejo nas tuas palavras - as palavras são sempre a sílaba tónica das paixões - sem elas, sem essa gramática que traz luz do poço da noite e das coisas, a maior das promessas é um corpo vazio, um corpo que se perde na corrente do mundo.
Dizias que te fiz acreditar nas palavras, que até com o corpo parecia que te falava. E, na verdade, tudo parecia existir para ser nomeado e revelado ali, naquele instante, diante daquele espectáculo vazio que era o mundo.
Brincavas-me com os dedos - e quando a nossa respiração se encontrava, era tudo de uma leveza serena, de uma ingenuidade que te fazia tão inocente como num abraço.
Ficava o silêncio que era como um cobertor que punhas por cima de mim para me encheres de beijos, para te encostares a mim a ouvir o meu coração que juravas continuava a falar.
A dúvida combinava com a noite nessa varanda - contigo, apaixonada por mim porque, como dizias, as minhas palavras eram as mãos que te tocavam dentro, eram esse ar que te faltava, como uma ponte sobre os dias.
Fazes-me feliz - dizias. A tua boca com um sorriso quase tão aberto e franco como o que dizias. A felicidade é a luz que vemos, mesmo quando o abismo se estende como uma sentença no fim de tudo. A felicidade é a ferida que trazemos para nos lembrar da esperança. É como um lençol de luz que estendemos ao lado de tudo o que nos assusta, nos enfraquece, nos contamina.
Na noite, na varanda onde fumavas encolhida no meu colo, era tudo luz o que nascia do corpo das palavras. Era tudo esperança o que nascia da gargalhada que davas quando te contrariava e te punha no coração uns olhos capazes de ver outras coisas.
Fazias-me sentir do tamanho do voo da tua voz, sereno como o calor do teu corpo e intenso como o fundo luminoso dos teus olhos.
A noite era escura, mas dos teus lábios havia um beijo que selava tudo aquilo. Era altura de crermos nesse mar infinito que nos empurrava um para o outro.
Tudo era como um palco abandonado, imerso num silêncio sereno de onde tudo poderia nascer.
Até estrelas, dizias tu, a sorrir.         

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

carícias.

Dizes que na tua mão
Nasceram sonhos depois de um beijo.
Que se ampliou o céu no dia
Que nasceu da noite em que
Comigo deitaste ao mar o corpo
E foste inteira na corrente imensa.

Dizes que aos teus olhos o mundo se fez maior
E que em teus braços coube essa vertigem
Louca de alcançar o tempo.
Que se suspendeu a vida num momento
E eras já um chão que se abria sob a noite.
Minha pele em teus braços só tremia
E minha boca beijos semeava
Como estrelas que ao dia que raiava
Nada revelassem do desejo
E num lampejo 
Em segredo ficasse só comigo
A volúpia do teu corpo terno e vencido
O eco morno de um fulgor desconhecido.

RM

sábado, 1 de setembro de 2012

janela.

Hei de continuar nessa janela
A noite toda um bordado de luz
Que traz no colo a memória dos teus dedos
Nessa brisa que serena chega, enfim

Hei de de continuar esperando
Que as brasas dos teus olhos se acendam
Brilhantes e vivas
E que do véu escuro dessa noite de cetim

Se lance sobre o mundo esse rumor
De pele que se rasga toda inteira
De beijos que se cravam como espinhos

Hei de continuar nessa janela
Guardando as pétalas dos beijos que não murcham
O dia carmim como um corpo que se vela

E dos beijos que a tua boca sela
O doce murmúrio do desejo

Como água que serena
Corra num jardim.


RM

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

do teu cheiro.

Sempre achei que a tua recordação me podia vir como um aroma que surpreendemos no ar, fica suspenso e nos dilata o peito como um vidro feito estilhaços de luz e brancura.
Sempre achei que a cor dos teus olhos nesse momento em que acordavas podia vir preso ao cheiro do musgo nos jardins onde fumavas encostada a mim.
Sentir o teu cheiro afinal trazia tantas coisas escondidas - já nem sabia se eram as rosas que me lembravam de ti, se era a minha recordação da seda do teu corpo que as ampliava mais e mais até que tudo se parecesse a um lençol doce e suave.
Ficavas-me presa na pele - na ponta dos meus dedos esse odor aceso como os passos que o lume queimou sobre os teus ossos, que as palavras cravaram fundo como foguetes de luz no escuro da noite. O teu cheiro era como um rastilho que se acendia - sentir-te os passos era adivinhar que o cheiro que vinha do lado de lá da porta era o teu - vinhas subindo a escada com essa graça descuidada, esse bailado improvisado que deixa adivinhar o desejo nas veias.
As cortinas rodavam lentamente no ar como um balão que uma criança irreverente iria querer rebentar. Era um dia corrosivo de tão brilhante - a intimidade iria encontrá-la debaixo do véu do teu ofegar ritmado, debaixo das confidências que me deixas no ouvido enquanto a música se dança na aparelhagem contra o vazio.
Porque o vazio é isso mesmo contigo - essa ausência do mundo, dessas coreografias e valsas para ter como horizonte a linha funda dos teus olhos que se acendem muito quando sorris - toda, de repente, uma onda vibrante de serenidade.
E sempre o teu cheiro - até das tuas gargalhadas, depois delas ficava no ar essa leveza que se sente na limpidez com que o ar nos entra, na indiferença com que respiramos mesmo fundo sem querer saber que engolimos o ar e gastamos a vida.
Porque o teu cheiro há-de ser sempre leve - como as lágrimas que te escorriam durante as noites em que vestias os meus braços e o corpo de agasalho e as minhas palavras eram o diálogo que não conseguias ter contigo.
A tua recordação, qualquer pormenor de ti - como as mãos compridas com que brincas com o meu cabelo, o toque das tuas pernas que se enrolam nas minhas enquanto dormes como a pairar sobre planícies inteiras e mornas. Esse acidente que acontece porque estamos juntos - esse momento em que o acaso faz sentido, se encaixa no meio de tudo para depois ficar a contar o que fomos.
Grandes linhas - as mais profundas, pelo menos, nascem do acaso de nos abandonarmos aos braços um do outro, de aceitarmos que o véu do que se esconde se nos vai mostrar ao mesmo tempo.
Como aqueles amanheceres que gostas que veja contigo com a janela aberta e o arrepio da pele a juntar-nos mais de encontro um ao outro, enquanto o palrar do mundo, o bulício das coisas e o pêndulo da rotina se começa a arrastar ao longe.
O teu cheiro traz-te toda de encontro a mim enquanto passeio sozinho na cidade - não é exactamente um cheiro o que te anuncia dentro de mim. É esse olhar com os olhos imersos no meio de uma luz que nos embala, esse caminhar com os pés numa almofada de terra molhada e tenra.
Esse desejar-te com o fundo do estômago e parar no meio do caminho para relembrar um pormenor mais lancinante do teu ventre, desse movimento em que renuncias para te sublimares.
Trago na camisola a forma do teu corpo ou é ela que imagino porque ainda traz o cheiro da tua pele depois de a teres vestido.
Ficar a ouvir música contigo e deixar que as palavras nos toquem aos dois no mesmo momento - a sintonia de algo nosso se começar a gravar no significado daquelas frases para passar a ser algo de totalmente diferente do que se ouve a tocar.
O teu cheiro também é essa maresia que se desprende das rochas enquanto bebemos vinho presos no labirinto do desejo e nessa atenção febril que antecipa a chegada desse diálogo que se trava com os corpos para se conquistar com os silêncios.
Ouvir-te falar sobre um livro, sobre alguém da tua família que te marcou como a mim - vestida com a minha camisola pareces uma adolescente que faz do improviso a melhor forma de provocação.
As coisas que vi contigo são o cheiro da tua memória - a memória tem o cheiro do que as coisas ainda significam para nós. E podemos reencontrar alguém porque, por cima das letras, das valsas e músicas do mundo, se escreveu alguma coisa de que apenas duas pessoas são os intérpretes e sabedores.
Trocamos essa ampliação da confiança que é o silêncio - talvez que apenas nele se possa verdadeiramente escutar o coração. O silêncio envolveu-nos para nos revelar. E na nudez dessa entrega as possibilidades foram infinitas - porque o horizonte era a luz que trazias no leito do olhar nessas noites em que adormecias cansada de falar, de poder esticar sobre o silêncio as dúvidas cansadas, gastas e sombrias.
Tinhas graça, com essa camisola e esse corpo desenhado com um contorno mais nítido contra a luz.
Encontro-te nas palmas das minhas mãos e no suor do meu corpo. Ainda transpiro o teu eco na minha pele, ainda tragos os nós dos dedos atados na forma exacta dessa tua mão comprida e macia.
Do teu cheiro fica-me um painel feito da espuma de tudo isso que foi tão intenso como uma matilha de ondas que arfa contra as rochas.
O cheiro, afinal de contas, são os outros olhos que nos ficam quando deixamos de ver o mundo sozinhos.  

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

romaria.

Reconheço aos hábitos, a esses lugares e momentos que são como agasalhos com a exacta medida do nosso corpo, da nossa necessidade do familiar, do conhecido, uma razão para te querer mais fundo.
Era afinal dia de romaria - estávamos juntos nessa missa campal com a vasta planície verde a olhar-nos sob um céu de um cinzento pardo, tímido e húmido.
O verde tornava-se um manto mais baço com os flocos do nevoeiro a emprestarem a toda a paisagem uma melancolia própria desses dias do princípio do Inverno. Enquanto a multidão se alinhava e a missa estava prestes a começar depois de a chuva ter suspenso o pranto mais copioso, eu olhava-te por entre as pessoas - loira, com os olhos inundados dessa felicidade que te nasce sempre quando cumpres o teu papel, quando passas a fazer parte dessa valsa dos afectos de que voltar a casa sempre faz parte.
Olhava-te enquanto rezava e, quando me surpreendias o olhar, sorrias-me toda feita menina de novo, toda daquela terra com as tradições vincadas, com as gentes conhecidas, os caminhos percorridos, as paisagens amadas como verdadeiros capítulos, como autênticos parentes merecedores de afecto e atenção.
Tínhamos ido antes de tudo ao cemitério - enfeitar com as flores a dor da saudade de modo que elas pareçam promessas de beijos que a fatalidade não deixa cumprir, abraços que a finitude de tudo não deixa selar. Imagino que te doam essas romarias em que são mais os que já não vêm para que os recebas na tua casa com o jardim imaculado, com uma mesa farta e esse ruído que sai pelas janelas nos dias felizes.
Dói-me a saudade pérpetua que te tenho mesmo ainda te tendo - o amor como esse incêndio que se consome e se agiganta até aos confins do tempo.
Lembro-me desses dias longos do Verão em que ia de biciclete buscar os ovos a uma das quintas, em que escorregava nas ribanceiras à volta dos campos do milho.
Lembro-me do cheiro do lagar que em breve estará cheio quando chegarem as vindimas, lembro-me dessa rede que estendíamos por entre as árvores mais altas do jardim. Lembro-me dessas japoneiras frondosas e azevinhos brilhantes e do chão repleto de sementes que germinam um pouco por todo o lado.
As árvores de fruto e as tuas flores em todos os canteiros. As ruas cheias, o largo repleto de tendas e gente simples, dessa alegria despudorada que espanta as dores do corpo e as misérias da alma de todas aquelas pessoas que se juntam numa devoção chorona e quase infantil.
A procissão com os andores como torres de babel de cor e brilho desafiando o calor, desafiando os limites do corpo, as medidas da resistência e da fé.
As pessoas, algumas descalças, cumprem promessas e há em tudo isso um ensinamento de esperança e um olhar de admiração de quem olha.
Segredas-me que também tu já foste na procissão um dia, com uma das tuas filhas. Guardo-te mais essa confidência e observo o verde - "os meus campos", como lhe chamava o avô. Imagino-vos orgulhosos dessa construção maior que é a família.
O dia passa-se por entre conversas alegres, com a tua mão a procurar o meu braço para caminhares por entre as ruas de que me voltas a contar a história - que casas foram de quem, que esconde o tempo de ti e que vou descobrindo contente.
Juntos esperamos a noite - esse fogo que inunda o céu como se o dia nascesse, de repente, mais cedo.
Estar em família - recordar ao olhar para os retratos das paredes os nomes, os traços de carácter, o génio, os gestos, as dores, o humor e a ambição de cada um dos nossos que também já estiveram por entre aquelas paredes.
Juntos lembramos melhor - eu já te lembro pormenores do que me contaste, já te avivo a memória e já sinto que faço parte desses tempos que quase vivi quando deliciado captava a tua voz na minha infância.
Enquanto a tarde caía tive saudades de quando eu e o A. íamos com o avô ver se tínhamos apanhado algum melro, ver os castanheiros, ver as vinhas e adivinhar o grau, percorrer tudo e sentir nos pés e no peito o alívio que se desenha depois da imensidão.
Uma imensidão de promessas que se cumpriam sempre quando o lume do sol de apagava. Essa sensação de ir dormir com o corpo cansado e a alma cheia do orvalho da emoção e do calor da alegria que nos aconchega quando os sonhos, enfim, chegam.
Quando já era noite e estávamos os dois num dos terraços lembrei-te eu que fazia naquele dia anos em que começaste a namorar com o avô. Sei que te lembraste disso o dia inteiro mas lembrei-to eu para que da tua surpresa por´não me esquecer te nasça o consolo dos que jamais serão esquecidos.
E voltas a falar-me desse colar de três fiadas de pérolas e do vestido cor de tijolo que usaste e como o avô era bonito.
O amor é uma forma suprema de contágio - infiltra-se-nos na pele e depois nos ossos e faz ranger e brilhar tudo como uma casa que se abre de novo depois de muito tempo.
Propaga-se rápido como o fogo no céu que finalmente começa.
Tudo é luz e cor num céu preto como um véu. A capela iluminada lá no alto. E, no escuro, dás-me a tua mão. Aperto-ta com força e é assim que entramos na noite, sabendo que dela nascerá sempre o dia como uma promessa que afinal sempre se cumpre.
  
   

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Avó,

E se te escrevesse mais uma daquelas cartas da meninice, nestes dias em que estás longe? Como se namorar a saudade fosse este ritual de continuar a dirigir as palavras do quotidiano em direcção à luz que nos nasce da lembrança uns dos outros.
Continuar a nomear-te - "Vovó", com um sorriso a desenhar pregas fundas nos cantos do rosto. Continuar a esperar contigo a frescura do fim do dia para olhar o jardim, as flores e os melros que sempre voltam. E antes disso chegar de novo, escrever um postal que te diz que a saudade é como uma espécie de branco sujo - fica a faltar o néctar da luz que traz esse tom exacto da plenitude, desse escorregar devagar das horas levadas pelo fresco da água, ao fundo.
Escrever-te que a casa sem ti é como um hino sem refrão - falta o pico mais alto, em que as vozes deslizam ferozmente até ao momento em que tudo é uma acalmia do espírito.
Falar-te das saudades que o teu cachorro sente de ti - procura-te ao cimo das escadas e percorre todas as salas e os quartos provando que o amor é sempre uma espécie de território que reclamamos para lá das ausências, dos espaços em branco que enchemos da matéria do sonho e da poeira da memória.
Correr a contar-te todas as novidades - mesmo quando não há novidades, fala-se, fica-se mais um bocadinho, arrasta-se a vida como numa espécie de valsa improvisada sem tempo, sem ensaios, sem nada mais que esse fio condutor que é o sangue e o apelo gigante da carne.
Pedir-te que chegues rápido - os dias sem ti são como desejos que não se podem endereçar, como poemas que se deixam na gaveta por acontecer.
Ter-te dentro, por perto é ter no soalho do chão essa promessa de vida como num pomar cheio de murmúrios doces, de cheiros suaves e zumbidos da vida por perto.   
Chamo-te com essa ansiedade carinhosa esperando que venhas - tudo recomeça e retoma esse caminhar alegre como o das crianças que correm em direcção a um regato fresco nessas horas de hálito sêco e quente do Estio.
Juntemo-nos a chamar pelos teus pais, comigo a dizer-te o que guardo de ti dessa minha infância de pequeno príncipe numa corte plena de felicidade e de mimo - o mimo que é como um bordado que se faz na pele, uma manta que nos cobre de ingenuidade o espírito e nos abre a porta dos sonhos.
Falemos do Avô como se ele fosse chegar em breve - com esse ar de satisfação porque mais um muro ou esteio se ergueu, porque mais alguém conseguiu compor a vida com a sua ajuda silenciosa.
Falemos de nós com essa arrogância de nos pensarmos imortais - desse chão e só dele nasceu o que nos mostrou o céu, esse firmamento sem medida que coroamos com os nomes daqueles a quem queremos.
Espreitar-te o azul claro e luminoso dos olhos e saber de imediato como te sentes - sentir-te o pulso nesse olhar de mulher brutalmente inteligente e complexa.
E chamar-te minha. Viver na pele com a certeza de nunca querer ter nascido noutro lugar - e orgulhar-me secretamente de ti - sempre espantado com a espessura da tua vida, com a solidez do cimento do teu carácter, com a tua capacidade de viveres no tempo que te cerca e sempre o ultrapassares.
Admirar a forma como sublimas o tempo, a pequenez do horizonte e agigantas o espírito em direcção ao exemplo que te mora dentro, em direcção ao rumo onde queres que o teu nome, a tua história chegue para te revelar inteira.
Por isso nunca me senti sozinho nesta família de gaiatos de espírito acutilante e aceso que tu e os teus sempre tiveram. Falo-te da minha mãe, do A., da Gó e do Pai. O círculo fecha-se nessa promessa de fé que se incendeia todas as noites.
E queria escrever-te de novo a dizer: "Vem."
Afinal esse foi sempre o meu desejo quando te invocava o nome - a absoluta necessidade da tua presença e do calor do teu corpo.
Todo o amor sincero e desmedido é como uma inscrição que se guarda na pele e que nos lembra exactamente onde a história ficou para se retomar o caminho.
E continuar. E continuar, sempre.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

largo winch_the heir apparent.

fé.

Havia uma pequena caixa de música no teu quarto. Essa melodia que flutuava no ar como um assobio de cristal. Tudo o resto eram almofadas de um silêncio doce e terno do conhecido. Lembro-me de em pequenino ficar a observar tudo aquilo - como se apalpasse com os olhos a polpa doce de um fruto colorido. Como se saboreasse o travo da memória que nos lembra de que chão viemos para erguer os braços em direcção à luz.
Sempre senti que crescera abençoado - e erguia esses pequenos nadas que eram para mim Verões de uma luz de cal e um calor intenso, que eram para mim o motivo de orgulho maior, a razão porque afinal nada havia que reclamar do mundo.
Por isso confundi fé com esse oceano de camélias, de casas com corredores longos em que os quartos se alinham como um exército de segredos e murmúrios. Confundi  fé com esse novelo de histórias que aprendi a ouvir e me pôs no espírito a gratidão pelo alcance do pensamento dos que vestiram este sangue antes de nós.
Lembro-me sempre, repetidas vezes, todos os dias dessas caras que me guardaram a vida, se plantaram no meu chão para fazer dele o mais fecundo dos pomares, a mais verdejante paisagem com um ruído de meninos que correm e riem, ao fundo.
Chamei fé a ter um chão, chamei fé a essa acalmia que me nascia porque trazia no sangue o antídoto que eram todos vocês - aqueles das fotografias na praia, aqueles dos passeios nas férias, das conversas mais fundas que ensinam o corpo a dar à costa depois das marés da vida. Chamei fé depois do encanto que me doura cada lembrança - como um vitral por onde serpenteia uma luz que ilumina os vossos rostos. E, de súbito, relembro com saudade aqueles a quem nunca soube dizer adeus, aqueles que me ficaram na pele como uma mão que ainda toca, mas que já não se pode agarrar.
Chamei fé a esses murros na carne que nos torcem os ossos num abraço, que nos encaixam as formas do corpo nos abrigos que são os outros.
Chamei fé ao calor dos corpos que se tornam piras na noite das coisas e dos tempos - chamei fé ao perdão, à saudade, à dor que nos trouxe sempre a todos do mesmo lado do caminho.
Foram vocês que ergueram esse apelo dentro de mim - essa família que foi como um coro de vozes em que a palavra era um prolongamento das alamedas da alma e do ser.
Falar convosco - ter ouvido cada um de vocês, ter escutado as pessoas que nos rodeavam fez-me um mosaico pintado de uma eterna esperança de redenção, de acalmia e de compreensão.
A minha fé é a minha família - a minha catedral erguida sobre os pilares que o tempo cravou fundo na pedra da minha história.
Por eles tudo se justifica e reconstrói. Com eles tudo se reequilibra e ilumina.
A minha fé é um fio que trouxe na carne e que o toque dos outros me apertou no espírito.
Foi por eles que descobri a fé - a fé como esse impulso na direcção do outro como quando uma criança corre porque está subitamente feliz.
E em mim toda a vida haverá força para correr para aqueles que me diminuíram à carne para me aumentar o alcance do olhar.
Vê-los é o que faço - como se nascessem com a luz do dia ou fossem dormir no colo escuro da noite junto de mim.
Tive fé porque assisti ao maravilhoso milagre das pessoas que me quiseram mas que não tive nunca que querer. Essas pessoas que me aconteceram e me polvilharam de sentido a espessura do caminho, o significado das palavras e o brilhar do sonho.
A minha fé nasceu do exemplo deles: ao saber que há assim um amor quase como uma violência, um borbulhar de ferro e fogo no sangue, soube que esse foi o maior dos presentes que aqueles que amo me deixam: da lembrança do tamanho do meu amor por eles, é sempre mais fácil acreditar que se pode alcançar o céu.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Mamã,

Escreves com os dedos compridos, em qualquer folha e em lugares onde sentes que as palavras são subitamente o caminho. O cigarro tão pensativo quanto tu com o fumo a balouçar no ar leve que corre num murmúrio suave. Decorei-te assim: os olhos cativos de algum desejo, de uma ideia, de uma qualquer cumplicidade com a humanidade das coisas.
É isso que guardarei de ti sempre - a humanidade que me fizeste descobrir em tudo - no cheiro de um livro que alguém pega numa noite mais funda, no sabor que fica nos lábios quando damos um beijo com vontade de morder tanto quanto nos rói a ternura que sentimos.
Revelaste-me a humanidade das pequenas coisas, dessas pequenas coisas que se vão convertendo num antídoto contra o medo e o terreno onde brota a esperança.
Ficou-me de ti, malandra, essa sedução pelos pequenos nadas que provam a presença dos outros - vem-me à memória um sorriso teu, vejo-te passeando serena na cal da areia de uma praia qualquer. Não, da nossa Meia Praia como uma grande planície de longos passeios em que nos confrontamos para nos amarmos mais, onde nos descobrimos cúmplices do nosso crime de repetirmos os corpos na corrente dos dias sem cansaço, sem outra dor afinal que não a de um amor que tentamos ajeitar cá dentro, arrumar numa medida que não lhe serve, que o não quer.
Acho que temos um amor perigoso - desses que desafinam, desses que nos vestem de uma serenidade agitada - essa, sim, que nos nasce do absoluto encantamento que fica depois de uma noite de música na varanda, com os pés com uma baínha de calor dos dias de sol.
Todo o amor é uma forma de violência - em cada rendição, depois de cada cigarro e palavra lançados para a noite, fica-nos essa súbita vontade de aconchego nos braços um do outro.
Aprendi contigo a humanidade das coisas - essa segunda pele que fica em tudo depois de nós. Nada mais é igual. Fica presa em tudo a luz, a cratera do impacto e as sequelas da colisão. Ficamos nós como prova última de nós mesmos. Capazes dessa forma sublime de nos sentirmos muito para lá das ausências, de nos querermos muito para lá das feridas com que o mundo nos inicia e nos baptiza.
Só queria dizer que me ensinaste aos olhos um outro ver - como num sequestro aprendi a viver dentro das coisas - dentro das casas de sempre, dentro das linhas de cada página, lidas e relidas, dentro das mesmas pessoas, dentro dessa catedral de luz que é a memória.
Aprendi a gostar de estar nos mesmos sítios, pertencer a algum lugar, honrar com os rituais - a nossa vingança sobre a morte - aqueles que nos mostraram o mundo. Reviver é como tornar a captar essa avalanche de espanto que cada novidade traz.
Nas crianças o espanto é quase uma promessa da imortalidade das coisas, dessa humildade de ter no olhar o amor às coisas simples, o amor propriamente dito.
Só com a memória há uma gratidão que se agiganta até ao infinito - e a cada lembrança sentimos, de novo, o gelo do espanto que sempre nos causam a bondade, o perdão, os erros desses outros que sabem da vida o mesmo que nós: que fomos dados uns aos outros e que ficamos a morar na pele de quem prendemos na jornada.
De ti ficou-me esse reparar no que fica em tudo depois de nós - como se nos dessem a possibilidade de escrever uma narrativa que se prolonga muito para lá de nós, que se infiltra na pele como um beijo para nos adoçar o sangue, nos bordar de fé a sombra do caminho.
Aprendi contigo esse encantamento pelos silêncios do mundo, esse silvar sereno da memória que se nos revela como um presente que o passado nos traz.
Não fiquei o mesmo depois de ti - da tua pele nasceu a minha. E, com o tempo, sinto que ainda escreves cá dentro com essa tinta permanente de que gostas tanto, sempre que me lembro desses pequenos nadas que enchem as páginas da minha vida.
Principio por dizer "obrigado" que me parece uma palavra bonita e que vai bem com o mais luminoso dos amores.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Vovó

De novo deitado no teu colo - a minha cabeça com as tuas mãos desenhando linhas de ternura no louro dos meus cabelos como o teu. A vida só principia depois disto - quando a família nasce do chão dos dias para dar ao ar do meu peito um caminho mais fundo e mais sereno.
Vou até ti como num lampejo do instinto - ainda agora, enquanto escrevo, vejo da janela a tua casa e o seu jardim silencioso como um corredor em que já passou gente.
Vejo essa fachada que se tornou um símbolo da tua história - semeada de recordações, de um areal infinito de objectos de família: o relógio de capela do teu tio-avô, a caixa de prata de rapé do pai do avô, os retratos, os móveis, a roupa dos teus bebés guardada ainda nas gavetas, a jarra que recebeste do avô quando o primeiro dente do meu pai nasceu, os linhos, os cristais - a morada com que sempre sonhaste quando, ainda nova, dizias às criadas que querias uma casa bonita.
Avó, é bonito o sítio que é o teu - esse jardim de onde ainda ontem colhi flores para tas pôr na sala grande, essa casa onde as noites foram tuas  cúmplices e do avô nesse querer sempre mais, nesse escudar o lirismo da alma com a força dos gestos, da vontade e dos instintos.
Espreito-te o azul dos olhos enquanto desabafas comigo - são como pérolas embrulhadas de um véu azul brilhante. São a luz que dizes que eu e o A. acendemos quando chegamos.
Sabes sempre porque fico - ficar foi a primeira palavra que o teu corpo me ensinou, me pôs dentro quando me seguraste pela primeira vez. Devo ter sorrido, pela certa.
Ainda hoje sorrio só de te ver absolutamente apaixonada pela vida nesses teus vestidos de seda, nesse teu calcorrear os corredores da tua casa como em busca de alguém que te chama. As palavras com que os teus filhos te chamam - mamã ou eu e o A. - vovó são para ti uma missão que te justificou o ser e te pôs sol na janela do sonho.
Falo-te e as horas passam - a cada passo encontro mais uma coisa que não sabia e agradeço mais este dia, só mais este bocadinho que ajudou a talhar mais fundo o teu nome na minha lembrança.
A cada partilha encontro mais uma razão para te amar estupidamente - para ter uma certeza maior e feita de um ferro espesso de que não saberei ser o mesmo sem ti - sem tudo isso que me coseu na carne um conforto que me fez melhor pessoa, que me fez doer menos o mundo.
Falas-me da Amélia - essa criada que quiseste que fosse dormir para o teu quarto numa cama pequena posta para ela quando as tuas irmãs começaram a casar. Essa Amélia que te bordou uma toalha para que te lembrasses dela um dia e te lavava os pézinhos no tanque e te levava ao colo para dentro quando corrias, menina e leve, pelo jardim de que o teu pai tanto gostava.
Falas-me desse teu pai, cujo roubo atenuas com um chamamento perpétuo - ele vive nas tuas feições e nesse fascinio que é a forma com que os homens se fazem perenes no coração das mulheres.
Olho-te os dedos enormes e finos - estás mais magra, reparo. Explico-te e peço-te que comas, que vivas sobretudo por mim e pelo A. porque tínhamos um acordo de que chegarias aos cem.
E dizes-me: "Quem me dera ver os vossos filhos!"
Cá dentro rezo para tenham de ti essa destreza de chamar sua sempre a vida - reinventá-la, aconchegar os corpos e as dores na carne dos nossos e continuar.
A criada espreita-nos da cozinha - ri-se muito quando por lá ando contigo e com o A. E com esse rafeiro rasteiro de olhar doce que acolheste na tua infinita simpatia pela surpresa e o mistério da bondade dos bichos.
Estavas grávida de uma das tuas meninas - a primeira - e tinhas um gatinho branco. Um dia, como me contas a sorrir, pegaste-lhe e disseste: "Quem me dera que a pequena tenha uns olhos azuis como estes." E teve-os.
Somos uma raça de olhos azuis que se repetem a lembrar esse sangue francês que o avô do teu pai ou até alguém antes nos meteu no ser.
Falo-te da minha vida, de mim - com esse despudor que nos retira desses modelos imaginados de um lirismo decorado e triste. Excedemos a escala, alteramos os limites porque apenas nos queremos. Sempre e muito.
Digo-te que te perderei sempre cedo - irás sem que tenha roubado ao silêncio mais uma história encantadora da tua infância de ouro, do teu casamento de uma vida, desse amparo sólido que és e que a todos amou com uma medida que a razão desconhece.
Eu e o A. falamos de ti todos os dias, entre nós, com a mãe, a família - espantados, emocionados por Deus ter dado um nome mais fundo e mais verdadeiro às coisas depois de ti.
Procurar-te-ei sempre - a minha Milinha dos olhos azuis, a Milinha conversadora e brutalmente inteligente que fez de mim, desde pequenino, alguém que nunca quis crescer demais. Só para nunca deixar de caber no teu abraço de mulher pequenina e sorridente.
  
   

terça-feira, 8 de maio de 2012

Ao A.

O A. nasceu antes de mim, num dia que se disse fazer feliz a todos. Nasceu antes de mim, quase a tornar a minha primeira imagem do mundo, a dele. À espera. Apenas esperando por mim como que a dizer que uma qualquer coisa boa vai principiar em breve ou que alguma agrura será passado na próxima dobra do tempo.
A minha vida começou com o A. à cabeça dos dias, com o A. a habitar esse espaço que se chama sangue e que nos corre nas pontas dos dedos com que nos içamos acima da fatalidade e finitude das coisas.
O A. foi a pedra de todas as construções ou a areia de todos os castelos que a infância ergueu no colo da ingenuidade quando fomos crianças. Nascemos presos no tempo de cada um - e soubemos, sempre, em cada dia, que apenas essa prisão nos deu altura aos sonhos, nos deu espessura ao verbo e longe ao olhar.
Há uma violência secreta em sermos outro na nossa pele, em termos na nossa vida uma outra que queremos habitar, que queremos percorrer e chamar nossa.
O A. foi esse diálogo sem censura, essa cumplicidade espontânea que é como a luz que inunda salas inteiras para tornar o branco das paredes um espelho fundo e claro.
E os olhos do A. foram sempre do tamanho do dentro - são os olhos que vão dentro e veêm o que o instinto acaba por ajudar a explicar.
Todo o amor sanguíneo e fraternal é uma denúncia - somos nítidos aos olhos de quem nos guarda o mapa na carne e nos escuta as ideias em silêncio.
O A. tem no génio o avô que eu e ele perdemos e que tinha nele o seu cúmplice maior. O A. guarda de mim essas noites de conversa em Lagos, essas caminhadas numa Meia Praia de ancas roliças e beijadas constantemente por um vento agudo que se insinua.
O A. guarda as matanças das galinhas, os livros da Mãe que cirandam pela casa como caixinhas com o eco quente do familiar.
O A. é a recordação mais nítida das vindimas e das ribanceiras, dos cavalos e dos bocados de vida mais felizes que tenho.
Do A. são as palavras mais finas como punhais - sempre na verdade, sempre no mesmo caminho como um amigo do outro lado da estrada - o pó amarelo do calor a pairar no ar e a cair nos tanques como um náufrago fatigado.
O A. é o fundo da minha vida - como o céu que se ergue para abençoar os dias e dar tecto aos homens e aos sonhos.
O A. é aquela coisa só minha que não me torna egoísta - do A. serão sempre as noites em que o mundo continua para lá da vidraça e nós permanecemos - quase quietos, quase esquecidos do mundo e imersos no significado que lemos na vida um do outro.
Em mim, a verdade tornou-se uma coisa diferente de mim mesmo - é sempre isso mais que guardo dos outros por respeito, é sempre esse desvio que, levando para longe, me põe no olhar a atenção da distância.
O A. é essa solidão sem dor - esse ter alguém, cuja vida se nos oferece como uma promessa que o mundo não pode quebrar, que nós mesmos não podemos violar porque, sem ela, nada da vida nos restaria para viver.
Nasce-se sempre mais livre quando não se nasce sozinho - a liberdade amplia-se justamente nessa outra voz que nos habituamos a escutar mais fundo do que a nossa.
É-se infinitamente maior nessa partilha da dúvida, do encanto e da desilusão. É-se absoluto quando nada o é - e é isso que se ergue como o nosso pequeno milagre, a nossa pequena igreja que tem como altar, o colo daqueles que ficaram em nós.
O A. é o adversário que deixamos ganhar, que queremos que ganhe para serem nossas as lições que nos rebaptizam a esperança e esteiam a convicção.
Não há maior medida que o A. - mesmo as palavras parecem pinceladas baças e vidros turvos quando tudo fica apenas inteiro no silêncio.
Aí, no ventre quieto do mundo - nesse abafo quente que é quase como o início, as coisas tomam a ordem que sempre tiveram - ouvem-se as correntes que o tempo fundiu juntas e que nos trazem presos nos sonhos do outro.
Fomos dados à vida de cada um como cúmplices que vão cometer o crime maior - esse, de desafiar o tempo, de semear o sonho na terra estéril do fim, de almejar ser pedra num regato pequeno e feliz.
Corríamos nas alamedas de tílias com gargalhadas que faziam o azul dos olhos da Avó uma fogueira que estalava.
Falámos com todos, sempre muito. Rimos sempre muito e fomos ensinados nessa valsa de um amor que não se sabe que se aprende - somos atraídos para ela como um vício, um arrepio de pele que nos diz que estamos vivos, que somos inteiros.
O A. é a minha vida depois de mim, apesar de mim - um outro eu que vejo cumprir-se com outro corpo, com outros sonhos que posso fazer meus.
O A. foi a vida do tamanho do sonho. Esse que, desde o começo, nos pôs nos dois, o apelo um do outro, para lá de tudo.   

sábado, 21 de abril de 2012

do firmamento.

Havia tardes que se assemelhavam a um grande oceano de calma. Dias em que o mundo não morava na margem das coisas - tudo era uma linha de luz traçada pelo olhar que vivia preso num tempo em que os corpos não se cansavam e as pessoas eram os esteios de um céu fundo e do tamanho do sonho.


Lembrava bem essa vida com o ritmo das estações, das festas de família, desses almoços com mesas do tamanho de salas inteiras onde nunca se sentira sozinho.


A felicidade confundia-se muito com uma luz morna que caía do lustre sobre os rostos das pessoas que haviam de lhe fazer do ser uma espécie de muralha que a saudade fez mais alta.


Nunca se esquecera da forma como olhava os rostos e tentava sempre decorá-los - tinha medo do que viria depois de os não ter - como se a vida fosse um dia deixar de ser fácil de querer, fácil de viver com essa leveza indecente do corpo - a leveza que nasce depois de infinitos banhos de mar numa noite rouca do Verão de Lagos.


Tinha dias em que a saudade estava presa no fundo de si - como uma dor que é como um órgão que passa a morar connosco e que amansamos com o que fomos e fizemos sobre a areia do tempo.


E havia horas em que a saudade chegava anunciada num vício que era um ritual de onde nascia a cumplicidade ou numa paisagem que era como um mapa perdido da vida de todos, a revelação do mistério do sangue e da vida.


O reflexo desses tempos era como a imagem que tinha de si próprio - a imagem que lhe devolvia o olhar atento desses que, no meio do verde do jardim perfumado, eram um incêndio que vibrava perante a ameaça do mundo.


E cedo aprendeu a amá-los com esses socos duros com que a saudade faz abanar os ossos, com esse boiar com que a nostalgia se nos mete nos poros e no ar do peito para se prender na nossa imagem de tudo.


Lembrava-se todos os dias dessas mesas com doces quentes acabados de fazer, desses campos verde-brilhante do orvalho. Era nítido, ainda, o calor do soalho que gostava de percorrer descalço com os cães sempre numa roda eufórica e ruidosa.


As memórias eram tão frescas e luminosas como as pinceladas que nasciam sempre nos jardins em que o silêncio era um balouço e as horas o tempo sem ele.


Havia de os recordar sempre - o que ele era morava nesse chão em que todos erguemos a nossa fé, nesse chão em que erguemos o nosso nome para o termos junto daqueles que fizeram da nossa vida uma catedral de luz e esperança.


Não aprendeu nem aprenderia nunca a viver sem eles - não se aprende a viver uma vida numa paleta de cores diferentes - depois do sol aceso das tardes em que tudo era puro como a cal branca das paredes; depois daqueles nomes ditos e repetidos mais vezes que o nosso, não se recomeça porque não se quer aceitar que se perdeu.


E é essa a magia absurda dos afectos - nascem para morar em nós e tomarem conta da nossa vontade e nos fazerem do tamanho de coisas sem medida.


Chega-se ao infinito quando nos sentimos acolhidos toda uma vida, todas as vezes, pela recordação de um abraço apertado, de umas mãos quentes que agarram as nossas como raízes que se prendem fundo na terra húmida e tenra das florestas das manhãs de Inverno.


Recordá-los-ei - a cada um, a todos - como uma noite em que tivesse visto pela primeira vez o firmamento. Fica-nos o espanto de, no ventre escuro da noite, poder nascer o brilho que sempre nos puxa para cima.


E é como se sempre ele ouvisse:


"Anda cá, pequeno, anda cá."


E fosse, fosse correndo em direcção à luz que é lugar de onde nasce a esperança no coração dos homens.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Avó,

Habituei-me a ti como o olhar se habitua a uma paisagem - sempre cativo de cada lembrança que escorrega do lugar onde te guardarei depois de tudo.
Habituei-me às tuas palavras e à tua inteligência como uma criança que se vicia na surpresa constante de se sentir maravilhado, de se sentir curioso por compreender melhor aquilo que sempre lhe servira no corpo, com a exacta medida dos braços que sempre se abriam para ele.
Tive-te sempre lá - o azul marítimo dos teus olhos, o calor do teu sangue onde mora tudo e todos quantos não consegues abandonar à sombra do tempo.
Sabes, Avó, tornaste os dias cheios desses pequenos nadas que são como rituais que ainda hoje sigo para te cumprir a ti e ao Avô - são pequenos canteiros de flores onde as lembranças são frágeis e misteriosas como as orquídeas do teu jardim.
Tive as caminhadas, a tua simplicidade, a tua ironia fina e os teus erros que te fizeram mais humana aos meus olhos e me provaram que temos sempre mais força depois de todos os abalos, depois de todas as feridas que o instinto me manda que te ajude a curar.
Habituei-me à tua admiração como a um cobertor numa noite fria desse Inverno do Norte, temperamental e espesso.
Procuro-te ou, afinal, acho que sempre me encontras - chegas com essas mãos compridas, esse coração bordado pelo fio da memória que desenrolas nesses serões em que eu e o A. te vamos ver para ficarmos a ouvir-te e a sofrer com a saudade que vamos ter quando a soma dos dias se tornar para sempre uma insuficiência para nós.
Habituei-me ao teu exemplo - a desejar ser um pouco como tu - crescer para te fazer sorrir de orgulho. Levo-te presa nos meus ossos - de onde estou espero que estejas bem, conto os dias para mais um desses chás em que adivinho essa saudade dos teus que não passa, que não deixas morrer porque o teu nome nasceu do mesmo chão onde os outros te quiseram feliz e uma gaiata faladora e curiosa.
Cosi em ti parte do sentido da minha vida - o azul do céu como uma escala menor face ao vibrar do teu olhar - esse poço de luz que viu mais longe.
És-me uma espécie de vício que o coração escolheu e foi mais feliz por ter caído no colo inteiro do teu carácter. Ser-me-ás a lembrança mais doce, o caminho que percorri sempre alegremente, essa negação do tempo que inunda os espaços de luz e se chama paz.
Tempo não condiz contigo porque toda uma vida não seria suficiente para deslindar o mistério do teu ser ou para dizer obrigado, como a fazer nascer rosas no manto fresco da tua gargalhada.
És um dos altares da minha fé - do cimento da tua vida, fica-me a certeza que foste um milagre no meu caminho.
Acredito que iremos sempre encontrar-nos - chama por mim e irei a correr depressa como que a fugir do tempo.
Para o fintar e chegar primeiro.
Para chegar a ti e ficar com essa leveza por te ter abraçado mais uma vez. E continuar.
E, quando distraída já não me vires, olhar para trás e fixar os contornos exactos desse sorriso que te fica no rosto e que como o meu apenas diz:
"Obrigado."

segunda-feira, 5 de março de 2012

parabéns, Gó.

Nasci para uma vida que te tinha dentro como um presente que surpreende a mais exigente das crianças. Tive-te sempre, como uma dessas coisas que nos acontecem e passamos a vida toda a tentar perceber o que fizemos para as merecer.
És a minha Gó, a mulher do olhar fundo verde musgo, a mulher dos doces e da comida suculenta, a mulher das paixões, do sacríficio, dos rituais e da fé.
A cúmplice, sempre a cúmplice malandra com um olhar cravado de uma esperteza saudável e audaz. A companheira dos avós, sempre lhes agradecendo o que te deram, ficando, ouvindo e amando cada um de nós como se bocados de ti fôssemos todos.
Cresci rodeado dessa tua fé que nos transmitias mais através do que eras, do que sempre foste - certa e robusta, sólida como a maior das rochas.
Penso que foi sobre a pedra do que tu sempre foste que fui erguendo a minha fé - uma fé sem dogmas, como uma janela que se abre sempre numa busca súbita de luz que abafe os espaços.
Não me imagino sem ti - essa gargalhada fácil quando corríamos à tua volta para ir contigo à missa, para ver matar as galinhas, para ouvir mais uma história do tempo da juventude dos avós que também foi a tua.
Nasci para me fazer melhor depois da passagem dos teus braços, do som terno das tuas palavras simples e sinceras, do teu exemplo.
Cresci abrigado na sombra fresca da tua dedicação, da tua constância, dos teus modos pacientes e observadores. Aprendi a respeitar-te mais quando a tua simplicidade me fazia sentir pequeno, quando o que tu eras me ensinava aos sonhos a humildade que é justamente quando, de verdade, se começa a sonhar.
Lembro-me dessa língua afiada que se soltava quando ouvias uma injustiça, quando te chocavam as histórias da miséria de outras pessoas, quando agradecias sempre a tua vida, sem mais. Agradecer as pessoas, o que elas foram e o que delas nos fica no fim de tudo.
De ti ficou-me um vício na alma de trazer o teu nome preso na baínha da pele, de procurar sempre o teu olhar, saborear os teus doces ou ouvir a tua história.
Vejo retratos desses teus tempos de governanta, das temporadas na praia com primos e sobrinhos que enchiam a tua rotina de ruído e trabalho.
Vejo-te sempre feliz - esse olhar de jovem que a neve que nasce dos teus cabelos não consegue nunca apagar.
Vejo como nunca te esquecem as palavras do avô - guardas dele a tua saudade que brota subtil nas contas que marejam os teus olhos se te falamos dele.
O A. e eu, os teus favoritos, nesses tempos em que íamos pelo meio das tílias a conversar e a habituar a alma ao baloiço do conforto e da cumplicidade.
Foste-me uma ampliação do possível, uma prova do impossível, um testemunho do indizível.
Nada nos dirá, nunca. Nem haverá palavras que cheguem - que cheguem lá - a esse sítio onde cada impulso confirma a solidez do que se forjou entre nós.
És uma das minhas pessoas - essas que guardo dentro de mim para me lembrar de ser bom, para embalar as dúvidas e continuar.
Espero na vida, secretamente, ser metade do que és. E, como num capricho egoísta, continuar a ter de ti isso que nos dás. Isso a que chamamos amor. E é, fica a saber, dos melhores que já tive.
Parabéns, Gózinha.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Parabéns Avô,

Ontem farias anos. Seria um dia para te ligar cedo pela manhã e ir contigo ver o verde, aprender essa religião dos espaços de luz, da terra estendida como um colo de uma criança preguiçosa sob o sol branco do Inverno.
Iríamos com o A. e a Avó percorrer o corredor da tua vida que sempre foi essa terra imensa decorada com as lembranças que tinhas cravadas no génio e na atitude. Eras cativo da memória - fazias do teu caminho um cárcere iluminado pelas vigas da convicção, inundado dessa força que te fez do carácter uma muralha que protegia a vontade e o sonho.
Sorririas ao ver-nos no fundo das escadas - perguntarias como ia a escola, sempre atento aos nossos feitos para que eles nos ensinassem a humildade.
Dar-te-ia um abraço, sempre convicto de que há coisas que se ouvem sem voz, coisas que nascem da intensidade do que somos uns para os outros, mais do que daquilo que se pode alcançar com as palavras.
A mãe ligar-te-ia - sorririas ao ouvi-la - a essa mulher de quem gostaste como de uma filha. Pousarias a mão nos nossos ombros e irias connosco até ao fundo do verde - lá, onde a luz parece mergulhar fundo nas costas do mundo.
Caminharia orgulhoso de te ter como pilar - orgulhoso e grato por teres querido uma dimensão para a tua vida que nos adoçou a todos o caminho pela certeza que tivemos sempre de que o chão e a pedra da tua palavra eram o céu de todos os nossos voos.
É para ti que vão as minhas palavras, de ti que sobram as saudades numa vida que nunca nos chegaria. Celebro-te porque me fizeste capaz de um outro ser, de um outro querer que é sempre o princípio do sonho.
Nunca te tive por perdido ao tempo - as despedidas são sempre o aprender a vestir o amor de uma outra dimensão, de uma outra pele que nos toca por dentro, quando cruzam a nossa lembrança tempos que provam que fomos maiores.
Uma parte de mim vive aí - nesse lençol de luz que a saudade bordou mais fundo em mim - essa luz que te vinha da inteligência fina como gelo, desse calor em vagas mornas que nos chegava desse sorriso doce e seguro como os esteios das vides.
Partiste sem que te pudesse brindar com os passos do caminho que dei depois da meninice acabar - mesmo assim, sei que te chegarão sempre os meus pedidos, que ouvirás todas as vezes que te invoco, em silêncio, no balouçar da estrada.
Foste o maior homem que conheci - e foste-me uma medida que me abriu a paleta da vida para tons luz-infinito, para esse tamanho que se amplia sobre a soma dos dias para ser sempre do tamanho de uma vontade que não morre de te agradecer e te nomear nas coisas cimeiras da vida.
Soube sempre as saudades que tinhas dos teus pais - essas pessoas que mantiveste por perto de nós porque nos abriste a tua vida para habitarmos todos a mesma morada.
Soube sempre desse teu amor imenso pela Avó - ensinaste-me o fascínio por essas mulheres que semeiam ar no nosso peito, as mulheres que nos fascinam por sonharem connosco uma vida em conjunto, um caminho que se molda do barro que só as mãos unidas podem fazer viver.
Desenrolo o fio da memória vezes sem conta - a saudade foi uma tonalidade que tingiu as nossas lembranças desse tom pastel que é o outro nome da nostalgia.
Não há pó - no mesmo caminho, continuamos todos, comigo a saber exactamente o que me dirias sempre que preciso desse espaço em que pude sempre viver cosido num verde esperança que me coloria o olhar.
Não há nada senão uma vontade de alcançar o lugar mais alto - esse que o teu amor me provou ter existido e ficar aí suspenso, a boiar nesse oceano de satisfação e risadas felizes.
Ontem teria sido um dia para a mesa estar enfeitada com as porcelanas finas, as pratas a reluzir na mesa e os bordados dos linhos a colorir o ambiente.
Terias trocado comigo e com o A. mais um desses olhares que te denunciavam. Os teus olhos de um cristal aceso correriam ao nosso encontro, todos eles cheios desse embate doce da ternura.
Iria olhar-te nos olhos e agarrar essa luz que sempre chegou aos sítios de onde tinhas de nos resgatar e adormecer feliz porque me fizeste crente de um amor que não acaba.
Parabéns, Avô.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

politicamente incorrectos.

Fazer política em Portugal é, por estes dias, usar os media como um qualquer momento de terapia em grupo - veja-se o nosso PR e PM, dois bons exemplos desse desabafanço colectivo em directo que inunda as manchetes e as conversas dos mais incautos espectadores da cena política nacional.






O PM aconselha os jovens portugueses a trocarem de país - quase somos levados a acreditar que a recente chegada de capital chinês, levou o ilustre senhor a aconselhar os jovens a impulsionar cá esse maravilhoso modelo económico que assenta na exportação de população.






É bom exportar, senhor primeiro ministro, bem o sabemos. Agora não é bom passar um visto de saída a camadas da população como se isso fosse um "brinder", como se diz por aí, daqueles que se oferecem numa qualquer grande superfície. Ser-se português, gostar de ficar em Portugal não devia ser uma questão de oportunidade - se queremos que se exalte o amor ao que é nosso, devemos começar por arranjar lugar aqui para aqueles que, por gostarem um bocadinho disto (parecendo masoquismo, às vezes), serão os mais empenhados em levar isto para a frente.






Falar com pessoas, falar-lhes de uma realidade que elas conhecem e sofrem na pele, mais do que qualquer político por elas mandatado, não pode ser uma laracha lançada como verdade universal e inelutável por um conjunto de pessoas que, há uns bons meses atrás, enchiam directos com um tom ligeiramente mais inflamado com slogans em jeito de parangonas com cores de néon-esperança.






Sabe, Sr PM, por aqui gosta-se de arrojo, gosta-se de um Estado mais magro, sem que a magreza lhe roube as forças para fiscalizar e punir abusos calóricos cometidos em ilhas quentes off-shore e demais episódios assustadores que nos temos vindo a habituar a ver como sinais da suposta modernidade, como suposto produto da vocação reformista que tem caracterizado boa parte dos últimos tempos da democracia em Portugal.






Os políticos podem, hoje, parecer dandies - fica bem um fato bem cortado e uma gravata que não pareça vinda de uma ida a banhos, mas de clorofórmio. No entanto, não podem esquecer-se que devem, mais do que tudo, mobilizar o colectivo e não desancar forte e feio em tudo quanto seja réstia de esperança.






Fazer política não é ter uma conversa de café com os cidadãos - essa massa informe que escuta os discursos políticos são pessoas - e as pessoas são tramadas, Sr. PM. A cidadania faz-se, saiba-o o senhor, dessa coisa etérea e inefável chamada esperança. Sem esperança é como se o futuro fosse roubado do contínuo do tempo. E isso não é bom.






Explicar as coisas às pessoas é dizer-lhes que os sacrifícios, mais do que necessários, servem o propósito de tornar as coisas melhores, com mais sentido - esse que é o de, no fim de contas, ter cidadãos bem servidos.






Não se pode ter Serviços Secretos como uma espécie de força oculta, desgovernada e que ninguém sabe a quantas anda e, pior, a mando de quem. Não se pode ter a Maçonaria como um hobby de alguns como um fantasma nas decisões que afectam todos.






Os políticos correm o risco de perder o apoio, quando a sua legitimdade periga - e, num pântano desgovernado, o tom errado ou uma frase despropositada, podem ser o rastilho que anuncia o princípio do fim.






Em Belém mora esse Presidente-do-tacho-ao-lume, o Sr. Silva - os seus mandatos têm oscilado entre o papel de chefia do Estado e o de um qualquer idoso a desfiar queixumes numa tarde soalheira, num banco de jardim.






Não se governa dia sim, dia não, sr. PR. A governação é uma coisa dinâmica que não se faz apenas quando o betão ajuda a firmar um percurso político. Aliás, Sr. PR, se já não tem o betão, a retórica foi uma coisa que nunca teve como aprendida.






E, ultimamente, mais se não vê que larachas - sim, larachas sobre vacas que sorriem, larachas pseudo-motivadoras no discurso de Natal a uma Nação que definha, larachas sobre como é heróico optar pelas reformas que acumulou do tempo em que as vacas eram gordas, mas só sorriam a alguns.






Cavaco tem sido uma decepção - mudar o país não faz parte da sua agenda e, verdade se diga, a inacção não pode ser justificada com uma literal leitura das competências que lhe cabem.






Nenhuma Constituição proibe ou diz como não se deve cair num discurso demagógico e ridículo. O pior de tudo, bem vistas as coisas, é pensar que o seu tom é sincero - quem o ouve pensa, afinal, que os sacríficios são só maus quando lhe doem e que o estoicismo que pede a uns é missão que não é sua.






Pois Governar, se é de legitimidade que falamos, é renovar essa mesma legitimidade a cada momento -ela não nasce de um qualquer método electivo e fica por aí. Os media servem para muita coisa má, mas tornam a demagogia numa coisa flagrante e ruinosa.






O politicamente correcto não é bom, mas o politicamente incorrecto - essa incorrecção descarada do queixume mimado é uma coisa feia de quem só parece saber governar quando tudo são sorrisos - os das vacas e não só.






A adversidade é um teste à eficácia das soluções e dos sistemas, mas também, isso sim, uma forma de nós portugueses deixarmos de ser como "vacas a olhar para um palácio (de S.Bento ou Belém)" e começarmos a mostrar que, em tempos como estes, as vacas magras não estão para sorrisos.






E ainda bem.