Rewind

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

esperança

Sentava-me com a cortina opaca da noite como um palco vazio. Nessa altura, enquanto o mar afinava a voz de encontro às rochas, acendias um cigarro. Era tudo como um vasto hino de silêncio em que ouvia a tua respiração funda e os teus olhos se tornavam pardos, acesos de mistério e desejo.
Estavas quase sempre com uma das minhas camisolas - o corpo trémulo com esse frio que aviva os sentidos e descompassa o coração.
E desatavas a lançar perguntas para dentro do escuro - como se da tua curiosidade nascessem pontos de luz no horizonte fechado. Respondia-te satisfeito - era doce o embalo da tua voz rouca - enquanto falavas, a noite era como uma fábula, um caminhar sereno como traços largos que se desenham numa tela imensa e branca.
Tinhas as mãos compridas - uns dedos como areia fina, clara e macia. E olhavas-me enquanto te respondia - tantas vezes maravilhado com essa cumplicidade que fica quando o agasalho que escolhemos é o despudor, a nudez explícita das coisas com a subtileza da noite como abrigo.
As ruas desertas - o vinho que se acaba, enquanto a música roda no ar como um balão cheio de ar de encontro ao vidro do mundo.
Respondia-te assustado - cravavam-se no escuro os meus olhos nos teus e quase te queria mais porque trazias na dúvida esse conforto da troca, esse renunciar que se torna uma conquista, assim que nos rendemos.
O fumo perdia-se no ar - estavas arrepiada e vinhas sentar a cabeça no meu colo - comparavas-me a alguma personagem de um dos teus livros. Quase sempre exageravas o retrato para encaixares uma gargalhada na caixa do teu peito, para ganhares ar e continuar.
Eram caricaturas doces, as tuas. Para ti era sempre tudo uma questão de superlativo, de intensidade, de um olhar atento que absorve os pormenores mais pequenos para forjar memórias que sabias serem só tuas.
Vias pelos meus olhos que procurava no infinito o espaço onde cabia tudo o que me dizias - onde, de longe, procurava encaixar a tua voz no diálogo que já trazia cá dentro.
E abraçavas-me com força - escutavas-me as palavras e deixavas-te ficar muito quieta deitada no meu colo, enquanto a noite não nos denunciava.
Pensava com desejo nas tuas palavras - as palavras são sempre a sílaba tónica das paixões - sem elas, sem essa gramática que traz luz do poço da noite e das coisas, a maior das promessas é um corpo vazio, um corpo que se perde na corrente do mundo.
Dizias que te fiz acreditar nas palavras, que até com o corpo parecia que te falava. E, na verdade, tudo parecia existir para ser nomeado e revelado ali, naquele instante, diante daquele espectáculo vazio que era o mundo.
Brincavas-me com os dedos - e quando a nossa respiração se encontrava, era tudo de uma leveza serena, de uma ingenuidade que te fazia tão inocente como num abraço.
Ficava o silêncio que era como um cobertor que punhas por cima de mim para me encheres de beijos, para te encostares a mim a ouvir o meu coração que juravas continuava a falar.
A dúvida combinava com a noite nessa varanda - contigo, apaixonada por mim porque, como dizias, as minhas palavras eram as mãos que te tocavam dentro, eram esse ar que te faltava, como uma ponte sobre os dias.
Fazes-me feliz - dizias. A tua boca com um sorriso quase tão aberto e franco como o que dizias. A felicidade é a luz que vemos, mesmo quando o abismo se estende como uma sentença no fim de tudo. A felicidade é a ferida que trazemos para nos lembrar da esperança. É como um lençol de luz que estendemos ao lado de tudo o que nos assusta, nos enfraquece, nos contamina.
Na noite, na varanda onde fumavas encolhida no meu colo, era tudo luz o que nascia do corpo das palavras. Era tudo esperança o que nascia da gargalhada que davas quando te contrariava e te punha no coração uns olhos capazes de ver outras coisas.
Fazias-me sentir do tamanho do voo da tua voz, sereno como o calor do teu corpo e intenso como o fundo luminoso dos teus olhos.
A noite era escura, mas dos teus lábios havia um beijo que selava tudo aquilo. Era altura de crermos nesse mar infinito que nos empurrava um para o outro.
Tudo era como um palco abandonado, imerso num silêncio sereno de onde tudo poderia nascer.
Até estrelas, dizias tu, a sorrir.         

Sem comentários: