Rewind

terça-feira, 27 de agosto de 2013

eco|

Eu espero-te mas minha boca é quem te chama
Querendo que o eco sejam teus lábios chegando para ficar.

RM

recomeço|

Recomeçar todas as palavras na tua saliva no meu corpo
E inventar no fogo dos teus beijos um chão sem sombra e sem distância
Recomeçar a vida na espera dos teus olhos
E não trazer no bolso jamais nenhuma ânsia

RM

contigo|

Eis que o dia escorrega lentamente
E teus olhos são, de súbito, irmãos da noite que já dorme
Eis que o mundo se esquece finalmente
E meu medo dentro de ti inteiro some

Eis que o tempo se verga quando passas
E as horas em cinzas esvoaçam
Se em teus braços, acaso, tu me abraças
Não vou mais nas sombras que, ao longe, passam

Eis que a pele das coisas se ilumina
E tua boca, de súbito, me gasta nos lábios a saudade
Eis que a valsa do desacerto, então, termina
Com beijos de fome e de verdade

RM 


segunda-feira, 26 de agosto de 2013

são beijos, meu amor|

São beijos, meu amor, as flores que deixo no ferro da varanda
E na manhã de prata que nasce devagar tudo começa
Tua voz em meu peito é quem comanda
E me mostra a luz dessa promessa

RM 
 

ainda tu|

É o teu corpo que deixa a sombra a arder ainda na areia da distância
E é teu cheiro que enche de ti o espaço da ausência
Todo o tempo em que te espero é permanência
Dos desejos boiando em surda ânsia 

RM

de ti|

São teus dedos quem desenha o infinito
E em teus olhos o céu é um mar que tudo inunda
É por teus beijos que teu nome só repito
E tudo é uma verdade enorme e funda

RM

domingo, 25 de agosto de 2013

manhã|

a manhã chega com o rumor suave da tua mão
e ainda nas ruas as sombras são vazias de passos e solidão
a manhã chega no vício do teu cheiro na saudade
e ainda no tempo tudo é luz que pousa na cidade

RM

não vás|

Não vás
Sem que teus beijos demorem a manhã na ponta dos meus dedos
Não vás
Sem que a janela aberta seja o fim de todos os segredos
Não vás
Sem que a rua seja toda um chão de mar e de infinito
Não vás
Sem que teu corpo seja a fome do que ainda não foi dito

RM

fogo|

É quando a noite inteira se demora
Presa no balanço dos corpos que se enlaçam
Que teus lábios ampliam o colo do silêncio sobre a luz
É quando as horas vadias todas passam
Que tudo em ti é fogo e me seduz

RM 

sábado, 17 de agosto de 2013

romaria|

O céu era de novo o de Agosto - o sol ia alto como os desejos quando os corpos aprendem essa liberdade súbita do familiar e do reconhecido. E tudo retomava o seu lugar como se a vida nunca pudesse deixar de se demorar nas horas maiores desses dias das nossas vidas.
A casa era um ventre repleto de sombras frescas, com as árvores como andores em flor correndo para a luz. Tudo muito quieto, excepto o ar que trazia um leve rumor de vida que se apressa, o passo mais agitado que antecede todas as coisas que ficam. 
E voltamos ao princípio - viver o absoluto da vida é para os bons contadores de histórias porque apenas esses sabem regressar do escuro da vida. Volto contigo, Avó, às janelas das vossas casas, às pedras das vossas ruas, ao verde do vosso horizonte. Volto ao cemitério imerso no silêncio, ainda dormindo no lençol fresco da manhã. E falo-te do meu Avô que ficou ali para ver o verde dos nossos campos que eram a sua forma mais funda de fé.
Ouço-te falar da tua Avó, dos teus Pais, dos teus Irmãos e Primos e vejo nos teus olhos que estar ali é continuar a esperar por eles, é não saber morar noutro lugar que não aquele em que alguma vez se foi feliz.
E contigo volto à missa - uma missa campal com um corpo de gente espalhado na enorme escadaria sobre o vale. Volto à fé de criança que via na luz das palavras um conforto maior do coração. E lembro a Gó que em todas as missas comigo e com o A. sofria com as nossas investidas malandras para a fazer rir. O riso das pessoas verdadeiramente boas como ela é como um traço fino na pele que nos marca para sempre.
Lembro-me de ir buscar ovos na bicicleta para o almoço, lembro-me dos cavalos soltos e preguiçosos na erva verde, lembro-me de passear com o Avô por entre o palco do vosso tempo. A romaria para mim é a possibilidade da vida ficar sempre assim; da vida ser sempre esta vida porque não quero outra para viver.
Vou à missa para agradecer mais um ano em que nos deixam juntos no caminho; para chamar ainda e sempre pelos meus sem que o barulho do mundo os tente apagar.
Sinto que vos cumpro nestes rituais - é bom voltar à pele do neto sem medo de vos perder, é bom fazer do aconchego da intimidade o pilar da vida.
Passeio sozinho por entre as árvores, visito o beiral e demoro os olhos no fundo do vale sereno. Ouço-te chamar o meu nome lá de dentro. E fico contente por sermos tão íntimos, por esta família me ter ensinado que amar é gostar tanto de alguém que não se pode querer que o outro seja perfeito. Ama-se somente quem faz do amor por nós, a razão da redenção, do perdão, da atenção extrema, do ver o que é invisível aos olhos.
Amar é inventar sempre mais uma possibilidade para o que não se quer perder. E é por vocês que volto ali - para sentir na repetição do chão e do céu que o tempo quase pode ser o mesmo, se nos nossos olhos continuar a morar essa entrega absoluta.
No céu escuro da noite, o fogo de artifício ilumina as casas com um abraço longo e terno. E neste ritual que se cumpre na noite que acaba, fica a certeza de que o amor que nos temos é sempre a vontade de mais um abraço que não podemos deixar de entregar.  

the gathering storm|


domingo, 4 de agosto de 2013

03.08

Tia Né,

E talvez o espaço da memória seja o único do teu tamanho; talvez esse espaço sem tempo seja o único onde se pode demorar a saudade e ficar esquecido de tudo quanto sobra num tempo que, afinal, nunca chega.
Nasceste numa família que se habituou a esperar o nascimento dos outros quase como se, com isso, quisesse a vida ampliar a largura dos caminhos e o fundo do horizonte. Foi com o teu baptismo que se inaugurou mais uma casa - a do terraço como um promontório estendido sobre as nossas terras, com a Torre dos Mouros, ao fundo. Foi contigo que a família ganhou mais uma testemunha dessa raça de crianças louras e de olhos azuis-promessa como o céu de todos os Estios.
Trouxeste contigo do fundo do tempo essa inteligência mordaz, essa voz sempre do tamanho da liberdade que querias e não da que te pudessem impor. Trouxeste contigo uma mulher maior do que a vida, do que as circunstâncias e do que o próprio tempo. 
A minha infância e parte da minha vida será sempre vossa - a dessas pessoas que me habituei a reconhecer na voz que ainda nos empurra para perto uns dos outros. Gostar de alguém é estar por perto e surpreender a alegria de estar vivo na partilha que se tem de cada coisa simples que nos acaba justificando.
Hoje teria sido o dia das toalhas de linho, dos bolos, das mesas grandes como corredores de luz em que estarias tu trazendo nos olhos um brilho de quem conhece os segredos da vida, da alma e de tudo por quanto vale viver no correr dos dias. Estarias tu no teu lugar da mesa - com as muitas sedas e as jóias que coleccionavas dando um brilho maior ao teu rosto alegre.
Lembro de ti essa generosidade imensa - contigo aprendi que não há sentimentos na imparcialidade, que somos partidários de uns e não de outros em nome da verdade do que somos.
Lembro de ti essas tardes nas férias em que me contavas, sob a sombra ligeira das árvores, histórias de um passado que sempre quis conhecer. Atavas-me nessa corrente que é uma família e fazias de mim testemunha desse crime de amar com um amor maior do que a vida.
E que é o verdadeiro amor senão um eterno resgate? 
Falo com a Avó inúmeras vezes de ti, dos irmãos todos e da família que ela já perdeu. Sei que te lembrou também - ainda hoje se ri quando lembra o teu feitio, as tuas tiradas, as tuas disputas, as tuas conquistas. Falar de alguém é falar sempre no presente - este é o único tempo do amor, porque é o único tempo em que a vida existiu mesmo e em que pudemos, alguma vez, agarrar alguma coisa.
Hoje, mais do que tudo, lembro o teu sorriso e os teus olhos cúmplices a forjar aliados, a ver dentro de todos e tu a ficares orgulhosa por reconhecer em alguns de nós a possibilidade de futuro para as coisas tão bonitas que te ensinaram nessa casa de gente a transbordar no génio a violência do amor.
 
Temos saudades tuas. E na falta que nos fazes, mora a exacta dimensão do amor que te temos para sempre.
 
Parabéns!
 
 

em câmara lenta|fernando lopes.