Rewind

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

24.08|Avô,

Meu querido Avô Adélio,

Volta nem que seja para um abraço. 

Eu, prometo-te, preparo tudo - o teu cadeirão de orelhas largas, o couro e a pregaria com o cheiro a tempos felizes; a limonada fresca para os gumes afiados do calor e, claro, uma brisa que relembre às árvores que a sua sombra é, outra vez, um abrigo para nós. 

Sabes, meu querido, se, mesmo assim, não for fácil convenceres quem quer que seja que te tem, diz-lhes, por favor, que há, ainda, um areal inteiro de sorrisos por desenhar nos lábios da Mãe - ela ia gostar tanto dos teus dedos longos presos nos dela, do teu olhar que acenava de longe e que era como uns braços abertos assim que te víamos. 

Não sei como te contaríamos tudo quanto se passou na tua ausência - talvez, na verdade, a mobília tenha ficado, todo este tempo, no mesmo sítio - a tua cadeira sendo tua até ao fim dos tempos, a casa um mapa onde a tua existência e os teus passos sempre se sentiram - ninguém conseguiria, eu sei, viver num mundo onde nunca tivesses existido. 

Logo eu, um falador nato, acho, somente, que ficaria agarrado a ti como um sol que teimasse em não se pôr, que pudesse atrasar o escuro, adiar o gole voraz da noite e da partida.

Quem ama quer, hoje, que a tua cadeira está pronta, a limonada se serviu e há uma sombra gentil e fresca a dançar no jardim, que os despertadores não toquem - por amor, que tudo se atrase, se prolongue, se demore e ninguém nos lembre de outros lugares - não há nenhum outro lugar que importe, sabes?

Sorris-me do fundo das molduras - eu recordo-te sempre porque, quem ama, é como uma nascente que, embora correndo todas as vezes em direcção ao mesmo lugar, não se importa de levar na corrente a mesma vontade, como um vício benigno, de chegar a casa. 

Iremos sempre para perto de ti, meu querido.

Espera-te o teu jardim, 

a cadeira de couro

e a limonada fresca. 

Volta para um abraço que seja, por favor. 

Hoje a noite não tem hora para começar. 

Obrigado por tudo.

Parabéns! 

RM| XXIII-VIII-MMXVIII

domingo, 12 de agosto de 2018

Casa,

Há, segundo creio, uma espécie de geografia dos afectos - somente o amor povoa as grades das nossas costelas das flores mais bonitas, de flores que nunca murcham. 

Há uma primavera-para-sempre que começa quando nos escolhem para ser a terra, o berço dos sonhos mais bonitos; há um baú que quem escolhe o amor acaba sempre sendo - o perfume intenso das velas sempre acesas debaixo das memórias que a maré do tempo não apaga nunca. 

Há uma paisagem que somos nós e, no fim de contas, quem amamos é o mapa que torna possíveis todos os regressos, todas as emendas, todas as vezes em que o caminho prossegue, se espreguiça, se alarga e nos leva juntos até ao fim e não nos afasta de nós mesmos. 

Os meus olhos foram sempre janelas abertas - memorizei, como pude e com a alegria do coração, todas as formas de voltar a casa. 

O abrigo que vocês me são, bem sei, tem a porta no trinco - entro, subo as escadas - os dedos, como sobre a pele de alguém conhecido, percorrem sempre as paredes todas; há no ar o perfume da infância que as jarras preservam e fazem boiar. 

Quem ama não tem nunca um silêncio calado - há um alvoroço nas entranhas, há um soalho que treme porque alguém nos trepa os ossos e nos assombra com luz o sótão da memória. 

Amar é sermos, para sempre, uma casa habitada - a mobília que trazemos dentro é feita, justamente, de todos quantos nos ensinaram o coração a girar o disco do amor. 

E o amor é uma dança que não tem coreografia - começando a música, nada há de ensaiado, de repetido - tudo é um milagre; o espanto no leito aceso dos olhos e uma vontade de, mesmo que de improviso, os corpos não se descosam, não se deslacem, se não separem jamais. 

A minha fé veio toda do altar que tem sido o vosso colo - por isso, obrigado. 

Há uma geografia dos afectos, dizia. 

Eu, pela minha parte, serei sempre a vossa morada - por perto, o mar e as portadas dos olhos sempre abertas. 

A porta no trinco e um silêncio nunca calado. 

Cá dentro, a música que alguém, um dia, pôs a girar e que se chama amor. 

Subam as escadas, pisem-me o soalho do sangue e encham de luz o sótão todo da memória. 

Passem, já agora, a levar as flores que plantaram na varanda de ferro das minhas costelas. 

É primavera-para-sempre, sabiam? 

E as jarras têm de cheirar, até ao fim, à alegria de uma infância feliz que não pode acabar nunca. 

Amo-vos. 

RM| XII-VIII-MMXVIII

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Avô,

Um dia pensei que quem ama olha sempre para trás antes de atravessar uma passadeira. 

De facto, amar é esperar que a sombra que nos segue pelos passeios não tenha que ser necessariamente a nossa - que possa, sim, ser a de alguém cujos passos andam, por ali, ensarilhados bem perto nos nossos. 

E que o sol, como que a brincar, nos põe a dançar os corpos por cima das lajes do cimento numa coreografia inventada pela luz num fim de tarde quente qualquer.  

Eu, pelo menos, dou por mim a gostar de imaginar que quem ama não atravessa nenhum caminho sem pensar no que deixa para trás. 

Fui sempre assim - desde pequenino, por cima do ombro, aguardei sempre uma mão que remasse comigo rumo ao que quer que fosse que viesse depois.

Lembro-me tão bem dos nós dos dedos, do abraço das peles, dos braços presos e, sobretudo, de nunca ter medo de atravessar nenhum caminho, de não me parecer nenhuma estrada ampla demais, nada demasiado longínquo ou impossível. 

Nunca me deixaram para trás, está visto. 

E eu, como posso, tento não os deixar para trás - as mãos que se oferecem, o braço que se estende, as palavras com que somente um coração que fale a língua do outro lhe diz, 

Vai tudo correr bem

E, sempre, do outro lado de todas as viagens, para onde for que a vida nos leve, que se agarrem as mãos, que sejam cegos os nós com que os dedos se entrelaçam e que possa ser eterno o abraço das nossas peles. 

Há dezoito anos, Avô, tinhas acabado de fazer 80 anos e ias renovar a carta, 

Eu e o A. radiantes por te vermos na rua - um abraço longo e o teu sorriso doce de quem parecia sempre querer convidar os outros a permanecer,

E a nossa maldita pressa em cumprir horários, 

Temos que ir para as aulas, Vovô, desculpa

Vão lá, pequenos

E o beijo que te demos ter sido o último, enquanto, olhando para trás, te acenámos até chegarmos à esquina, rumo ao liceu. 

Até hoje, sinto que chegar a horas a certos sítios é, inevitavelmente, chegar demasiado tarde a outros. 

Desde então, o olhar para trás - fixar o outro antes que o poente seja noite, oferecer-lhe os ossos, o abraço da carne, é como um vício. 

Quem ama, nunca atravessa nenhum caminho sem olhar para trás. 

Eu e o A. nunca fizemos nenhum caminho sem estendermos a mão. 

Estamos todos cá, Avô, felizmente. 

Eu, ainda assim, olho por cima do ombro antes do princípio de cada viagem. 

Vejo o teu sorriso doce, o teu aceno feliz e, na dúvida, estendo a mão. 

Espero por ti no início de tudo, todas as vezes. 

O meu coração espera por ti - o semáforo suspenso até que regresses. 

Um beijo do teu, 

R.  

RM| VII-VIII-MMXVIII