Rewind

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

do teu cheiro.

Sempre achei que a tua recordação me podia vir como um aroma que surpreendemos no ar, fica suspenso e nos dilata o peito como um vidro feito estilhaços de luz e brancura.
Sempre achei que a cor dos teus olhos nesse momento em que acordavas podia vir preso ao cheiro do musgo nos jardins onde fumavas encostada a mim.
Sentir o teu cheiro afinal trazia tantas coisas escondidas - já nem sabia se eram as rosas que me lembravam de ti, se era a minha recordação da seda do teu corpo que as ampliava mais e mais até que tudo se parecesse a um lençol doce e suave.
Ficavas-me presa na pele - na ponta dos meus dedos esse odor aceso como os passos que o lume queimou sobre os teus ossos, que as palavras cravaram fundo como foguetes de luz no escuro da noite. O teu cheiro era como um rastilho que se acendia - sentir-te os passos era adivinhar que o cheiro que vinha do lado de lá da porta era o teu - vinhas subindo a escada com essa graça descuidada, esse bailado improvisado que deixa adivinhar o desejo nas veias.
As cortinas rodavam lentamente no ar como um balão que uma criança irreverente iria querer rebentar. Era um dia corrosivo de tão brilhante - a intimidade iria encontrá-la debaixo do véu do teu ofegar ritmado, debaixo das confidências que me deixas no ouvido enquanto a música se dança na aparelhagem contra o vazio.
Porque o vazio é isso mesmo contigo - essa ausência do mundo, dessas coreografias e valsas para ter como horizonte a linha funda dos teus olhos que se acendem muito quando sorris - toda, de repente, uma onda vibrante de serenidade.
E sempre o teu cheiro - até das tuas gargalhadas, depois delas ficava no ar essa leveza que se sente na limpidez com que o ar nos entra, na indiferença com que respiramos mesmo fundo sem querer saber que engolimos o ar e gastamos a vida.
Porque o teu cheiro há-de ser sempre leve - como as lágrimas que te escorriam durante as noites em que vestias os meus braços e o corpo de agasalho e as minhas palavras eram o diálogo que não conseguias ter contigo.
A tua recordação, qualquer pormenor de ti - como as mãos compridas com que brincas com o meu cabelo, o toque das tuas pernas que se enrolam nas minhas enquanto dormes como a pairar sobre planícies inteiras e mornas. Esse acidente que acontece porque estamos juntos - esse momento em que o acaso faz sentido, se encaixa no meio de tudo para depois ficar a contar o que fomos.
Grandes linhas - as mais profundas, pelo menos, nascem do acaso de nos abandonarmos aos braços um do outro, de aceitarmos que o véu do que se esconde se nos vai mostrar ao mesmo tempo.
Como aqueles amanheceres que gostas que veja contigo com a janela aberta e o arrepio da pele a juntar-nos mais de encontro um ao outro, enquanto o palrar do mundo, o bulício das coisas e o pêndulo da rotina se começa a arrastar ao longe.
O teu cheiro traz-te toda de encontro a mim enquanto passeio sozinho na cidade - não é exactamente um cheiro o que te anuncia dentro de mim. É esse olhar com os olhos imersos no meio de uma luz que nos embala, esse caminhar com os pés numa almofada de terra molhada e tenra.
Esse desejar-te com o fundo do estômago e parar no meio do caminho para relembrar um pormenor mais lancinante do teu ventre, desse movimento em que renuncias para te sublimares.
Trago na camisola a forma do teu corpo ou é ela que imagino porque ainda traz o cheiro da tua pele depois de a teres vestido.
Ficar a ouvir música contigo e deixar que as palavras nos toquem aos dois no mesmo momento - a sintonia de algo nosso se começar a gravar no significado daquelas frases para passar a ser algo de totalmente diferente do que se ouve a tocar.
O teu cheiro também é essa maresia que se desprende das rochas enquanto bebemos vinho presos no labirinto do desejo e nessa atenção febril que antecipa a chegada desse diálogo que se trava com os corpos para se conquistar com os silêncios.
Ouvir-te falar sobre um livro, sobre alguém da tua família que te marcou como a mim - vestida com a minha camisola pareces uma adolescente que faz do improviso a melhor forma de provocação.
As coisas que vi contigo são o cheiro da tua memória - a memória tem o cheiro do que as coisas ainda significam para nós. E podemos reencontrar alguém porque, por cima das letras, das valsas e músicas do mundo, se escreveu alguma coisa de que apenas duas pessoas são os intérpretes e sabedores.
Trocamos essa ampliação da confiança que é o silêncio - talvez que apenas nele se possa verdadeiramente escutar o coração. O silêncio envolveu-nos para nos revelar. E na nudez dessa entrega as possibilidades foram infinitas - porque o horizonte era a luz que trazias no leito do olhar nessas noites em que adormecias cansada de falar, de poder esticar sobre o silêncio as dúvidas cansadas, gastas e sombrias.
Tinhas graça, com essa camisola e esse corpo desenhado com um contorno mais nítido contra a luz.
Encontro-te nas palmas das minhas mãos e no suor do meu corpo. Ainda transpiro o teu eco na minha pele, ainda tragos os nós dos dedos atados na forma exacta dessa tua mão comprida e macia.
Do teu cheiro fica-me um painel feito da espuma de tudo isso que foi tão intenso como uma matilha de ondas que arfa contra as rochas.
O cheiro, afinal de contas, são os outros olhos que nos ficam quando deixamos de ver o mundo sozinhos.  

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